quarta-feira, outubro 20, 2021

Contra o relativismo no conhecimento

 

Dança, uma composição sem objeto de Alexander Rodchenko, 1915


 A 22 de outubro de 1996, The New York Times publicou uma inusitada matéria de primeira página. Intitulada “Indian Tribe’s Creationists Thwart Archeologists” (“Criacionistas indígenas tribais contradizem arqueólogos”), descrevia um conflito que surgira entre duas opiniões sobre as origens das populações nativas americanas. Segundo a tese arqueológica dominante, amplamente confirmada, os humanos chegaram inicialmente à América pela Ásia, atravessando o estreito de Bering há cerca de 10 mil anos atrás. Em contrapartida, alguns mitos criacionistas dos nativos americanos sustentam que os povos nativos vivem na América desde que os seus antepassados emergiram pela primeira vez na superfície da Terra, vindos de um mundo subterrâneo de espíritos. (…) O New York Times prosseguia observando que vários arqueólogos, dilacerados entre seu compromisso com o método científico e seu apreço pela cultura nativa, “têm sido empurrados rumo a um relativismo pós-moderno no qual a ciência é apenas mais um sistema de crenças”. Roger Anyon, arqueólogo britânico que trabalhou para o povo Zuni, foi citado como tendo dito: A ciência é apenas uma das várias maneiras de se conhecer o mundo. [A visão de mundo dos Zunis é] tão válida quanto o ponto de vista arqueológico sobre o que é a pré-história. Outro arqueólogo, o doutor Larry Zimmermann, da Universidade de Iowa, reivindicava um tipo diferente de ciência, entre as fronteiras dos modos de conhecimento ocidentais e os modos de conhecimento indígenas. E o doutor Zimmermann acrescentava: Eu pessoalmente rejeito a ciência como um modo privilegiado de ver o mundo.

Por mais surpreendentes que sejam, essas observações seriam de interesse apenas superficial, não fosse a enorme influência da perspetiva filosófica geral que representam. Principalmente dentro da academia, mas também e inevitavelmente, em certa medida, fora dela, tem-se enraizado a ideia de que existem “várias maneiras igualmente válidas de conhecer o mundo”, com a ciência sendo apenas uma delas. Em vastos setores das humanidades e das ciências sociais, essa espécie de “relativismo pós- moderno” sobre o conhecimento conquistou o status de ortodoxia. Vou chamá-lo (do modo mais neutro possível) de doutrina da igual validade: "Existem vários modos de se conhecer o mundo, radicalmente diferentes porém 'igualmente válidos', e a ciência é apenas um deles". Eis alguns exemplos representativos de pensadores que aceitam o pensamento básico por trás da igual validade:

Na medida em que reconhecemos o estatuto convencional e artefactual das nossas formas de conhecimento, tornamo-nos capazes de perceber que nós próprios, e não a realidade, somos os responsáveis pelo que sabemos.1

A ciência do primeiro mundo é uma ciência entre outras...

Para o relativista, não faz sentido a ideia de que algumas regras ou crenças são realmente racionais, distintas daquelas que são aceites como racionais apenas localmente. Uma vez que e não pensa haver normas de racionalidade supraculturais ou livres de contexto, não vê as crenças sustentadas racionalmente ou irracionalmente como duas classes de coisas distintas e qualitativamente diferentes.3

Existem muito mais trechos como estes que poderiam ser citados. O que há na doutrina da igual validade tem que parece tão radical e contraintuitivo? Bem, normalmente pensamos que, numa questão factual como a da pré-história americana, existe um modo de ser das coisas que é independente de nós e das nossas crenças sobre isso – um facto objetivo sobre a questão, por assim dizer, quanto ao lugar de onde se originaram os primeiros americanos.

Não somos necessariamente objetivistas factuais nesse sentido acerca de todos os domínios de juízo. Acerca da moral, por exemplo, algumas pessoas, incluindo filósofos, tendem a ser relativistas: sustentam que existem diversos códigos morais alternativos que especificam o que se considera uma conduta boa ou má, mas que não existem fatos em virtude dos quais alguns desses códigos sejam mais “corretos” do que qualquer um dos outros.

Outros podem ser relativistas acerca da estética, acerca do que é considerado como belo ou artisticamente valioso. Esses tipos de relativismo sobre questões de valor são sujeitos ao debate, é claro, e ainda são debatidos. No entanto, ainda que os consideremos em última instância implausíveis, não nos chocam de imediato como absurdos. Mas quando se trata de uma questão factual como a das origens dos primeiros americanos, tendemos a pensar, sem dúvida, que existe alguma objetividade na matéria. Podemos não saber qual é essa objetividade, mas, tendo formado um interesse na matéria, buscamos conhecê-la. E dispomos de uma variedade de técnicas e métodos - observação, lógica, inferência para a melhor explicação e assim por diante, mas não a leitura de folhas de chá ou o olhar para uma  bola de cristal - que consideramos ser os únicos modos legítimos de formar crenças racionais sobre o assunto. Esses métodos - os métodos característicos do que chamamos “ciência”, mas que também caracterizam também os modos normais de procurar conhecimento – conduziram-nos à ideia de que os primeiros americanos vieram da Ásia através do estreito de Bering. Essa ideia pode ser falsa, é claro, mas é a mais razoável, dadas as evidências - ou assim somos geralmente levados a pensar.

Porque acreditarmos em tudo isto, acatamos as conclusões da ciência: atribuímos-lhe um papel privilegiado na determinação do que ensinar aos nossos filhos na escola, o que se aceita como probatório nos nossos tribunais e o que serve de base às nossas políticas sociais. Consideramos que existe um facto objetivo quanto ao que é verdadeiro. Queremos aceitar somente aquilo sobre o qual há boas razões para acreditarmos ser verdadeiro; e consideramos a ciência como o único bom caminho para chegarmos a crenças razoáveis acerca do que é verdadeiro, pelo menos no reino do puramente factual. Por isso, acatamos a ciência. Para que esse tipo de acatamento à ciência seja correto, no entanto, o conhecimento científico deve ser privilegiado -não pode ser o caso de haver vários outros modos de conhecimento, radicalmente diferentes mas igualmente válidos, com a ciência sendo apenas um deles. Pois se a ciência não fosse privilegiada, precisaríamos conceder tanta credibilidade à arqueologia quanto ao criacionismo Zuni, tanta credibilidade à evolução quanto ao criacionismo cristão - precisamente a opinião defendida por um número crescente de pensadores da academia, e crescentemente ecoada por pessoas de fora dela.

Paul Boghossian, O Medo do conhecimento,Gradiva,2015