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terça-feira, julho 10, 2018

Radicalismos 5



Instituição dos jogos cénicos. 

Todavia, ficai sabendo, vós que o ignorais e vós também que fingis ignorá-lo; prestai atenção, vós que murmurais contra quem vos libertou de tais senhores: os jogos cénicos, espetáculos de torpeza e desvario de vaidades, foram criados em Roma não por vícios humanos mas por ordem dos vossos deuses. Seria mais tolerável conceder honras divinas a Cipião do que prestar culto a deuses deste jaez. Porque estes não eram melhores que o seu pontífice. Vede se prestais atenção — se é que o vosso espírito, embriagado por erros sorvidos desde há tanto tempo, vos permite tom ar em consideração alguma coisa de são. Os deuses ordenavam exibições de jogos teatrais em sua honra para refrearem a pestilência dos corpos. O pontífice, ao invés, proibia a própria construção do teatro para evitar que as vossas almas se empestassem. Se em vós resta uma centelha de lucidez para dar preferência à alma sobre o corpo — escolhei a qual dos dois deveis prestar culto. E não se acalmou aquela pestilência dos corpos, porque, num povo belicoso como este, até então acostumado apenas aos jogos de circo, se insinuou a insânia refinada das representações teatrais. Mas a astúcia de espíritos nefandos, prevendo que a seu tempo terminaria aquela peste, teve o cuidado de inocular outra muito mais grave e do seu pleno agrado, desta vez não nos corpos mas nos costumes. Esta peste cegou o espírito a estes desgraçados com tão espessas [185] trevas e tornou-os tão disformes, que, agora (a posteridade talvez não acredite se lhe chegar ao ouvido), devastada que foi Roma, os contagiados desta peste que na fuga conseguiram chegar a Cartago, todos os dias e à porfia se encontram nos teatros enlouquecidos pelos histriões.

Santo Agostinho, A cidade de Deus, Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian, Livro I, p.185


Tradução Dias Pereira

Ora Agostinho considera o Teatro perverso, ora ele é realizado a pedido e como oferenda a uma divindade, logo, a divindade é perversa. Aqui há um juízo de valor que se fundamenta numa crença prévia. O teatro é perverso porquê? Porque não é uma oferenda ao Deus Único? Porque não tem como fim a sua exaltação? 

quarta-feira, fevereiro 10, 2010

Radicalismos 6


Jaques Henri Lartigue, Jogo de Ténis, 1921, Paris

Percorro a sala dos olhos. Que farsa! Toda essa gente sentada com um ar sério; comem. Não, não comem: reparam forças para levar a bom termo a tarefa que lhes foi atribuída. Cada um deles tem o seu pequeno entretenimento pessoal que os impede de se aperceberem que existem; não há nem um que não se julgue indispensável a alguém ou a alguma coisa. Não era o Autodidacta que me dizia outro dia: “ Ninguém era mais qualificado que Nouçapié para empreender esta vasta síntese?" Cada um faz a sua pequena coisa e ninguém é mais qualificado do que ele para a fazer. Ninguém mais qualificado que o caixeiro viajante para usar a pasta Swan. Ninguém  mais qualificado do que esse interessante rapaz, para espreitar por debaixo das saias da sua vizinha. E eu, eu estou entre eles, se repararem em mim pensarão que ninguém é mais qualificado que eu para fazer o que faço. Mas eu sei. Não tenho ar de nada, mas sei que existo e eles também existem. Se conhecesse a Arte de persuadir, iria sentar-me perto de um destes senhores de cabelos brancos e explicar-lhe-ia o que é a existência. Ao imaginar a cara que faria, desatei a rir. O Autodidacta olhava-me surpreendido. Gostaria de parar; mas não podia: ri até às lágrimas.
- Está muito feliz, senhor, disse-me o Autodidacta com ar circunspecto.



-É porque penso, disse-lhe a rir, que aqui estamos, iguais ao que somos, a comer e a beber para manter a nossa preciosa existência e, que não há nada, nada, nenhuma razão de existir.


Jean-Paul Sartre, La nausée, Gallimard, 1938,Barcelona, 2009, pp160,161


Tradução Helena Serrão