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quarta-feira, abril 24, 2024

Arte e falsificação: Será uma falsificação obra de arte?


'Voltando para Casa', supostamente de Gertrude Abercombrie, foi vendida em leilão por US$ 93,750 no ano passado. A pintura está a ser investigada pelo FBI por suspeita de ser uma falsificação.


A definição formalista de Bell (1), que é uma definição essencialmente estética, permite claramente classificar como arte as falsificações. Se basta que uma obra tenha forma significante para ser arte e se, como escreve Bell, a forma significante na pintura consiste em «linhas e cores combinadas de um modo particular, ou em certas formas e relações de formas», então uma cópia perfeita – seja uma falsificação ou não – de um objecto com forma significante terá também forma significante, pelo que será também uma obra de arte. Neste sentido, é irrelevante determinar qual a história da produção das obras de arte ou obter informação sobre quaisquer outras propriedades quando há arte!  Daí que, «para apreciarmos uma obra de arte, a única coisa que temos de trazer connosco é um sentido de forma e de cor e um conhecimento do espaço tridimensional», diz Bell . Assim, não precisamos de qualquer bagagem extra, a não ser sensibilidade estética e inteligência, para determinar se um dado objecto é ou não uma obra de arte, pois temos diante de nós tudo o que realmente conta. O que nos importa, pergunta Bell, «se as formas que nos emocionam foram criadas anteontem em Paris ou há cinquenta séculos na Babilónia?»  Talvez isso não seja irrelevante para avaliar os méritos artísticos de uma dada obra de arte, mas é irrelevante para decidir se estamos ou não diante de uma obra de arte. As coisas já são menos claras quando pensamos na definição institucional. As falsificações parecem satisfazer todas as condições indicadas pela definição institucional de Dickie: ser um artefacto, em virtude de cujas características é proposto por alguém que age em nome do mundo da arte como candidato a apreciação. No entanto, foi o próprio Dickie que, em Art and the Aesthetic (2), argumentou que as falsificações não são arte por falta de originalidade, uma vez que a obra genuína teria, como diz Davies, «esgotado o uso da patente da obra» (3). Este requisito soa um tanto ad hoc, dado que a definição institucional não parece exigir tal coisa. Daí que Dickie tenha posteriormente mudado de opinião:

“Seguindo o exemplo de Danto, em Art and the Aesthetic ,concluí que as falsificações não são obras de arte. Penso agora que foi uma conclusão errada. [...] Claro que ainda se pode dar o caso de as falsificações não serem obras de arte por algum motivo. Mas não vejo razão para que tais obras não possam satisfazer todos os requisitos para serem obras de arte no sentido classificatório: as falsificações são obras de arte sobre cujo criador estamos ou temos estado enganados; as cópias são obras de arte sem imaginação ou completamente parasitárias. (4)

Ainda assim, independentemente de a posição inicial de Dickie estar relacionada com a questão da originalidade, poderia haver dúvidas quanto à satisfação de algum dos requisitos indicados na sua definição. Um desses requisitos é que um objecto só pode ser arte se alguém do mundo da arte o propuser como candidato a apreciação. Dickie esclarece que fazem parte do mundo da arte os próprios artistas, os membros do público e os apresentadores, que são os intermediários entre o artista e o público. Mas é aqui que surgem as dúvidas: se dissermos que uma cópia ou uma falsificação são arte porque foram propostas como candidatas a apreciação pelos próprios artistas que as produziram, então estaremos perante um círculo. O que justifica que os seus autores sejam chamados artistas? Não é esclarecedor dizer que basta que alguém se considere artista para o ser, até porque Dickie sublinha que uma característica de todos os artistas é a consciência de que aquilo que está a ser criado para apresentação é arte. Mas é, no mínimo, duvidoso que o falsário tenha sempre a consciência de que aquilo que está a apresentar seja mesmo uma obra de arte, caso contrário talvez não precisasse de esconder a verdadeira autoria.


