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sábado, março 07, 2020

Platão, O Mito dos três Géneros





Com efeito, nossa natureza outrora não era a mesma que a de agora, mas diferente. Em primeiro lugar, três eram os géneros da humanidade, não dois como agora, o masculino e o feminino, mas também havia a mais um terceiro, comum a estes dois, do qual resta agora um nome, desaparecida a coisa; andrógino era então um género distinto, tanto na forma como no nome comum aos dois, ao masculino e ao feminino, enquanto agora nada mais é que um nome posto em desonra. Depois, inteiriça era a forma de cada homem, com o dorso redondo, os flancos em círculo; quatro mãos ele tinha, e as pernas o mesmo tanto das mãos, dois rostos sobre um pescoço torneado, semelhantes em tudo; mas a cabeça sobre os dois rostos opostos um ao outro era uma só, e quatro orelhas, dois sexos, e tudo o mais como desses exemplos se poderia supor. E quanto ao seu andar, era também ereto como agora, em qualquer das duas direções que quisesse; mas quando se lançavam a uma rápida corrida, como os que cambalhotando e virando as pernas para cima fazem uma roda, do mesmo modo, apoiando-se nos seus oito membros de então, rapidamente eles se locomoviam em círculo. Eis por que eram três os géneros, e tal a sua constituição, porque o masculino de início era descendente do sol, o feminino da terra, e o que tinha de ambos era da lua, pois também a lua tem de ambos; e eram assim circulares, tanto eles próprios como a sua locomoção, por terem semelhantes genitores. Eram por conseguinte de uma força e de um vigor terríveis, e uma grande presunção eles tinham; mas voltaram-se contra os deuses, e o que diz Homero de Efialtes e de Otes é a eles que se refere, a tentativa de fazer uma escalada ao céu, para investir contra os deuses. Zeus então e os demais deuses puseram-se a deliberar sobre o que se devia fazer com eles, e embaraçavam-se; não podiam nem matá-los e, após fulminá-los como aos gigantes, fazer desaparecer-lhes a raça - pois as honras e os templos que lhes vinham dos homens desapareceriam — nem permitir-lhes que continuassem na impiedade. Depois de laboriosa reflexão, diz Zeus: “Acho que tenho um meio de fazer com que os homens possam existir, mas parem com a intemperança, tornados mais fracos. Agora com efeito, continuou, eu os cortarei a cada um em dois, e ao mesmo tempo eles serão mais fracos e também mais úteis para nós, pelo fato de se terem tomado mais numerosos; e andarão eretos, sobre duas pernas. Se ainda pensarem em arrogância e não quiserem acomodar-se, de novo, disse ele, eu os cortarei em dois, e assim sobre uma só perna eles andarão, saltitando.” Logo que o disse pôs-se a cortar os homens em dois, como os que cortam as sorvas para a conserva, ou como os que cortam ovos com cabelo; a cada um que cortava mandava Apolo voltar-lhe o rosto e a banda do pescoço para o lado do corte, a fim de que, contemplando a própria mutilação, fosse mais moderado o homem, e quanto ao mais ele também mandava curar. Apolo torcia-lhes o rosto, e repuxando a pele de todos os lados para o que agora se chama o ventre, como as bolsas que se entrouxam, ele fazia uma só abertura e ligava-a firmemente no meio do ventre, que é o que chamam umbigo. (…) Por conseguinte, desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, e envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se um ao outro, no ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. E sempre que morria uma das metades e a outra ficava, a que ficava procurava outra e com ela se enlaçava, quer se encontrasse com a metade do todo que era mulher - o que agora chamamos mulher — quer com a de um homem; e assim iam-se destruindo. Tomado de compaixão, Zeus consegue outro expediente, e lhes muda o sexo para a frente - pois até então eles o tinham para fora, e geravam e reproduziam não um no outro, mas na terra, como as cigarras; pondo assim o sexo na frente deles fez com que através dele se processasse a geração um no outro, o macho na fêmea, pelo seguinte, para que no enlace, se fosse um homem a encontrar uma mulher, que ao mesmo tempo gerassem e se fosse constituindo a raça, mas se fosse um homem com um homem, que pelo menos houvesse saciedade em seu convívio e pudessem repousar, voltar ao trabalho e ocupar-se do resto da vida.(…) Por conseguinte, todos os homens que são um corte do tipo comum, o que então se chamava andrógino, gostam de mulheres, e a maioria dos adultérios provém deste tipo, assim como também todas as mulheres que gostam de homens e são adúlteras, é deste tipo que provêm. Todas as mulheres que são o corte de uma mulher não dirigem muito a sua atenção aos homens, mas antes estão voltadas para as mulheres e as amiguinhas provêm deste tipo. E todos os que são corte de um macho perseguem o macho, e enquanto são crianças, (…)gostam dos homens e se comprazem em deitar-se com os homens e a eles se enlaçar, e são estes os melhores meninos e adolescentes, os de natural mais corajoso. Dizem alguns, é verdade, que eles são despudorados, mas estão mentindo; pois não é por despudor que fazem isso, mas por audácia, coragem e masculinidade, porque acolhem o que lhes é semelhante. Uma prova disso é que, uma vez amadurecidos, são os únicos que chegam a ser homens para a política, os que são desse tipo. E quando se tornam homens, são os jovens que eles amam, e a casamentos e procriação naturalmente eles não lhes dão atenção, embora por lei a isso sejam forçados, mas se contentam em passar a vida um com o outro, solteiros. Assim é que, em geral, tal tipo torna-se amante e amigo do amante, porque está sempre acolhendo o que lhe é aparentado. Quando então se encontra com aquele mesmo que é a sua própria metade, tanto o amante do jovem como qualquer outro, então extraordinárias são as emoções que sentem, de amizade, intimidade e amor, a ponto de não quererem por assim dizer separar-se um do outro nem por um pequeno momento. E os que continuam um com o outro pela vida afora são estes, os quais nem saberiam dizer o que querem que lhes venha da parte de um ao outro. A ninguém com efeito pareceria que se trata de união sexual, e que é
porventura em vista disso que um gosta da companhia do outro assim com tanto interesse; ao contrário, que uma coisa quer a alma de cada um, é evidente, a qual coisa ela não pode dizer, mas adivinha o que quer e o indica por enigmas. Se diante deles, deitados no mesmo leito, surgisse Hefesto e com seus instrumentos lhes perguntasse: Que é que quereis, ó homens, ter um do outro?, e se, diante do seu embaraço, de novo lhes perguntasse: Porventura é isso que desejais, ficardes no mesmo lugar o mais possível um para o outro, de modo que nem de noite nem de dia vos separeis um do outro?
Platão, O Banquete, 

