sexta-feira, março 17, 2023

O carácter dogmático da pesquisa científica

 


Adolescentes ucranianas partilham um cobertor na fronteira com a Roménia, Março 2022 
 Foto de Ioana Moldovan

" São estas as características da investigação normal que eu tinha em vista quando, no começo deste ensaio, descrevia a pessoa envolvida nela como um solucionador de puzzles, à maneira de um jogador de xadrez. O paradigma que ele adquiriu graças a uma preparação prévia fornece-lhe as regras do jogo, descreve as peças com que se deve jogar e indica o objetivo que se pretende alcançar. A sua tarefa consiste em manipular as peças segundo as regras, de maneira a que seja alcançado o objetivo em vista. Se ele falha, como acontece com a maioria dos cientistas, pelo menos na primeira tentativa de alcançar um problema, esse fracasso só revela a sua falta de habilidade. As regras fornecidas pelo paradigma não podem então ser postas em causa, uma vez que sem essas regras começaria por não haver puzzle para resolver. Não haja portanto dúvidas de que os problemas (ou puzzles), pelos quais o praticante da ciência madura normalmente se interessa, pressupõem a adesão profunda a um paradigma. E é uma sorte que essa adesão não seja abandonada com facilidade. A experiência mostra que, em quase todos os casos, os esforços repetidos, quer do indivíduo quer do grupo profissional, acabam finalmente por produzir, dentro do âmbito do paradigma, uma solução, mesmo para os problemas mais difíceis. Esta é uma das maneiras como a ciência avança. Nessas condições será de nos surpreendermos com a resistência dos cientistas à mudança de paradigmas? O que eles defendem é, no fim de contas, nem mais nem menos do que a base do seu modo de vida profissional.

Chegando aqui, uma das principais vantagens do que comecei por chamar "o dogmatismo científico" deve ser evidente. Como uma rápida vista de olhos a qualquer ciência mostra, a natureza é demasiado complexa para ser explorada ao acaso, mesmo de maneira aproximada. Tem que existir algo que diga ao cientista onde procurar e por que procurar, e esse algo que pode muito bem não durar mais que uma geração, é o paradigma que lhe foi fornecido pela sua educação de cientista. Em virtude desse paradigma e da necessária confiança nele, o cientista deixa em grande parte de ser um explorador, pelo menos de ser um explorador do desconhecido. "

Thomas Kuhn, A função do dogma na investigação científica, Lx, 1979, A regra do Jogo, pp 65,66

sexta-feira, março 10, 2023

O critério de objetividade científica.


 

Jérôme SessiniPrédios residenciais em Borodyanka destruídos por misseis russos

Ucrânia,  9 Abril 9, 2022, 

“É totalmente errado admitir que a objetividade da ciência está dependente da objetividade do cientista. Assim como é totalmente errado pensar que há maior objetividade, a nível individual, nas ciências da natureza, do que nas ciências sociais. O cientista da natureza é tão parcial quanto qualquer outro indivíduo e infelizmente – se não pertencer ao pequeno número dos que estão continuamente a produzir novas ideias -, é conquistado normalmente, de uma forma unilateral e parcial, pelas suas próprias ideias. Alguns dos mais destacados físicos contemporâneos fundaram inclusivamente escolas que opõem uma forte resistência a qualquer ideia nova.

Aquilo que se pode designar por objetividade científica encontra-se única e exclusivamente na tradição crítica, na tradição que, mau grado todas as resistências, permite muitas vezes criticar um dogma dominante. Dito de outro modo, a objetividade da ciência não é uma questão individual dos diversos cientistas, mas antes uma questão social da sua crítica recíproca, da divisão de trabalho, amistoso-hostil, dos cientistas, da sua colaboração, mas também das guerras entre si. Está, por conseguinte, dependente em parte de todo o conjunto de circunstâncias, sociais e políticas, que tornam possível tal crítica. (…)

Numa discussão crítica distinguem-se questões como: (1) a questão da verdade de uma asserção; a questão da sua relevância, do seu interesse e do seu significado relativamente aos problemas em causa. (2) A questão da sua relevância, do seu interesse e do seu significado relativamente a diversos problemas extra-científicos , como por exemplo o problema do bem estar humano, ou ainda, o problema completamente distinto da defesa interna, de uma política ofensiva nacional,  do desenvolvimento industrial, ou do enriquecimento pessoal.

