quinta-feira, outubro 23, 2014

Logosfera - A Babel das línguas que não se entendem


"Cada povo tem, sobre si, um céu matematicamente dividido em conceitos, e, sob a exigência de verdade, entende que nenhum deus conceptual  pode ser  procurado em lugar algum fora da sua sua esfera "(Nietzsche): somos todos apanhados na verdade das linguagens, isto é, na sua regionalidade,  arrastados para a grande rivalidade que governa as suas vizinhanças. Pois cada palestra (cada ficção) luta pela hegemonia;  se  tem o poder,  atravessa tudo no decorrer quotidiano da vida social, torna-se  doxa , natureza: a conversa pretensamente apolítica dos políticos, funcionários públicos,  da imprensa, rádio, televisão;  é a conversação; Mas, mesmo fora do poder, contra o poder, a rivalidade renasce, os dialectos  lutam entre si. Uma Regra implacável rege a vida da linguagem; ela vem sempre de algum lugar, é guerreira desse  lugar. Imagina-se o mundo da linguagem (o logosfera ) como um enorme e perpétuo conflito de paranóias. Apenas sobrevivem os sistemas  (ficções, dialectos) suficientemente inventivos para produzir uma imagem final, o sistema que marca o adversário   com termos semi-científicos, semi-éticos, espécie  de torniquete que permite ao mesmo tempo ver, explicar, condenar , vomitar, recuperar o inimigo, em uma palavra, fazê-lo pagar.
Roland Barthes, Le plaisir du texte, Seuil, Paris 1973, p.47,48

Tradução de Helena Serrão

O conceito de Logosfera descobre a sua paternidade e também a luz do dia, neste excerto do texto de Barthes. O mundo das linguagens em conflito que lutam pela hegemonia.

terça-feira, outubro 14, 2014

Hannah Arendt entrevistada por Roger Errera em 1973 (extracto)

Hannah Arendt nasceu a 14 de Outubro de 1906, hoje faria 108 anos. À sua fama referenciada na página de pesquisa do Google, não é alheia uma evidente capacidade de comunicação e de reflexão simultaneamente estimulante e original, não só porque faz uso de uma linguagem comum, facilmente compreensível, como alerta para a discussão dado o carácter provocador das suas principais teses. Veja-se na entrevista a relação entre a banalidade do mal e a grandiosidade das suas consequências, qualquer ser humano que se destitui do pensamento pode perpetrar, se as condições o propiciarem, actos causadores dos maiores danos, sem consciência, pois sem pensamento não há verdadeira consciência moral. Esta conclusão resulta da análise de um caso histórico, o julgamento do nazi Adolf Eichmann. No seguimento deste raciocínio, a citação de Brecht, que a comédia pode representar melhor que a tragédia este mal cometido provoca uma inversão dos lugares comuns que usamos e nos quais confiamos, exemplo da função crítica da Filosofia que não precisa afastar-se dos factos históricos, pode perfeitamente partir deles para os interpelar de um outro modo, diferente da História.

quinta-feira, outubro 09, 2014

O homem do momento.



"Teria misturado os papéis, como num jogo de cartas, e tê-los-ia espalhado sobre a mesa. É então esta  a minha vida presente? Tudo se limitava, para mim, neste momento, a uma vintena de nomes e moradas avulsos dos quais eu era a única ligação. E porquê estes e não outros? Que tenho eu de comum com estes nomes e lugares? Encontrava-me num sonho onde se sabe que,assim de um momento para o outro, não se pode acordar quando os perigos nos ameaçam. Se quisesse, abandonaria a mesa e tudo se diluiria, tudo desapareceria no nada. Não restaria senão uma mala de folha de Flandres e alguns recados em papel onde estavam rabiscados alguns nomes e lugares que já não faziam sentido para ninguém."

Patrick Modiano, Du plus loin de l'oubli

helena serrão tradução livre

quinta-feira, outubro 02, 2014

Oxalá desaparecesse a Filosofia!!!



Mas,  qual a atitude do mundo em relação à filosofia? Há cátedras de filosofia nas universidades. (…) Por força da tradição, a filosofia é polidamente respeitada, mas, no fundo, objecto de desprezo. A opinião corrente é a de que a filosofia nada tem a dizer e carece de qualquer utilidade prática. É nomeada em público, mas — existirá realmente? A sua existência prova-se, pelo menos, pelas posições de defesa a que dá lugar.
A oposição à filosofia traduz-se em fórmulas como: a filosofia é demasiado complexa; não a compreendo; está para além do meu alcance; não tenho vocação para ela; e, portanto, não me diz respeito. Ora, isso equivale a dizer: é inútil o interesse pelas questões fundamentais da vida; decide abster-se de pensar no plano geral para mergulhar, através de trabalho consciencioso, num capítulo qualquer da actividade prática ou intelectual; quanto ao resto, bastará ter “opiniões” e contentar-se com elas.
A polémica torna-se encarniçada. Um instinto vital, ignorado de si mesmo, odeia a filosofia. Ela é perigosa. Se eu a compreendesse, teria de alterar a minha vida. Adquiriria outro estado de espírito, veria as coisas a uma claridade insólita, teria de rever os meus juízos. Melhor é não pensar filosoficamente.
E surgem os detractores, que desejam substituir a obsoleta filosofia por algo de novo e totalmente diverso. Ela é desprezada como produto final e mandatária de uma teologia falida. A insensatez das proposições dos filósofos é ironizada. E a filosofia vê-se denunciada como instrumento servil de poderes políticos e outros.
Muitos políticos vêem facilitado o seu nefasto trabalho pela ausência da filosofia. Massas e funcionários são mais fáceis de manipular quando não pensam, mas tão-somente usam uma inteligência de rebanho. É preciso impedir que os homens se tornem sensatos. Mais vale, portanto, que a filosofia seja vista como algo entediante. Oxalá desaparecessem as cátedras de filosofia. Quanto mais vaidades se ensinem, menos estarão os homens em risco de se deixar tocar pela luz da filosofia.

Assim, a filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência dessa condição. A auto-complacência burguesa, os convencionalismos, o hábito de considerar o bem-estar material como razão suficiente de vida, o hábito de só apreciar a ciência em função da sua utilidade técnica, o ilimitado desejo de poder, a bonomia dos políticos, o fanatismo das ideologias, a aspiração a um nome literário — tudo isso proclama a anti-filosofia. E os homens não o percebem porque não se dão conta do que estão a fazer. E permanecem inconscientes de que a anti-filosofia é uma filosofia, embora pervertida, que, se aprofundada, engendraria a sua própria aniquilação.

Karl Jaspers, Introdução ao pensamento filosófico, Cultrix, S. Paulo, s.d, pp.101