(1) BELL,Clive. Arte. Traduzido por Rita Canas Mendes. Lisboa: Texto e Grafia, 2009.

(2) DICKIE, George. Art and the Aesthetic. Ithaca: Cornell University Press, 1974.

(3) DAVIES, Stephen. Definitions of Art. Ithaca: Cornell University Press, 1981, 

(4) DICKIE, George. The Art Circle. Nova Iorque: Haven, 1984.


Aires Almeida,"Arte e contrafacção: valor estético e estatuto das falsificações"
 in Quando Há Arte! Ensaios de Homenagem a Maria do Carmo d’Orey,  Organizadores: Vítor Guerreiro, Carlos João Correia e Vítor Moura, 2023, Bookbuilders / Letras Errantes, p.93,94

quinta-feira, abril 11, 2024

A semelhança de família

 


Pintura de Cecily Brown’s “No You for Me” (2013)


Um tema perene da filosofia ocidental desde que Platão tem sido a busca por definições. Os diálogos socráticos normalmente fazem uma pergunta – o que é justiça, o que é conhecimento, o que é beleza – e prosseguem mostrando, através de uma série de perguntas e respostas, que os interlocutores (apesar da confiança no seu conhecimento) não têm, de facto, uma compreensão clara dos conceitos envolvidos.

A suposição tácita é que o verdadeiro conhecimento de algo depende da capacidade para o definir, e é isso que aqueles que debatem com Sócrates (o porta-voz) não conseguem fazer. Mas isto apresenta-nos um paradoxo, aqueles que não conseguem fornecer uma definição de um determinado conceito são geralmente capazes de reconhecer o que não é, o que certamente exige que eles saibam, em algum nível, o que é. O conceito de arte confronta-nos exatamente com esse caso. Parece que sabemos o que é, mas lutamos para definir as condições necessárias e suficientes que têm de ocorrer para que algo conte como obra de arte.

Na nossa perplexidade, talvez seja natural perguntar se a tarefa de definição não é em si mal concebida: uma caça ao ganso selvagem cujo objetivo é identificar algo que se recusa veementemente a cooperar.

Uma saída para esse labirinto é fornecida pela noção de “semelhança de família” de Wittgenstein, que ele explica no seu livro publicado postumamente “Investigações Filosóficas”. Pegue-se na palavra “jogo”. Todos nós temos uma ideia clara do que são jogos: podemos dar exemplos, fazer comparações entre diferentes jogos, arbitrar casos limites, e assim por diante. Mas surgem problemas quando tentamos aprofundar e procurar algum significado ou definição essencial que englobe todas as instâncias. Pois não existe esse denominador comum: há muitas coisas que os jogos têm em comum, mas não há uma característica que todos compartilhem. Para abreviar, não há profundidade oculta ou significado essencial: a nossa compreensão da palavra é nem mais nem menos do que a nossa capacidade de usá-la adequadamente numa ampla gama de contextos.

Se supusermos que “arte”, assim como “jogo”, é uma palavra com uma “semelhança de família”, a maior parte de nossos as dificuldades evaporam. As obras de arte têm muitas coisas em comum com outras obras de arte: podem expressar as emoções interiores de um artista; podem destilar a essência da natureza; podem comover-nos, assustar-nos ou chocar-nos. Mas se olharmos para alguma característica que todas possuem, procuraremos em vão; qualquer tentativa de definir arte – definir um termo que é essencialmente fluido e dinâmico no seu uso – é mal concebido e fadado ao fracasso.