sábado, março 13, 2010

Igualdade das mulheres


A independência da mulher parecia menos anti-natural para os gregos do que para outros povos antigos, tomando em conta as fabulosas Amazonas ( que se acreditava serem históricas), e o exemplo parcial dado pelas mulheres espartanas; que apesar de não estarem menos subordinadas à lei que noutros estados, eram de facto mais livres,treinadas para exercícios corporais do mesmo modo que os homens,davam  provas suficientes de que não eram naturalmente desqualificadas para esse tipo de actividades. Não há grandes dúvidas de que  a experiência das mulheres espartanas sugeriu a Platão, entre outras doutrinas, a igualdade social e política entre sexos.
Mas, dírse-ia que a norma dos homens dominarem as mulheres difere de todas estas antigas formas, por não ser feita à força: é aceite voluntariamente; as mulheres não protestam  e são coniventes com isso. Em primeiro lugar: um grande número de mulheres não aceita. Desde que as mulheres começaram a dar a conhecer os seus sentimentos através da escrita ( a única forma de publicidade que a sociedade lhes permite), um número cada vez maior participou em protestos contra a sua presente condição social: e recentemente muitas centenas, encabeçadas pelas mais eminentes mulheres conhecidas do público, elaboraram uma petição  para serem admitidas no sufrágio para o Parlamento.

