domingo, fevereiro 24, 2019

O juízo de gosto




 Helmut Newton, Charlotte Rampling,1973



Temos de voltar novamente a divagar. Pois, na verdade, não se trata somente do estreitamento do conceito do sentido comum passando a ser gosto, mas, da mesma forma, um estreitamento do próprio conceito do gosto. A longa pré-história que esse conceito tem, até Kant o transformar no fundamento da crítica do juízo, permite que se reconheça que o conceito do gosto é originariamente um conceito mais moral do que estético. Descreve um ideal de genuína humanidade e tem a agradecer a sua cunhagem ao empenho de se distinguir criticamente do dogmatismo da "escolástica". A utilização do conceito só mais tarde veio a restringir-se ao "espírito do belo". Na origem da sua história encontra-se Balthasar Gracian. Gracian parte do princípio de que o gosto, sensível, o mais animalesco e o mais íntimo dos nossos sentidos, já contém o ponto de partida da diferenciação que se realiza no julgamento espiritual das coisas. O diferenciar do gosto, que é, de uma forma mais imediata, o usufruir da recetividade e da rejeição, não é, pois, na verdade, um mero instinto, mas já mantém o meio termo entre o instinto e a liberdade espiritual. O que justamente caracteriza o gosto é que ele mesmo, em relação a isso, ganha a distância da escolha e do julgamento, o que pertence à exigência mais iminente da vida. É assim que Gracian já vê no gosto uma "espiritualização da animalidade" e indica, com razão, que a formação (cultura) procede não somente do espírito (ingenio) mas já também do gosto (gusto). É conhecido que o mesmo vale para o gosto sensorial. Existem pessoas que têm uma boa língua, gourmets, que cultivam essas alegrias. Assim, esse conceito do gusto é, para Gracian, o ponto de partida para a formação do ideal social de Gracian. O seu ideal do instruído (do discreto) consiste em que o hombre en su punto adquire a correta liberdade de distância com relação a todas as coisas da vida e à sociedade, de maneira que saberá diferenciar e escolher consciente e ponderadamente. (…)

O gosto não é somente o ideal que apresenta uma nova sociedade, mas em primeiro lugar vem a formar-se, sob o signo desse ideal do "bom gosto" aquilo que, desde então, se denomina a "boa sociedade". Esta já não se reconhece ou se legitima através do nascimento e do status mas, basicamente, em nada mais do que através da comunhão dos seus julgamentos, ou melhor, sabendo elevar-se da parvoíce dos interesses e da privacidade das preferências para exigência do julgamento. Sob o conceito de gosto pensa-se, sem dúvida, uma forma de conhecimento. Ocorre sob o signo do bom gosto, que se seja capaz de manter distância quanto a si próprio e quanto às preferências privadas. O gosto não é, segundo sua natureza mais genuína, nada que seja privado, mas, sim, um fenómeno social de primeira categoria. Pode até opor-se à inclinação privada do indivíduo, como se fosse uma instância de julgamento, em nome de uma universalidade, do que ele acredita e  que representa. Pode-se ter uma preferência por algo que o próprio gosto ao mesmo tempo repudia. A sentença judicial do gosto possui nisso uma peculiar decisão. Quanto a questões de gosto não existe, reconhecidamente, nenhuma possibilidade de argumentar (Kant diz corretamente que, quanto a coisas do gosto, existe discórdia, mas não disputa), mas não somente porque não se consegue estabelecer padrões concetuais universais, que todos tenham de reconhecer, mas porque nem sequer se procuram esses tais padrões, e até, sequer, os acharíamos justos, caso existissem. Gosto, temos de ter - não se pode deixar que nos seja demonstrado, e também não se pode substituí-lo por mera imitação. Da mesma forma, o gosto não é nenhuma mera propriedade privada, porque ele sempre quer ser bom gosto. A decisão do juízo do gosto inclui a sua reivindicação de validade. O bom gosto está sempre seguro de seu julgamento, isto é, ele é, de acordo com sua natureza, um gosto seguro: um aceitar ou rejeitar que não conhece nenhuma oscilação, nenhum olhar de soslaio a um outro e nenhuma procura por motivos.(...)

O conceito do "mau gosto" não é pois um contra fenómeno original com relação ao "bom gosto". O seu oposto é, antes, "não ter gosto algum". O bom gosto é uma sensibilidade que evita tão naturalmente tudo que é chocante, de maneira que a sua reação se torna, para quem não tem gosto, simplesmente incompreensível.



Hans-Georg Gadamer , Verdade e método, 1999, Petropólis, Ed.Vozes, P.82,83 e 84

1 comentário:

Um peregrino disse...

1 - "[...]o conceito do gosto é originariamente um conceito mais moral do que estético."

- Se você não foi ensinado e não teve chance de observar escolhas alheias, escolherá o que lhe parecer mais agradável, de diversas formas. O próprio cérebro se encarregará de, instintivamente, escolher por você. Creio que nesse caso seja mais estético (ainda que instintivo) do que moral.


2 - "Gracian parte do princípio de que o gosto, sensível, o mais animalesco e o mais íntimo dos nossos sentidos, já contém o ponto de partida da diferenciação que se realiza no julgamento espiritual das coisas. O diferenciar do gosto, que é, de uma forma mais imediata, o usufruir da recetividade e da rejeição, não é, pois, na verdade, um mero instinto, mas já mantém o meio termo entre o instinto e a liberdade espiritual. O que justamente caracteriza o gosto é que ele mesmo, em relação a isso, ganha a distância da escolha e do julgamento [...]"

- "Julgamento espiritual" só se for involuntário, que não seria julgamento, seria instinto.
Se você pode explicar o motivo ou motivos de sua escolha, é um julgamento racional, se não podes, é instintivo. SE não sabes porque escolheste algo a algo, foi instinto, não julgamento.

3 - "É assim que Gracian já vê no gosto uma "espiritualização da animalidade" e indica, com razão, que a formação (cultura) procede não somente do espírito (ingenio) mas já também do gosto (gusto)."

- O gosto é instintivo, a escolha racional é racional.


4 - "Pode-se ter uma preferência por algo que o próprio gosto ao mesmo tempo repudia."

-Então não é "preferência" é uma escolha racional buscando agradar ou pelo menos não desagradar a outros.

5 - "(Kant diz corretamente que, quanto a coisas do gosto, existe discórdia, mas não disputa), mas não somente porque não se consegue estabelecer padrões concetuais universais, que todos tenham de reconhecer, mas porque nem sequer se procuram esses tais padrões, e até, sequer, os acharíamos justos, caso existissem."

- Não parece. O que há de normas e cânones de bom gosto não é brincadeira. Há escolhas da elite e do povão. Qual será a considerada de "bom gosto"?

6 - "[...], porque ele sempre quer ser bom gosto."

- Todo gosto é bom gosto para quem o sente. Se você escolhe algo que está em desacordo com seu gosto pessoal por achar que ele é inferior e um mau gosto em relação ao dos outros, o problema é seu.

7 - "O bom gosto é uma sensibilidade que evita tão naturalmente tudo que é chocante, de maneira que a sua reação se torna, para quem não tem gosto, simplesmente incompreensível."

- Mas que grande besteira! Quem não tem gosto?