Tradução Helena Serrão

Ben Dupré, 50 philosophy ideas, London, 2007,Quercus, p.146,147

sábado, julho 22, 2023

Sobre a poesia




                               Fotografia: Philip Jones Griffiths, Norte da Irlanda, 1965

 …se a arte só pertence ao raro e puro génio, mesmo uma pessoa mediana em tudo, se está, com efeito, estimulada por uma forte impressão ou qualquer súbita inspiração do seu espírito, poderá compor uma bela ode, visto que para isso só precisa de uma viva intuição dos seus próprios sentimentos num momento de exaltação. Bastam, para o provar, todos esses cantos líricos de indivíduos que permanecem aliás desconhecidos, especialmente as canções populares alemães, de que temos uma excelente recolha no Wunderhorn,e também essas inúmeras canções de amor e outras, em todas as línguas. Com efeito, agarrar uma impressão do momento, e dar-lhe corpo num canto, eis em que consiste este género de poesia. Entretanto, na poesia lírica, se se encontra um verdadeiro poeta, , ele exprime na sua obra a natureza íntima da humanidade inteira. Tudo o que milhões de seres passados, presentes e futuros, sentiram ou hão de sentir nas mesmas situações que reaparecem sem cessar, ele sente-o e exprime-o vivamente. Essas situações, pelo seu eterno retorno, duram tanto quanto a própria humanidade e provocam sempre os mesmos sentimentos. Igualmente, as produções líricas do verdadeiro poeta subsistem, durante séculos, vivas, verdadeiras e jovens. O poeta é, portanto, o resumo do ser humano em geral: tudo o que alguma vez fez bater um coração humano, tudo o que a natureza humana, numa circunstância qualquer, fez brotar para fora de si, tudo o que alguma vez habitou e amadureceu num peito humano – tal é a matéria que ele trabalha, como trabalha todo o resto da natureza. Além disso, o poeta é igualmente capaz de cantar a volúpia e os assuntos místicos, de ser Anacreonte ou Angelus Silesius, de escrever tragédias ou comédias, de esboçar um carácter elevado ou comum, conforme o seu capricho ou a sua vocação. É por isso que ninguém lhe pode prescrever ser nobre e elevado, moral, piedoso, cristão, ou isto ou aquilo; ainda menos se lhe pode censurar ser isto ou aquilo. Ele é o espelho da humanidade, e traz-lhe à consciência todos os sentimentos de que ela está cheia e animada.

 Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, Lx,2021, Ed 70, p.313,314

Trad. M.F. Sá Correia

 

segunda-feira, abril 13, 2020

Andrey, what is art?

domingo, abril 12, 2020

A arte como fuga


Henri Cartier-Bresson, Nice


Teremos ganho muito para a ciência estética ao chegarmos não só à compreensão lógica, mas também à imediata segurança da opinião de que o progresso da arte está ligado à duplicidade do Apolínico e do Dionisíaco; de maneira parecida com a dependência da geração da dualidade dos sexos, em lutas contínuas e com reconciliações somente periódicas. Estes nomes tomamos emprestados aos gregos, que manifestam ao inteligente as profundas ciências ocultas da sua conceção artística não em ideias, mas nas figuras enérgicas e claras do seu mundo mitológico. A ambas as divindades artísticas destes, Apolo e Dionísio está ligado o nosso reconhecimento de que existe no mundo grego uma enorme contradição, na origem e nos fins, entre a arte plástica — a de Dionísio; — ambos os impulsos, tão diferentes, marcham um ao lado do outro, na maior parte das vezes em luta aberta e incitando-se mutuamente para novos partos, a fim de neles poder perpetuar a luta deste contraste, que a palavra comum “arte” somente na aparência consegue anular; até que eles afinal, através do milagroso ato metafísico do “desejo” helénico, aparecem unidos, produzindo por fim, nesta união, a obra de arte, tanto dionisíaca quanto apolínica, da Tragédia Ática.

Para melhor apreciarmos ambos os impulsos imaginemo-los, antes de mais nada, como mundos de arte separados do sonho e da embriaguez; fenómenos fisiológicos entre os quais é possível notar uma contradição como a existente entre o apolínico e o dionisíaco. No sonho se apresentaram primeiramente, segundo a opinião de Lucrécio, as esplêndidas figuras divinas às almas humanas.

No sonho via o grande escultor a fascinante estrutura dos membros de seres sobre-humanos, e o poeta helénico, inquirido sobre os segredos da produção poética, seria da mesma forma lembrado ao sonho e teria dado ensinamentos parecidos, como aos de Hans Sachs nos Mestres-Cantores:

Meu amigo, eis a obra do poeta,

Percebe seus sonhos e os interpreta.