Stuart Mill, Sobre a liberdade e a sujeição da mulher, Penguin,2006, pp146,147

Tradução Helena Serrão

A sujeição da mulher continua a ser uma expressão da escravatura, do desrespeito e  indiferença por todas as formas de dignidade e liberdade individuais. É exemplo claro de culturas que se recusam a evoluir ou (e esta visão é assustadora) que não interessa que evoluam, seja para as ditas sociedades "evoluídas" para quem os nichos de escravatura - ou em linguagem mercantil: mão de obra barata - são de grande utilidade, seja para prolongar o domínio de políticas ditatoriais e autocráticas. Os direitos das mulheres são os mesmos, ou deveriam ser, os mesmos da humanidade em geral, a sua violação devia ter por parte da comunidade uma intervenção legal -trata-se de direitos - ora essa intervenção legal dos estados não existe. Quem submete ou maltrata um ser humano, não tendo nenhuma autoridade para o fazer, excepto aquela que a comunidade consente em dar-lhe,  torna este consentimento um crime tão grave quanto o da submissão. O consentimento e a impunidade continuam a ser matéria de perplexidade e  motivo para uma luta sem tréguas de todos os que acreditam na igualdade e na liberdade, como valores, independentes dos valores de mercado.

sábado, fevereiro 27, 2010

Estudos de género

Enquanto a heterossexualidade representa a Ordem Global em cujo quadro a cada sexo é fixado o seu justo lugar, as reinvindicações queer não constituem simplesmente reclamações visando o reconhecimento das suas práticas sexuais e modos de vida, mas são qualquer coisa que abala a própria ordem global e a sua lógica de hierarquização e de exclusão; precisamente enquanto tal, deslocados em relação à ordem existente, os queer representam a dimensão de Universalidade (ou, antes, podem representá-la, na medida em que a politização nunca se encontra directamente inscrita na posição social objectiva, mas induz o gesto de subjectivação). Judith Butler desenvolve uma poderosa argumentação contra a oposição abstracta e politicamente regressiva entre a luta económica e a luta queer "puramente cultural",pelo reconhecimento: longe de ser "puramente cultural" a forma social de reprodução sexual estaria no próprio núcleo das relações sociais de produção, o que quer dizer que a família heterossexual nulear constituiria uma componente-chave e uma condição das relações capitalistas de propriedade, de troca, etc; por isso, a maneira como a prática política queer questiona e sapa a heterossexualidade normativa constitui uma ameaça potencial para o próprio modo de produção capitalista.1

1. ver Judith Butler, Merely Cultural, New Left Review, 227, Janeiro, Fevereiro de 1998, pp.33, 34

Slavoj Zizek, Elogio da Intolerância, Relógio D'Água, 2006, pp 86,87

sexta-feira, novembro 06, 2009

O Casamento homossexual

Burt Glinn
A discussão deste tema começou aqui, há cerca de um ano atrás. O tema voltou à ordem do dia. Contrariamente à perspectiva colocada, apresentamos um outro texto que se apresenta defendendo o casamento homossexual. Basicamente os argumentos destes textos partem de duas crenças básicas: a primeira, apresentada por Scruton, é contra, defende o casamento como aliança fundamentada na necessidade de segurança e preservação da espécie mas também em algo a/histórico, como uma comunhão primordial. A segunda perspectiva considera o casamento como um direito civil dos indivíduos considerados isoladamente, o casamento deve ser acessível a todos porque todos e cada um por si, são iguais perante a lei. A soma de razões apresentadas e o brilhantismo dos argumentos não altera a nossa crença básica a favor ou contra, essa adesão parece fazer-se antes de qualquer razão e fundamenta-se numa adesão emocional para a qual encontraremos depois uma maravilhosa explicação. De modo que discutir este problema parece ser pura perda de tempo. Penso, no entanto que esta discussão decorre de outra mais fundante e séria: 1º Se a legislação deve privilegiar as liberdades indivíduais em relação ao equilíbrio social. 2º Se as leis humanas podem e devem regular todos os aspectos da vida social sem qualquer submissão a princípios religiosos.A construção de um Estado laico choca ainda muita gente porque parece que em alguns aspectos usurpa um espaço que não é o seu , que pertence a outra dimensão, uma dimensão onde os homens não podem dispôr segundo os seus interesses. Este é, parece -me, o problema que entrava a aceitação de novas leis sobretudo quando não se coadunam com a tradição cristã/católica.
" A decisão de casar faz parte dos direitos fundamentais dos indivíduos e, por essa razão, implica igualmente uma dimensão igualitária: nenhum grupo poderá ser excluído senão por uma razão demolidora. É como com o voto; não existe um direito constitucional de votar, mas é inconstitucional (Nos Estados Unidos) impedir um grupo qualquer de exercer esse direito; nessas condições, a questão coloca-se: quem tem direito ao casamento e que razões serão suficientemente poderosas para ignorar esse direito?

