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domingo, janeiro 06, 2013

As dificuldades das ciências humanas e sociais


O grande matemático Lagrange disse há já muito tempo que a Natureza simplesmente não faz caso das dificuldades que coloca aos cientistas, cuja missão – como declarou noutra ocasião – consiste na procura da simplicidade, mas também em desconfiar dela. Quer isto dizer que o melhor – e porventura o único – meio de alcançar uma simplicidade congruente com os factos é lidar de frente com as maiores complexidades, mediante o recurso extremamente prático de tratar a dificuldade per se como um dato fundamental, que não deve ser evitado, mas aproveitado ao máximo – não deve ser explicado, mas utilizado para explicar dados aparentemente mais simples.

            Os primeiros capítulos deste livro, que destacam a angústia causada pelos dados da ciência do comportamento, podem dar a impressão errónea de que a objectividade é impossível a priori na investigação da ciência do comportamento e que para reduzir ao mínimo as deformações devidas à subjectividade devemos interpor mais e mais filtros – testes, técnicas de entrevista, acessórios e outros artifícios heurísticos – entre nós e os nossos objectos. Inclusive, poderia parecer que o melhor “observador” é uma máquina e que o observador humano deveria aspirar a uma espécie de invisibilidade que – caso fosse bem sucedido – eliminaria o observador da situação observacional.(...)

            Não se faz boa ciência ignorando os seus dados mais fundamentais e mais característicos que constituem, de forma muito específica, dificuldades que lhe são inerentes. O especialista do comportamento não pode ignorar a interacção do sujeito e do observador, esperando que, se fingir durante bastante tempo que ela não existe, esta acabe por desaparecer completamente.

            A recusa em tirar partido de maneira criativa dessas dificuldades mais não faz do que conduzir à recolha de dados cada vez menos pertinentes, cada vez mais segmentários, periféricos e mesmo triviais, que não lançam qualquer luz sobre o que há de vivo no organismo ou de humano no homem. Por isso, o cientista deve deixar de destacar exclusivamente a sua manipulação do sujeito e deve, ao mesmo tempo – e por vezes principalmente –, esforçar-se por se compreender a si mesmo enquanto observador. Nesse sentido, toda a experiência praticada sobre um rato é também uma experiência praticada sobre o observador, cujas angústias e manobras de diversão, tal como a sua estratégia de investigação, percepção de dados e tomada de decisões (interpretações dos dados), podem lançar mais luz sobre a natureza do comportamento em geral do que a observação dos ratos – e até de outros seres humanos – poderia fazer.

            Isto implica que as dificuldades tradicionais da ciência do comportamento não se devem apenas a uma determinação pouco ponderada do lugar e natureza da demarcação entre dados “reais” e produtos “incidentais” ou epifenomenais da estratégia de investigação. Indica que o sujeito mais apto a manifestar um comportamento cientificamente utilizável é o próprio observador. Isto significa que uma experiência praticada sobre ratos, uma expedição antropológica, ou uma psicanálise, contribuem mais para a compreensão do comportamento se forem encaradas como fonte de informação acerca do psicólogo dos animais, do antropólogo e do psicanalista, do que se forem consideradas tão-somente como uma fonte de informação acerca dos ratos, dos primitivos ou dos pacientes. Numa verdadeira ciência do comportamento, os primeiros dados são básicos; os outros são epifenomenais… ou seja, falando com clareza, subprodutos que, naturalmente, também merecem ser explorados.

            Não é o estudo do sujeito, mas do observador, que nos faculta o acesso à essência da situação observacional.

            Os dados da ciência do comportamento são então triplos:

            1] O comportamento do sujeito.

            2] As “perturbações” produzidas pela existência do observador e pelas suas actividades no quadro da observação.

            3] O comportamento do observador: as suas angústias, as suas manobras defensivas, a sua estratégia de investigação, as suas “decisões” (=atribuição de significado às suas observações).
 
Georges Devereux, Da Ansiedade ao Método nas Ciências do Comportamento[1]
 
Tradução de Ana Rita Araújo


[1] From anxiety to method in the behavioral sciences, 1967.