É obviamente impossível dissociar esses interesses extra-científicos da investigação científica; tal como é igualmente inviável, dissocia-los da investigação quer na área das ciências da natureza – no campo da física, por exemplo – quer na área das ciências sociais.

O que é possível e importante e que confere à ciência o seu carácter específico não é a eliminação, mas antes a distinção entre os interesses não inerentes à procura da verdade e o interesse puramente científico pela verdade. No entanto, se bem que a verdade constitua o valor científico essencial, não é o único. A relevância, o interesse e o significado de uma asserção relativamente à formulação puramente científica de um problema constituem igualmente valores científicos de primeira ordem, do mesmo modo que o são a inventividade, a capacidade de esclarecimento, a simplicidade e a precisão. (…)

…uma das tarefas da crítica e da discussão científicas é a de lutar contra a confusão das esferas de valores e, em particular, eliminar as valorações extra-científicas das questões relativas à verdade. (…) O cientista objetivo e despido de valores não é o cientista ideal. Sem paixão nada avança, e muito menos a ciência pura. A expressão “amor à verdade” não é uma mera metáfora.

Portanto, não só a objetividade e o despojamento de valores são praticamente inacessíveis ao cientista, como também essa objetividade e esse despojamento são já em si valores. E sendo o despojamento de valores ele mesmo um valor, a exigência desse despojamento constitui um paradoxo."

Karl Popper, Em busca de um mundo melhor, Lx, 1989, Ed. Fragmentos, pp77,78,79



quarta-feira, março 08, 2023

A verdade e a crítica como valores científicos

 


Jerôme Sessini, Março, 2022, Ucrânia,
 Mulher a evacuar de Irpin

“Estamos, pois, constantemente em busca de uma teoria verdadeira (uma teoria verdadeira e relevante), ainda que não possamos nunca dar razões (razões positivas) para mostrar que encontrámos realmente a teoria verdadeira que buscávamos. Ao mesmo tempo, podemos ter boas razões – isto é, boas razões críticas – para pensar que aprendemos algo de importante: que progredimos em direção à verdade. Pois podemos, primeiro, ter aprendido que uma determinada teoria não é verdadeira segundo o estado presente da discussão crítica; e, em segundo lugar, podemos ter encontrado algumas razões provisórias para acreditar (sim, até para acreditar) que uma teoria nova se aproxima mais da verdade que as suas antecessoras.

Para ser menos abstrato, vou dar um exemplo histórico.

As teorias de Einstein foram muito discutidas pelos filósofos, mas poucos salientaram o importante facto de que Einstein não acreditava que a relatividade especial fosse verdadeira: logo desde o início, ele chamou a atenção para o facto de ela poder ser, quando muito, apenas uma aproximação (já que era válida apenas para o movimento não-acelerado). Encaminhou-se, assim, para uma aproximação maior, a relatividade geral. E, mais uma vez, fez notar, que essa teoria também não podia ser verdadeira, mas sim somente uma aproximação. De facto, buscou uma melhor aproximação durante quase 40 anos, até à sua morte.(…)

Einstein buscou a verdade, e pensou ter razões -razões críticas- que lhe indicavam que não a tinha encontrado. Ao mesmo tempo, deu, ele e muitos outros, razões críticas que indicaram que tinha feito grandes progressos na direção da verdade que as suas teorias resolviam problemas que as respetivas antecessoras não eram capazes de resolver, e que se aproximavam mais da verdade do que as suas rivais conhecidas.

Este exemplo pode apoiar a minha afirmação de que ao substituir o problema da justificação pelo problema da crítica não precisamos de abandonar nem a teoria clássica da verdade como correspondência com os factos, nem a aceitação da verdade como um dos nossos padrões da crítica. Outros valores são a relevância para os nossos problemas e o poder explicativo.

Por conseguinte, ainda que eu mantenha de que o que é mais frequente é nós não encontrarmos a verdade, e não sabermos sequer quando é que a encontrámos, retenho a ideia clássica de verdade absoluta ou objetiva como ideia reguladora; quer isto dizer, como padrão em relação ao qual nos podemos posicionar abaixo.”

Karl Popper, O realismo e o objetivo da ciência, Lx, 1992, Dom Quixote, pp 58,59