O futuro do casamento parece continuar a ser, num certo sentido, semelhante ao seu passado. As pessoas vão continuar a unir-se, a formar famílias, a ter filhos e, por vezes, a separarem-se. A constituição americana exige, no entanto, que seja o que for que o Estado venha a decidir o faça na base da igualdade. O governo não pode excluir um grupo de cidadãos das vantagens da sociedade civil ou da dignidade alicerçada do casamento sem uma razão de interesse público convincente. Incluir completamente os casais do mesmo sexo é, num certo sentido, uma enorme oportunidade, tal como o casamento interracial o foi, no seu tempo, e como foi a obtenção do direito de voto pelas mulheres e os Afro-Americanos. (...) Uma simples política de humanidade exige que paremos de considerar os casamentos entre pessoas do mesmo sexo como uma desonra ou uma profanação em relação ao casamento tradicional, mas, ao contrário, que compreendamos os objectivos daqueles que procuram o casamento e a semelhança entre aquilo que eles procuram e o que procuram os heterossexuais. Reflectindo nesta direccção, o problema parece análogo áquele que era colocado no seu tempo pela mestiçagem: uma exclusão intolerável numa sociedade que deseja que todos beneficiem de respeito igual e igual justiça. "


Martha Nussbaum, Disent, in Philosophie Magazine, Outubro, 2009
Traduzido do Francês por Helena Serrão

quarta-feira, outubro 15, 2008

Casamento gay


A união heterossexual está imbuída da sensação de que a natureza do nosso parceiro sexual nos é estranha, um território no qual somos introduzidos sem conhecimento prévio e no qual o outro e não o eu é o único guia fiável. Esta experiência tem profundas repercussões sobre a nossa sensação do perigo e do mistério da união sexual; e essas repercussões são seguramente parte do que as pessoas tinham em mente ao vestir o casamento como um sacramento e a cerimónia do casamento como um rito de passagem de uma forma de segurança para outra. O casamento tradicional não era apenas um rito de passagem da adolescência para a adultez; nem um modo de favorecer e garantir a criação de crianças. Tratava-se de uma dramatização da diferença sexual. O casamento mantinha os sexos a tal distância um do outro que a circunstância de virem a estar juntos se tornava um salto existencial, e não apenas uma experiência passageira. A intencionalidade do desejo era formada por isto e mesmo se essa forma era – a um certo nível mais profundo – cultural e não universal, ela conferia ao desejo a sua nupcialidade intrínseca e ao casamento o seu fim transformador. Considerar o casamento gay simplesmente como uma opção alternativa dentro da instituição é ignorar o facto de uma instituição moldar o motivo que nos leva a abraçá-la. O casamento formou-se em torno da ideia da diferença sexual e de tudo o que significa a diferença sexual. Fazer desta característica um aspecto acidental é transformar o casamento em algo que já não se pode reconhecer como tal. Os gays querem o casamento porque querem a aprovação social que ele significa; mas ao admitir o casamento gay retiramos ao casamento o seu significado social (… ) Portanto, a pressão a favor do casamento gay auto-derrota-se. Faz lembrar a iniciativa de Henrique VIII de se tornar o chefe da Igreja para ter apoio eclesiástico para o seu divórcio. A Igreja que aprovou o seu divórcio deixou desse modo de ser a Igreja cuja aprovação ele desejava.

Roger Scruton, A political philosophy. Arguments for conservatism. (London and New York, 2006), p. 101.
Trad. Carlos Marques.