Marcelo Mastroianni em " O Estangeiro" de Luchino Visconti, 1967
“Porque atirou sobre um corpo caído?” Mais uma vez não soube
responder. O juiz passou a mão pela testa e repetiu a pergunta com a voz um
pouco alterada. “Porquê? É preciso que me diga. Porquê?” Continuei calado.
Bruscamente levantou-se, com largas passadas dirigiu-se ao outro lado do escritório e abriu a gaveta de um classificador. Tirou um
crucifixo de prata que bramiu enquanto se dirigia para mim. E com a voz
alterada, quase trémula, gritou: “Conhece-o, a este aqui?” Disse: “Sim,
naturalmente.” Então disse-me muito depressa e de forma apaixonada que
acreditava em Deus, e era sua convicção que nenhum homem era suficientemente
culpado para que Deus não lhe perdoasse, mas era preciso, pelo arrependimento, o homem tornar-se uma criança na qual a alma é vazia e
pronta a tudo acolher. Tinha o corpo todo inclinado sobre a mesa. Agitava o seu
crucifixo quase em cima de mim. Para dizer a verdade, mal segui o seu raciocínio,
primeiro porque tinha calor e havia no seu escritório grandes moscas que
pousavam na minha figura, e também porque ele me fazia um pouco de medo.
Reconhecia, ao mesmo tempo, que isso era ridículo porque, afinal de contas, era
eu o criminoso. No entanto, ele continuou. Compreendi pouco a pouco que, na sua
opinião, não havia senão um ponto obscuro na minha confissão; o facto de ter
esperado até atirar o meu segundo tiro de revólver. Quanto ao resto tudo bem, mas
isso, ele não compreendia.
Ia dizer-lhe que não valia a pena obstinar-se: esse último ponto
não tinha afinal assim tanta importância. Mas ele interrompeu-me e exortou-me
uma última vez, do alto da sua autoridade, perguntando-me se acreditava em
Deus. Respondi que não. Sentou-se indignado. Disse-me que era impossível, que
todos os homens acreditavam em Deus, mesmo aqueles que se desviavam do seu
rosto. Era essa a sua convicção, e se algum dia duvidasse, a sua vida não teria
mais sentido. “ O senhor quer, exclamou, que a minha vida não tenha mais
sentido?” Disse-lhe que, na minha opinião, isso não me dizia respeito. Mas ele
avançava por cima da mesa com o Cristo sobre os meus olhos e gritando de um
modo descontrolado: “ Eu sou cristão. Peço a Ele perdão pelos teus pecados. Como
podes tu não acreditar que ele sofreu por ti?” Reparei que me estava a tratar
por tu, mas estava farto. O calor era cada vez maior. Como sempre, quando tinha
vontade de me desembaraçar de alguém que já não consiguia ouvir , fiz semblante de
concordar. Para minha surpresa, rematou em triunfo: “Vês, vês, dizia ele. Não é
verdade que acreditas e que te vais confessar a Ele?” Evidentemente que lhe disse não, mais uma vez. Ele deixou-se cair na cadeira. Tinha um ar cansado. Ficou um
momento em silêncio enquanto a máquina, que não tinha parado de seguir o
diálogo, se prolongava ainda pelas últimas frases. Depois, olhou-me atentamente
e com um pouco de tristeza. Murmurou: “ Nunca vi uma alma tão endurecida como a
sua. Os criminosos que têm vindo à minha presença sempre choraram perante esta
imagem de sofrimento.” Ia responder que era justamente por isso que eram criminosos. Mas pensei que eu era também como eles. Ainda não me tinha habituado a essa ideia . O juiz levantou-se então como me querendo transmitir que
o interrogatório tinha terminado.
Um francês na Argélia mata um árabe numa praia. Razão? Nenhuma em especial, talvez um medo difuso, eram estrangeiros, estava calor, tinha, por acaso, um revólver no bolso. Uma soma de acasos, nenhum motivo especial, nem auto-defesa, nem ódio, nenhum interesse ou ambição, depois nenhum remorso, uma consciência adormecida pelo calor. Um absurdo que se materializou.Estávamos em 1942 em plena II Guerra Mundial, a morte não tem rosto nem sentido.
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