Mostrar mensagens com a etiqueta Albert Camus. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Albert Camus. Mostrar todas as mensagens

sábado, janeiro 06, 2018

Camus, o homem revoltado


Sorolla, 1894, Ainda dizem que o peixe é caro



“Se os homens não conseguem referir- se a um valor comum, reconhecido por todos em cada um deles, então o Homem torna-se incompreensível para o próprio homem. O rebelde exige que esse valor seja claramente reconhecido em si mesmo, porque suspeita ou sabe que, sem ele, a desordem e o crime reinariam no mundo. O movimento de revolta surge nele como uma reivindicação de clareza e de unidade. A mais elementar rebelião exprime, paradoxalmente, a aspiração a uma ordem. Linha por linha, essa descrição convém ao revoltado metafísico. Este insurge-se contra um mundo fragmentado para dele reclamar a unidade. Contrapõe o princípio de justiça que nele existe ao princípio de injustiça que vê no mundo. Primitivamente, nada mais quer senão resolver essa contradição, instaurar o reino unitário da justiça, se puder, ou o da injustiça, se a isso for compelido. Enquanto espera, denuncia a contradição. Ao protestar contra a condição naquilo que tem de inacabado, pela morte, e de disperso, pelo mal, a revolta metafísica é a reivindicação motivada de uma unidade feliz contra o sofrimento de viver e de morrer. Se a dor da morte generalizada define a condição humana, a revolta, de certa forma, é dela contemporânea. Ao mesmo tempo em que recusa a sua condição mortal, o revoltado recusa-se a reconhecer o poder que o faria viver nessa condição. O revoltado metafísico, portanto, certamente não é ateu, como se poderia pensar, e sim obrigatoriamente blasfemo. Ele blasfema, simplesmente em nome da ordem, denunciando Deus como o pai da morte e o supremo escândalo. Voltemos ao escravo revoltado para esclarecer a questão. No seu protesto, ele estabelecia a existência do senhor contra o qual se revoltava. No entanto, demonstrava simultaneamente que o poder do senhor dependia de sua própria subordinação e afirmava o seu próprio poder: o de questionar permanentemente a superioridade que até então o dominava. Nesse sentido, senhor e escravo estão realmente no mesmo barco: a realeza temporária de um é tão relativa quanto a submissão do outro. As duas forças afirmam-se alternativamente, no instante da rebelião, até o momento em que se confrontarão para se destruírem, e uma das duas então desaparecerá provisoriamente.


Da mesma forma, se o revoltado metafísico se volta contra um poder, cuja existência simultaneamente afirma, ele só reconhece a sua existência no próprio instante em que a contesta. Arrasta então esse ser superior para a mesma aventura humilhante do homem, com o seu vão poder equivalendo à nossa vã condição. Submete-o a essa força de recusa, inclina-o por sua vez diante da parte do homem que não se inclina, integra-o à força numa existência para nós absurda, retirando-o, enfim, do seu refúgio intemporal para compromete-lo na história, muito longe de uma estabilidade eterna (que só poderia encontrar no consentimento unânime dos homens). A revolta afirma desse modo que, no seu nível, qualquer existência superior é, pelo menos, contraditória.”



Albert Camus, O Homem revoltado, S. Paulo, Record, 2011, p.30, 31,


A escrita de Camus excessiva e desassombrada já não nos choca mas faz-nos esboçar um meio sorriso de condescendência, a nossa época intelectual prefere discutir argumentos, cansou-se de ideologias ou não as tem, perdeu-as ou não as quer, por demasiado espalhafatosas e condenadas a uma ruína inevitável e previsível. A questão que Camus faz ressurgir não é ideológica mas dialética. A dialética assegura-nos a passagem das contradições próprias do viver histórico e psicológico dos indivíduos e, ao mesmo tempo, eleva a contradição ao estatuto de duplamente necessária; necessária para a passagem a uma ordem diferente e necessária enquanto constante inevitável do percurso humano/histórico. A revolta exprime e resulta da vivência dessa contradição. Ora, quando analisamos filosoficamente a argumentação, vemos apenas uma perspetiva formal ou de conteúdos e descontextualizamos da história e da condição histórica do discurso, desvinculamo-lo assim do seu compromisso ideológico que resulta dessa condição e do ser particular que argumenta num determinado momento da sua vida e da sua história. Deste modo, a própria argumentação fica sem um fim, perdida em si, e sem o seu verdadeiro sentido que é psicológico ou ideológico ou ambos ou um deles.  

