Philippe Gras, Maio 1968, Paris
A realidade-humana é livre porque não se basta, porque está
perpetuamente desprendida de si mesma, e porque aquilo que foi, está separado
por um nada, daquilo que é e daquilo que será. E, por fim, porque o seu próprio
ser presente é “nadificação” na forma do "reflexo/refletidor".O homem
é livre porque não é si mesmo, mas presença a si.
O ser que é o que é não poderia ser livre. A liberdade é
precisamente o nada que é o âmago do homem e obriga a realidade humana a
fazer-se em vez de ser. Como vimos, para a realidade humana, ser é escolher-se:
nada lhe vem de fora, ou tampouco de dentro, que ela possa receber ou aceitar.
Está inteiramente abandonada, sem qualquer ajuda de nenhuma espécie, à
insustentável necessidade de fazer-se ser até ao mínimo detalhe. Assim, a
liberdade não é um ser: é o ser do homem, ou seja, seu nada de ser. Se
começássemos por conceber o homem como algo pleno, seria absurdo procurar nele momentos
ou regiões psíquicas em que fosse livre: daria no mesmo buscar o vazio em um
recipiente que previamente preenchemos até à borda. O homem não poderia ser ora
livre, ora escravo: é inteiramente e sempre livre, ou não o é. Essas
observações, se soubermos utilizá-las, podem levar-nos a novas descobertas. Em
primeiro lugar, permitirão esclarecer as relações entre a liberdade e o que
denominamos "vontade". Uma tendência bastante comum, com efeito, visa
assemelhar os atos livres e os atos voluntários, e restringir a explicação
determinista ao mundo das paixões. É, em suma, o ponto de vista de Descartes. A
vontade cartesiana é livre, mas existem as "paixões da alma".
Descartes tentará ainda uma interpretação fisiológica dessas paixões. Mais
tarde, buscar-se-á instituir um determinismo puramente psicológico. As análises
intelectualistas que um Proust, por exemplo, tentou realizar do ciúme ou do snobismo
podem servir de ilustração a esta conceção do "mecanismo" passional. Seria
necessário então conceber o homem como simultaneamente livre e determinado; e o
problema essencial seria o das relações entre esta liberdade incondicionada e
os processos determinados da vida psíquica: de que modo tal liberdade dominará
as paixões? Uma sabedoria que vem da Antiguidade, a sabedoria dos estoicos, ensinará
a concordar com as próprias paixões para que se possa dominá-las; em suma, irá
aconselhar o homem a conduzir-se em relação à afetividade como o faz com
respeito à natureza em geral, quando lhe obedece a fim de melhor a controlar. A
realidade humana surge, pois, como um livre poder sitiado por um conjunto de processos
determinados. Claro está que não poderíamos aceitar semelhante conceção. Mas
tentemos compreender melhor as razões da nossa recusa.
(…) a vontade, longe de ser a manifestação única ou pelo
menos privilegiada da liberdade, pressupõe, ao contrário, como todo
acontecimento do Para-si, o fundamento de uma liberdade originária para poder
constituir-se como vontade. A vontade, com efeito, coloca-se como decisão
refletida em relação a certos fins. Mas esses fins não são criados por ela. A
vontade é sobretudo uma maneira de ser em relação a ela: decreta que a
perseguição a esses fins será refletida e deliberada. A paixão pode posicionar
os mesmos fins. Por exemplo, frente a uma ameaça, posso fugir correndo, por
medo de morrer. Esse fato passional não deixa de posicionar implicitamente como
fim supremo o valor da vida. Outra pessoa na mesma situação, ao contrário, achará
ser preciso permanecer no mesmo lugar, ainda que a resistência pareça, a
princípio, mais perigosa do que a fuga: ele "aguentará firme". Mas o seu
objetivo, embora melhor compreendido e explicitamente posicionado, continua o
mesmo que no caso da reação emocional. Simplesmente, os meios para alcançá-lo
estão mais claramente concebidos, alguns deles são rejeitados como duvidosos ou
ineficazes, os demais são organizados com mais solidez. A diferença recai aqui
sobre a escolha dos meios e o grau de reflexão e explicação, não sobre o fim. Todavia,
aquele que foge é considerado "passional", e reservamos o epíteto de
"voluntário" para o homem que resiste. Trata-se, pois, de uma diferença
de atitude subjetiva em relação a um fim transcendente. Mas se não quisermos
cair no erro que denunciávamos atrás, considerando esses fins transcendentes
como pré-humanos e um limite a priori da nossa transcendência, vemo-nos
obrigados a reconhecer que são a projeção temporal da nossa liberdade. A
realidade humana não poderia receber os seus fins, como vimos, nem de fora nem
de uma pretensa "natureza" interior. Ela escolhe-os e, por essa mesma
escolha, confere-lhes uma existência transcendente como limite externo dos seus
projetos. Desse ponto de vista -e se compreendemos claramente que a existência
do ser aqui e agora precede e comanda a sua essência -, a realidade humana, na
sua origem , decide definir-se pelos seus fins. Portanto, é o posicionamento
dos meus fins últimos que caracteriza o meu ser e este posicionamento dos fins
identifica-se como o brotar originário da liberdade que é a minha. E esse
brotar é uma existência; nada tem de essência ou propriedade de um ser que
fosse engendrado conjuntamente com uma ideia. Assim, a liberdade, sendo
assimilável à minha existência, é fundamento dos fins que tentarei alcançar,
seja pela vontade, seja por esforços passionais. Não poderia, portanto,
limitar-se aos atos voluntários.”
Jean-Paul Sartre, O ser e o nada , p.545,546 e 547,
Petrópolis, Vozes 2007 (L’être et le néant,
1943 Gallimard)
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