Não somos indulgentes com a ideia do livre-arbítrio: sabemos de sobejo do que se trata; a habilidade teológica de pior reputação que já houve para tornar a humanidade responsável à maneira dos teólogos, o que equivale a colocar a humanidade sob a dependência dos teólogos. Vou me limitar a explicar a psicologia dessa tendência a exigir responsabilidades. Onde quer que exijam responsabilidades, o instinto de julgar e de castigar anda, geralmente, mesclado na tarefa. Retira-se a inocência do devir quando lhe atribui um estado de fato, qualquer que seja, à vontade, a intenções, a atos de responsabilidade. A doutrina da vontade foi inventada, principalmente, colimando castigar, isto é, com a intenção de achar um culpado. Toda a antiga psicologia, psicologia da vontade, deve sua existência ao fato de que seus inventores, os sacerdotes, chefes das comunidades primitivas, quiseram atribuir-se o direito de castigar, ou quiseram conceder tal direito a Deus. Os homens foram considerados livres para se poder julgá-los e castigá-los, para se poder declará-los culpados. Consequentemente, toda ação tinha que reputar-se voluntária, e a origem de todo ato devia supor-se na consciência (pelo que a falsificação das moedas in psychologicis, por princípio, se erigia da própria psicologia). Hoje, que entramos na corrente contrária e nós, os imoralistas, trabalhamos com todas nossas forças para conseguir que desapareça mais uma vez do mundo a ideia da culpabilidade e do castigo, tanto quanto para eliminar delas a psicologia, a história, a Natureza, as instituições e as sanções sociais, não há, a nossos olhos, oposição mais radical que a dos teólogos, que por meio da ideia do mundo moral prosseguem contaminando a inocência do devir com o pecado e o castigo. O cristianismo é uma metafísica de verdugos.
quarta-feira, fevereiro 05, 2025
O Erro do Livre-arbítrio
quarta-feira, janeiro 15, 2025
Agir implica um estado consciente intencional que não é em nada semelhante ao movimento corporal mas que tem sobre ele um efeito?
"A ideia de que os nossos estados conscientes são causados por acontecimentos neurológicos não é mera especulação. Realizam-se por vezes cirurgias cerebrais apenas com anestesia local, pelo que o paciente pode dizer ao cirurgião que experiências está a ter enquanto várias partes do seu cérebro são sondadas. Como vimos no Capítulo 6, esta técnica foi introduzida há mais de meio século pelo Dr. Wilder Penfield, que a descreveu vividamente no seu livro The Excitable Cortex in Conscious Man (1958). Desde então, os neurocirurgiões utilizam a técnica de Wilder. Sabem que, se sondarmos um lugar, o paciente sentirá um formigueiro na mão; se sondarmos outro lugar, o paciente sentirá o cheiro do alho; se sondarmos outro lugar ainda, ele pode ouvir uma canção dos Guns N' Roses.
Também é possível induzir acções com a estimulação eléctrica do cérebro. Jose Delgado, que desenvolveu a sua investigação na Universidade de Yale há quatro décadas atrás, descobriu que, estimulando várias regiões do cérebro, conseguia causar todos os tipos de movimentos corporais, incluindo franzir as sobrancelhas, abrir e fechar os olhos, mover a cabeça, os braços, as pernas e os dedos. Quando começou a experimentar este procedimento, usando gatos e macacos, reparou que os animais não se mostravam surpreendidos nem assustados quando o seu corpo se movia. Aparentemente, os animais sentiam os movimentos como se estes fossem voluntários. Num caso particular, a estimulação do cérebro de um macaco fê-lo levantar-se e andar. O efeito repetiu-se várias vezes, e em cada uma delas o animal começou a vaguear, sem surpresa nem desconforto, como se tivesse decidido passear um pouco.