sábado, julho 23, 2016

O estrangeiro


Marcelo Mastroianni em " O Estangeiro" de Luchino Visconti, 1967

“Porque atirou sobre um corpo caído?” Mais uma vez não soube responder. O juiz passou a mão pela testa e repetiu a pergunta com a voz um pouco alterada. “Porquê? É preciso que me diga. Porquê?” Continuei calado.
Bruscamente levantou-se, com largas passadas dirigiu-se ao outro lado do escritório e abriu a gaveta de um classificador. Tirou um crucifixo de prata que bramiu enquanto se dirigia para mim. E com a voz alterada, quase trémula, gritou: “Conhece-o, a este aqui?” Disse: “Sim, naturalmente.” Então disse-me muito depressa e de forma apaixonada que acreditava em Deus, e era sua convicção que nenhum homem era suficientemente culpado para que Deus não lhe perdoasse, mas era preciso, pelo arrependimento, o homem tornar-se uma criança na qual a alma é vazia e pronta a tudo acolher. Tinha o corpo todo inclinado sobre a mesa. Agitava o seu crucifixo quase em cima de mim. Para dizer a verdade, mal segui o seu raciocínio, primeiro porque tinha calor e havia no seu escritório grandes moscas que pousavam na minha figura, e também porque ele me fazia um pouco de medo. Reconhecia, ao mesmo tempo, que isso era ridículo porque, afinal de contas, era eu o criminoso. No entanto, ele continuou. Compreendi pouco a pouco que, na sua opinião, não havia senão um ponto obscuro na minha confissão; o facto de ter esperado até atirar o meu segundo tiro de revólver. Quanto ao resto tudo bem, mas isso, ele não compreendia.
Ia dizer-lhe que não valia a pena obstinar-se: esse último ponto não tinha afinal assim tanta importância. Mas ele interrompeu-me e exortou-me uma última vez, do alto da sua autoridade, perguntando-me se acreditava em Deus. Respondi que não. Sentou-se indignado. Disse-me que era impossível, que todos os homens acreditavam em Deus, mesmo aqueles que se desviavam do seu rosto. Era essa a sua convicção, e se algum dia duvidasse, a sua vida não teria mais sentido. “ O senhor quer, exclamou, que a minha vida não tenha mais sentido?” Disse-lhe que, na minha opinião, isso não me dizia respeito. Mas ele avançava por cima da mesa com o Cristo sobre os meus olhos e gritando de um modo descontrolado: “ Eu sou cristão. Peço a Ele perdão pelos teus pecados. Como podes tu não acreditar que ele sofreu por ti?” Reparei que me estava a tratar por tu, mas estava farto. O calor era cada vez maior. Como sempre, quando tinha vontade de me desembaraçar de alguém que já não consiguia ouvir , fiz semblante de concordar. Para minha surpresa, rematou em triunfo: “Vês, vês, dizia ele. Não é verdade que acreditas e que te vais confessar a Ele?” Evidentemente que lhe disse não, mais uma vez. Ele deixou-se cair na cadeira. Tinha um ar cansado. Ficou um momento em silêncio enquanto a máquina, que não tinha parado de seguir o diálogo, se prolongava ainda pelas últimas frases. Depois, olhou-me atentamente e com um pouco de tristeza. Murmurou: “ Nunca vi uma alma tão endurecida como a sua. Os criminosos que têm vindo à minha presença sempre choraram perante esta imagem de sofrimento.” Ia responder que era justamente por isso que eram criminosos. Mas pensei que eu era também como eles. Ainda não me tinha habituado a essa ideia . O juiz levantou-se então como me querendo transmitir que o interrogatório tinha terminado.