Acredita, o verdadeiro, o humano destino

É-lhe mostrado ao sonhar:

Toda a arte poética e todo poetar,

Nada mais é que uma interpretação com tino.

O belo brilho dos mundos de sonho, em cuja produção o homem é um artista perfeito, é condição de existência para toda arte plástica, e também, como veremos, de uma parte essencial da poesia. Gozamos a imediata compreensão da figura, todas as formas falam connosco, nada há de indiferente e desnecessário. Na vida mais elevada desta verdade de sonho ainda temos o sentimento transparente da sua aparência; pelo menos é esta a minha experiência, para cuja continuidade e normalidade teria eu de citar diversos testemunhos e os ditos dos poetas. O filósofo tem mesmo o pressentimento de que também sob esta realidade em que vivemos e somos, se encontra oculta uma bem diferente, e que portanto também ela é aparência; e Schopenhauer indica mesmo o dom que a alguns homens  todas as cousas parecem meros fantasmas ou sonhos, como sinal de aptidão filosófica. Assim como o filósofo se porta, perante a realidade da existência, assim se comporta o homem, artisticamente impressionável, perante a realidade do sonho; ele gosta de contemplar, e contempla atentamente; pois é por estas imagens que ele interpreta a vida, e com estes acontecimentos se exercita para a mesma.

Friedrich Nietzsche, A Origem da tragédia, cap.4 p.20

quarta-feira, abril 08, 2020

Compreender o artista através da interpretação de uma obra?


1889, "Paisagem de Saint- Rémy", Fotografia de Saint-Paul-de- Mausole, hospício onde à época Van Gogh esteve internado, e "Vista de Saint- Rémy".

"Quanto mais nos aproximamos da nossa época, mais os documentos estão conservados. No caso de Avista de Saint-Rémy, de Van Gogh, é possível conhecer a paisagem que o inspirou, seguir pelos esboços e os desenhos a forma como a transformou, e chegar ao quadro, ou melhor, à série, de quadros que terminam esta trajectória criadora.

A paisagem é a que Van Gogh via da janela do pequeno atelier posto à sua disposição no asilo de loucos onde se encontrava em tratamento, após a grande crise de Arles. Uma fotografia mostra este local, que o tempo pouco modificou: o jardim provençal cercado por um murovelho, por detrás do qual estão escalonados os planos de árvores que conduzem às colinas do fundo. Tudo é triste, indiferente. Van Gogh começa a desenhar. A natureza não lhe interessa: o que lhe interessa é interrogar-se e projectar-se a si próprio, procurando reconhecer no mundo afigura do seu drama. A onda interior que o transtorna, erguendo-o a paroxismos de que tomba, recaindo na angústia, abandona-o precipitadamente. Como uma vaga que transborda, ela corre através do pequeno campo, e segue o seu curso louco, amedrontada, com ondulações rápidas de réptil assustado que foge de um perigo. Como nos pesadelos, o muro recua quase até ao horizonte; por detrás dele, a vegetação ferve e de repente ncendeia-se; os pinheiros estalam, as folhas lançam chamas para o ar. O próprio céu, maltratado pelos remoínhos amplificados, como ondas de uma deflagração, dissolve-se, num movimento giratório, em redor do seu centro, o sol.
Desta forma, os desenhos enunciaram o drama. Van Gogh aborda o quadro definitivo. As ondas, já postas em movimento, amplificam-se, o campo inteiro agita-se como um mar remexido por um vento de tempestade. As linhas incham, empurram-se e correm (...). O sol arrasta o seu giro sem fim o quadro nteiro, e as pinceladas não marcam senão os remoínhos do maelstrom que se amplifica indefenidamente; ele volta, tremendo de fúria e de angústia, para o universo que o evocou. O pintor, ponto de chegada do mundo, e ponto de partida da pintura, ergue-se no coração da arte."