Alguns filósofos diriam que o procedimento de Delgado não causa acções, mas apenas movimentos corporais. As acções implicam razões e decisão, e não apenas movimentos. Mas isto não é tudo. Quando Delgado fez a sua experiência com seres humanos, eles foram ainda mais complacentes do que os animais — além de terem realizado os movimentos sem surpresa nem medo, também deram razões para os terem realizado. Num paciente, a estimulação eléctrica do cérebro produziu "um virar de cabeça e um deslocamento lento do corpo para cada um dos lados numa sequência bem orientada e aparentemente normal, como se o paciente estivesse à procura de algo". Repetiu-se isto seis vezes ao longo de dois dias, o que confirmou que a estimulação produzia efectivamente o comportamento. Mas o paciente, que ignorava a estimulação eléctrica, considerava a actividade espontânea e justificava-a com razões. Quando lhe perguntavam "O que está a fazer?", ele respondia "Estou à procura dos meus chinelos", "Ouvi um barulho", "Estou impaciente" ou "Estava a olhar para debaixo da cama".
Será que as nossas decisões também são produzidas por disparos de neurónios? Há também alguns resultados experimentais sobre isto, que se devem ao cientista alemão H. H. Kornhuber. Suponha-se que ficamos quietos e que, durante o próximo minuto, vamos mover espontaneamente o dedo. Subjectivamente, podemos estar bastante certos de que a decisão de mover o dedo está inteiramente sob o nosso controlo. Mas suponha-se agora que nos ligam alguns eléctrodos ao couro cabeludo e nos pedem para repetir a acção. Um técnico que esteja a olhar para uma electroencenfalografia seria capaz de observar um padrão característico de actividade cerebral quando movemos o dedo. A actividade cerebral inicia-se um segundo e meio antes do movimento, e inicia-se antes de tomarmos a decisão. Olhando para o monitor, o técnico sabe assim que vamos mover o dedo antes de nós o sabermos. A uma escala reduzida, ele é como o observador perfeito de Laplace. Kornhuber realizou esta experiência pela primeira vez nos anos 70 do século passado.
James Rachels
Tradução de Pedro Galvão, retirado de Problemas da Filosofia, de James Rachels, (Lisboa: Gradiva - Colecção Filosofia Aberta, 2009, pp. 159-163)
segunda-feira, novembro 30, 2020
Consciência: uma ideia protetora mas vazia
Harvey Blume: Poderá expandir o papel do algoritmo ao seu pensamento? Parece ser uma ideia unificadora.
Daniel Dennett: É uma delas. Deixe-me ver desta forma: David Hume escreveu sobre ideias e impressões complexas. O que realmente queria fazer era explicar o que chamou de associação de ideias - como uma ideia traz a próxima ideia atrelada. Ele queria explicar a ordem das ideias sem ter que postular um diretor para dirigir o espetáculo. Eu estava a tentar explicar isso e um aluno disse: "Hume precisa ter ideias para pensar por si mesmo" - ao que eu disse, "pensar por si mesmo". Tem que tirar o pensador de lá. Se ainda tem o pensador a dirigir, então ainda não começou a trabalhar na mente. Como se quebra essa regressão? Hume tentou. Locke tentou. Skinner tentou. Turing teve sucesso. Foi Turing quem descobriu como se poderia fazer as próprias ideias pensarem. Escreve uma receita para pensar um pouco e dá-a a um matemático. Ele segue a receita, faz o pensamento. Turing diz: Sim, mas pode deixar o matemático de fora. Basta passar a receita para a máquina e eliminar o intermediário. Elimine o intermediário. E o pensamento simplesmente acontece. Turing mostra que se um computador pode somar, subtrair, multiplicar e dividir, e se pode dizer a diferença entre zero e um, ele pode fazer qualquer coisa. Pode-se pegar num conjunto de habilidades irracionais e transformá-las em estruturas de poder discriminativo indefinido, poder de discernimento indefinido e poder reflexivo indefinido. Pode-se fazer uma mente inteira; assim pode-se resolver o problema de Hume; pode-se ter ideias para pensar por si mesmas nesta estreita base. Essa é a ideia de um algoritmo. E o que Darwin diria? O que significa ter um algoritmo evolutivo? Olhamos para fora e vemos toda essa beleza, todo esse design fabuloso, toda essa Pesquiza e Desenvolvimento. Darwin mostrou como toda essa pesquisa e desenvolvimento podem ser realizados por um processo basicamente estúpido, sem motivo, mecânico, se não necessariamente maligno.