Um francês na Argélia mata um árabe numa praia. Razão? Nenhuma em especial, talvez um medo difuso, eram estrangeiros, estava calor, tinha, por acaso, um revólver no bolso. Uma soma de acasos, nenhum motivo especial, nem auto-defesa, nem ódio, nenhum interesse ou ambição, depois nenhum remorso, uma consciência adormecida pelo calor. Um absurdo que se materializou.Estávamos  em 1942 em plena II Guerra Mundial, a morte não tem rosto nem sentido.


sábado, agosto 24, 2013

Albert Camus: As doutrinas messiânicas


O messianismo científico de Marx, esse é de origem burguesa. O progresso, o futuro da ciência, o culto da técnica e da produção são mitos burgueses que se constituíram como dogmas no século XIX. Note-se que o “Manifesto Comunista” aparece no mesmo ano de “ O Futuro da Ciência” de Renan. Esta última profissão de fé, consternante aos olhos do leitor contemporâneo, dá ao mesmo tempo a ideia justa das esperanças quase místicas provocadas no século XIX pelo desenvolvimento da industria e do progresso surpreendentes da ciência. Essa esperança é a da sociedade burguesa por si mesma, a única beneficiária do progresso técnico.

 
A noção de progresso é contemporânea da época das luzes e da revolução burguesa. Podemos, sem dúvida, encontrar os seus inspiradores no século XVII; já a disputa entre Antigos e Modernos introduzia, na ideologia europeia, a noção perfeitamente absurda de um progresso artístico. De forma mais séria podemos também retirar do cartesianismo a ideia de uma ciência que vai crescendo sempre. Mas é Turgot quem primeiramente dá, em 1750, uma definição clara da nova fé. O seu discurso sobre o progresso do espírito humano retoma, no fundo, a história universal de Bossuet. Substitui-se apenas a Vontade divina, pela ideia de progresso. “ A massa total do género humano, através das alternativas da calma e da agitação, do bem e do mal, caminha sempre, embora a passo lento, para uma perfeição maior.” (v.Les Illusions du Progrès.)

Optimismo é o que fornece de essencial as considerações retóricas de Condorcet, doutrinário oficial do progresso que ligava ao progresso do Estado e do qual foi, também ,a vítima oficial, pois o Estado das luzes forçá-lo-ia  envenenar-se. Sorel tinha toda a razão em dizer que a filosofia do progresso era precisamente aquela que convinha a uma sociedade ávida para gozar a prosperidade material devida aos progressos técnicos. A partir do momento que asseguramos que amanhã, dentro da ordem mesma do mundo, será melhor que hoje, podemos divertir-nos em paz.”

Albert Camus, L´homme revolté, Gallimard, 1951, pág.
Tradução de Helena Serrão
 
Apesar de Marx ter negado a verdade à doutrina cristã, a concepção de uma história onde se cumpre um fim, o advento do proletariado como classe dominante,  entronca sem contradição ou conflito na noção mais vasta de um progresso constante, que pode ter retrocessos, mas que se cumprirá seja qual for a vontade dos homens. A complementaridade  com uma visão cristã defensora de um fim último: o reino de Deus, é notória. Cristianismo e marxismo convergem nessa ideia de um progresso inevitável inscrito numa ordem do mundo que é a ordem da história que se faz ao arrepio das vontades individuais e, nesse aspecto, asseguram ambos, porque o justificam, as atrocidades e injustiças da própria marcha da história que sendo feita pelos homens e não segundo uma qualquer ordem que os transcende, se repete sem remissão. 
 
Helena Serrão

terça-feira, setembro 29, 2009

A peste em Roma, Jules Elie Delaunay, 1869, Museu D'Orsay, Paris


(...) esta epidemia não me ensina nada senão que preciso combatê-la ao vosso lado. Sei de ciência certa (Sim, Rieux, vocês vêem bem, eu sei tudo da vida) que cada um a traz em si, a peste, porque ninguém, ninguém no mundo, lhe é imune. É preciso uma vigilância constante para não ser obrigado, num minuto de distracção, a respirar na figura do outro e a pegar-lhe a infecção. O que é natural, é o micróbio. O resto, a saúde, a integridade, a pureza, se quiserem, é produto da vontade e de uma vontade que não deve imobilizar-se. O homem honesto, aquele que não infecta quase ninguém é o que tem menos distracções possíveis. E é necessária vontade e tensão para nunca se distrair! Sim, Rieux, é cansativo ser um pestilento.Mas ainda é mais cansativo não querer sê-lo. É por isso que estamos todos fatigados porque todos nós estamos hoje um pouco pestilentos. Mas é por isso que alguns, querendo deixar de o ser, experimentam um excesso de fadiga da qual nada os poderá libertar senão a morte.