René Huygue, Os poderes da imagem, Lx, Ed. 70

Este texto tem o poder de ser evocativo, de nos transportar para o que poderia ser a exaltação artística do pintor Van Gogh,  não em abstrato, a exaltação de um pintor, que viveu  um certo drama, naquele hospício de Saint Rémy. Como se pode compreender o proceso da criação através da interpretação das formas e dos elementos de um quadro concreto "A vista de Saint- Rémy"?  Pensar a arte assumindo que esse pensamento é livre, no sentido de que pensar é antes de mais, fazer o mesmo movimento de criar, ver e sentir e depois encontrar uma forma de expressar o que vemos e o que sentimos, cientes de que o que vemos exalta de uma certa forma particular, o que sentimos. Nesse aspeto, concordo com Huygue, essa parece-me a única forma legítima e interessante de fazer crítica literária ou filosofia da arte, porque tenta mostrar a forma como cada um recria o que vê de acordo com a sua sensibilidade, não deixando contudo de o fundamentar em exemplos e narrativas verosímeis e igualmente apelativas, tanto quanto a obra de que se partiu. Por outro lado arrepia-me a posição que tende a compreender o processo psicológico da criação e a descrever as intenções do artista; é uma pretensão vã e enganadora, pois se dissermos o oposto da intenção de Van Gogh  que o autor expõe neste texto, não ver-se na paisagem que vê, mas sim fugir de si, alienando-se na paisagem que vê, poderia ser igualmente verdadeiro, daí ser vã a pretensão de tentar captar as intenções do artista no acto criador, é como apanhar o ar.

Helena Serrão

terça-feira, abril 07, 2020

Arte

 Baskiat

" As obras de Arte são de uma solidão infinita; para as abordar, nada pior do que a crítica. Só o amor pode prendê-las, conservá-las, ser justo para elas. Dê sempre razão ao seu própprio sentimento, contra essas análises, esses resumos, essas introduções, (...) Aos simples fiéis a Arte exige tanto como aos criadores." , dizia Rainer Maria Rilke, nas suas Cartas a um Poeta. Perante este aviso, deveremos desde já ficar suficientemente precavidos face às dificuldades emergentes de um território cujos contornos não são facilmente apropriáveis e cuja aparente "claridade" se arrisca a ser a "sombra" luminosa de uma outra obscuridade.

O fenómeno estético apresenta-se como uma estrutura multifacetada, plena de ambiguidades e de cargas simbólicas, local onde a Utopia, o Sonho e o Impossível irrompem quando menos se espera, surpreendendo a nossa sensibilidade demasiadamente fatigada pelas solicitações do quotidiano, confrontando o "entendimento" com situações e propostas que , não raro, se situam aquém e além da lógica da identidade e do terceiro excluído! porque não somos criadores, porque estamos predominantemente voltados para o campo da reflexão, arriscamo-nos a ficar condenados ao limiar do essencial, percorrendo epidermicamente a periferia, caracterizando mais e melhor aquilo que "não é" do que aquilo que "é".

Levi Malho, O Signo de Orfeu, Requiem por uma Estética Insular, (Porto, Edições Afrontamento, 1984), pp. 314-315.

segunda-feira, março 23, 2020

Visita ao Museu

Courbet,  estúdio do artista, 1854



Para visitar o museu abra o endereço abaixo
https://artsandculture.google.com/partner?hl=en

segunda-feira, março 11, 2019

Teoria histórica da arte





Vanessa Bell - Inglaterra -1879/1961

Como a designação da teoria deixa adivinhar, para Levinson a essência da arte reside no seu carácter histórico ou retrospetivo. Toda a arte é o resultado de uma atividade humana que se relaciona com o seu passado através da intenção de um indivíduo, que pode ou não conhecer essa história. Todas as obras de arte se referem necessariamente ao seu passado e, como tal, é legítimo considerar que, mais do que uma sucessão de eventos, existe evolução na arte. A responsabilidade por essa evolução pode atribuir-se não a uma instituição, mas às intenções de indivíduos que pretendem que certos objetos sejam vistos como já o foram obras de arte do passado. Uma das primeiras versões da definição histórica proposta pela teoria é a seguinte:

«(I) X é uma obra de arte = df X é um objeto acerca do qual uma pessoa ou pessoas, possuindo a propriedade apropriada sobre X, têm a intenção não-passageira de que este seja perspetivado-como-uma-obra-de-arte, i.e., perspetivado de qualquer modo (ou modos) como foram ou são perspetivadas corretamente (ou padronizadamente) obras de arte anteriores.» (Levinson, 1979, p. 236)

Como a própria mancha de texto deixa adivinhar, Levinson pretende formular uma definição explícita composta por condições necessárias e suficientes. Para compreender se é ou não uma definição correta é preciso explicitar os termos da definição. A primeira condição é a do direito de propriedade. Segundo esta, o artista não pode transformar em arte objectos que não lhe pertençam ou em relação aos quais não esteja devidamente autorizado a agir pelos seus proprietários. A esta luz fica vedada ao artista a possibilidade de transformar em arte algo que, não sendo seu, apenas indica ou nomeia como tal. O exemplo paradigmático de uma tentativa de o fazer foi protagonizado por Duchamp em 1916, quando indicou como arte o Edifício Woolworth. Das suas notas figurava uma indicação para procurar uma inscrição para o Edifício, então o mais alto de Nova Iorque, como readymade. Contrariamente ao que diria Dickie, que aceitaria que o Edifício Woolworth adquiriria o estatuto de obra da arte com a apresentação, Levinson afirma que este não pode chegar a ser arte, porque Duchamp não o possui nem está autorizado pelos seus proprietários a usá-lo como produto artístico. Pelas mesmas razões, os artistas não poderão transformar em arte paisagens, pessoas ou acontecimentos sob os quais não tenham qualquer direito de propriedade. Esta condição afasta a teoria Histórica tanto da proposta Institucional como de todas as outras que afirmam que tudo pode ser arte. Propõe também que se abandone uma visão caricatural do artista em que este surge dotado de um toque de Midas, capaz de transfigurar tudo o que a sua arbitrariedade artística selecionar como arte.

A segunda condição é a existência de um certo tipo de intenção que relaciona a arte do presente com a arte do passado. A arte requer conhecimento que se adquire ao longo do processo de socialização. Mesmo que não possua quaisquer crenças verdadeiras acerca da história da arte, o artista é alguém que tem conhecimentos suficientes acerca dos objetos e dos auditórios para poder formar intenções acerca desses objetos que fazem referência àquilo que a arte já foi. Mas que relação intencional é essa? E em que sentido é usada a palavra «intenção»? Em primeiro lugar, note-se que, para Levinson, a expressão «tem intenção de» é usada em sentido lato, significando esta apenas «faz, apropria-se ou concebe com o propósito de». Ter uma intenção, neste caso, é, então, ter um propósito ou uma finalidade em mente, e desenvolver uma ação para o atingir. Esta pode consistir em fazer, apropriar-se ou conceber algo. Depois, exige-se que a intenção não seja transitória, mas sim persistente ou estável. Impede-se assim que a arte seja fruto de caprichos passageiros ou de ímpetos momentâneos.