Albert Camus, La Peste, Gallimard, 1979, Cher





Tradução de Helena Serrão

quarta-feira, abril 29, 2009

O Homem revoltado

Rubens, Prometeu

Há, sem dúvida, um mal que os homens acumulam no seu desejo apaixonado de unidade. Mas um outro mal está na origem desse movimento desordenado. Diante desse mal, diante da morte, o homem, no mais profundo de si mesmo, clama por justiça. O cristianismo histórico só respondeu a esse protesto contra o mal pela anunciação do reino e, depois, da vida eterna, que exige a fé. Mas o sofrimento desgasta a esperança e a fé; continua solitário e sem explicação. As multidões que trabalham, cansadas de sofrer e morrer são multidões sem Deus. O nosso lugar, a partir de hoje, é ao seu lado, longe dos antigos e dos novos doutores. O cristianismo histórico adia para além da história a cura do mal e do assassinato, que, no entanto, são sofridos na história. O materialismo contemporâneo julga, da mesma forma, responder a todas as perguntas. Mas, escravo da história, aumenta o domínio do assassinato histórico, deixando-o ao mesmo tempo sem justificação, a não ser no futuro, que, ainda uma vez mais, exige a fé. Em ambos os casos, é preciso esperar, e, enquanto isso, os inocentes não deixam de morrer. Há vinte séculos, a soma total do mal não diminuiu no mundo. Nenhuma cura, divina ou revolucionária, se realizou. A injustiça continua ligada a todo sofrimento, mesmo o mais merecido aos olhos dos homens. O longo silêncio de Prometeu diante das forças que o oprimem continua a gritar. Mas, nesse momento, Prometeu viu os homens voltarem -se contra ele, ridicularizando-o. Acossado entre o mal humano e o destino, o terror e o arbítrio, só lhe resta a sua força de revolta para salvar do assassinato aquilo que ainda pode ser salvo, sem ceder ao orgulho da blasfémia.Compreende-se então que a revolta não pode prescindir de um estranho amor. Aqueles que não encontram descanso nem em Deus, nem na história estão condenados a viver para aqueles que, como eles, não conseguem viver: os humilhados. O corolário do movimento mais puro de então o grito dilacerante de Karamazov: se não forem todos salvos, de que serve a salvação de um só?
Albert Camus, O Homem Revoltado

terça-feira, abril 01, 2008

O sentido da vida


Albert Camus - 1913 /1960

Só há um problema filosófico verdadeiramente sério: o suicídio. Julgar se a vida merece ou não ser vivida é responder uma questão fundamental da filosofia. O resto, se o mundo tem três dimensões, se o espírito tem nove ou doze categorias, vem depois. Trata-se de jogos; é preciso primeiro responder. E se é verdade, como quer Nietzsche, que um filósofo, para ser estimado, deve pregar com o seu exemplo, percebe-se a importância dessa reposta, porque ela vai anteceder o gesto definitivo. São evidências sensíveis ao coração, mas é preciso ir mais fundo até torná-las claras para o espírito. Se eu me pergunto por que julgo que tal questão é mais premente que tal outra, respondo que é pelas ações a que ela se compromete. Nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico. Galileu, que sustentava uma verdade científica importante, abjurou dela com a maior tranqüilidade assim que viu sua vida em perigo. Em certo sentido, fez bem. Essa verdade não valia o risco da fogueira. Qual deles, a Terra ou o Sol gira em redor do outro, é-nos profundamente indiferente.
Albert Camus, O Mito de Sísifo, Livros do Brasil,Lisboa, s.d