Paula Mateus, A teoria histórica de Levinson

domingo, fevereiro 24, 2019

O juízo de gosto




 Helmut Newton, Charlotte Rampling,1973



Temos de voltar novamente a divagar. Pois, na verdade, não se trata somente do estreitamento do conceito do sentido comum passando a ser gosto, mas, da mesma forma, um estreitamento do próprio conceito do gosto. A longa pré-história que esse conceito tem, até Kant o transformar no fundamento da crítica do juízo, permite que se reconheça que o conceito do gosto é originariamente um conceito mais moral do que estético. Descreve um ideal de genuína humanidade e tem a agradecer a sua cunhagem ao empenho de se distinguir criticamente do dogmatismo da "escolástica". A utilização do conceito só mais tarde veio a restringir-se ao "espírito do belo". Na origem da sua história encontra-se Balthasar Gracian. Gracian parte do princípio de que o gosto, sensível, o mais animalesco e o mais íntimo dos nossos sentidos, já contém o ponto de partida da diferenciação que se realiza no julgamento espiritual das coisas. O diferenciar do gosto, que é, de uma forma mais imediata, o usufruir da recetividade e da rejeição, não é, pois, na verdade, um mero instinto, mas já mantém o meio termo entre o instinto e a liberdade espiritual. O que justamente caracteriza o gosto é que ele mesmo, em relação a isso, ganha a distância da escolha e do julgamento, o que pertence à exigência mais iminente da vida. É assim que Gracian já vê no gosto uma "espiritualização da animalidade" e indica, com razão, que a formação (cultura) procede não somente do espírito (ingenio) mas já também do gosto (gusto). É conhecido que o mesmo vale para o gosto sensorial. Existem pessoas que têm uma boa língua, gourmets, que cultivam essas alegrias. Assim, esse conceito do gusto é, para Gracian, o ponto de partida para a formação do ideal social de Gracian. O seu ideal do instruído (do discreto) consiste em que o hombre en su punto adquire a correta liberdade de distância com relação a todas as coisas da vida e à sociedade, de maneira que saberá diferenciar e escolher consciente e ponderadamente. (…)

O gosto não é somente o ideal que apresenta uma nova sociedade, mas em primeiro lugar vem a formar-se, sob o signo desse ideal do "bom gosto" aquilo que, desde então, se denomina a "boa sociedade". Esta já não se reconhece ou se legitima através do nascimento e do status mas, basicamente, em nada mais do que através da comunhão dos seus julgamentos, ou melhor, sabendo elevar-se da parvoíce dos interesses e da privacidade das preferências para exigência do julgamento. Sob o conceito de gosto pensa-se, sem dúvida, uma forma de conhecimento. Ocorre sob o signo do bom gosto, que se seja capaz de manter distância quanto a si próprio e quanto às preferências privadas. O gosto não é, segundo sua natureza mais genuína, nada que seja privado, mas, sim, um fenómeno social de primeira categoria. Pode até opor-se à inclinação privada do indivíduo, como se fosse uma instância de julgamento, em nome de uma universalidade, do que ele acredita e  que representa. Pode-se ter uma preferência por algo que o próprio gosto ao mesmo tempo repudia. A sentença judicial do gosto possui nisso uma peculiar decisão. Quanto a questões de gosto não existe, reconhecidamente, nenhuma possibilidade de argumentar (Kant diz corretamente que, quanto a coisas do gosto, existe discórdia, mas não disputa), mas não somente porque não se consegue estabelecer padrões concetuais universais, que todos tenham de reconhecer, mas porque nem sequer se procuram esses tais padrões, e até, sequer, os acharíamos justos, caso existissem. Gosto, temos de ter - não se pode deixar que nos seja demonstrado, e também não se pode substituí-lo por mera imitação. Da mesma forma, o gosto não é nenhuma mera propriedade privada, porque ele sempre quer ser bom gosto. A decisão do juízo do gosto inclui a sua reivindicação de validade. O bom gosto está sempre seguro de seu julgamento, isto é, ele é, de acordo com sua natureza, um gosto seguro: um aceitar ou rejeitar que não conhece nenhuma oscilação, nenhum olhar de soslaio a um outro e nenhuma procura por motivos.(...)

O conceito do "mau gosto" não é pois um contra fenómeno original com relação ao "bom gosto". O seu oposto é, antes, "não ter gosto algum". O bom gosto é uma sensibilidade que evita tão naturalmente tudo que é chocante, de maneira que a sua reação se torna, para quem não tem gosto, simplesmente incompreensível.



Hans-Georg Gadamer , Verdade e método, 1999, Petropólis, Ed.Vozes, P.82,83 e 84