HB: Deduzo do seu trabalho que o trabalho da filosofia é mostrar como as várias disciplinas são semelhantes entre si de uma forma que as pessoas que trabalham nessas disciplinas podem não ser capazes de ver com clareza. É esse o papel da filosofia?
DD: Esse é um dos papéis. A vida é curta e complicada. As pessoas não podem fazer tudo o que gostariam de fazer. E uma das coisas que as pessoas não podem fazer é controlar como o seu reduto particular, a sua especialização um tanto cega, se encaixa no quadro mais amplo. Há sempre problemas na interface: como se encaixa isto com aquilo? Um dos objetivos dos filósofos é fazer isso melhor do que outras pessoas. Não é o único papel, mas levo esse papel muito a sério.
HB: Poderá citar outro papel?
DD: No início, era tudo filosofia. Aristóteles, quer estivesse a fazer astronomia, fisiologia, psicologia, física, química ou matemática - era tudo a mesma coisa. Foi filosofia. Ao longo dos séculos, houve um processo de refinamento: área após área, as questões que eram inicialmente obscuras e problemáticas tornaram-se mais claras. E assim que isso acontece, essas questões saem da filosofia e tornam-se ciência. Matemática, astronomia, física, química - todas começaram na filosofia e, quando ficaram claras, foram expulsas do ninho. A filosofia é a mãe. Esses são os seus descendentes. Não precisamos voltar muito atrás para ver vestígios disso. O século XVIII é ainda muito cedo para descobrir que a distinção entre filosofia e física não é levada muito a sério. A psicologia é um dos nascimentos mais recentes da filosofia, e só precisamos voltar ao final do século XIX para o ver. A minha sensação é que a trajetória da filosofia é trabalhar em questões muito fundamentais que ainda não foram transformadas em questões científicas. Depois que fica realmente claro quais são as perguntas e o que conta como uma resposta, então é já ciência. A filosofia não tem mais papel a cumprir. É por isso que parece que simplesmente não há progresso. O progresso sai do campo. Se você quiser perguntar se houve progresso na filosofia, eu diria, olhe ao seu redor. Temos departamentos de biologia e física. É aí que está o progresso. Devemos estar muito orgulhosos de que nossa disciplina gerou todos esses outros departamentos científicos.
Entrevista a Daniel Dennett conduzida Por Harvey Blume, in Digital Culture, Dezembro 1998
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domingo, novembro 15, 2020
A física quântica como causalmente insuficiente mas não aleatória
Fotograma do filme de 1969 "The arrangement" de Elia Kazan, EUA
“ Vamos fazer um robô que não tem apenas experiência do livre-arbítrio, tem-no de facto. A tomada consciente de decisão no hiato (intervalo) corresponde a uma realidade da ausência de condições causalmente suficientes para certos tipos de decisões e ações. Como poderíamos fazer esse robô? Bem, a primeira coisa que temos de perguntar é:há algumas partes da natureza onde as causas não sejam causalmente suficientes? Há algumas partes da natureza que não sejam determinísticas? E a resposta é sim. A mecânica quântica não é determinística. Num sistema quântico, podemos prever com probabilidade estatística o que acontecerá, mas não podemos prevê-lo com certeza, porque não temos condições causalmente suficientes. A única parte do Universo que sabemos que é indeterminística é o indeterminismo quântico. Soa estranho dizer que essa é a única parte do Universo, pois, é claro, o Universo como um todo é quântico. Os filósofos falam como se houvesse um pedaço minúsculo, coisas mesmo muitíssimo minúsculas, e que isso é indeterminístico. Mas não, a indeterminação quântica afeta tudo. Em níveis mais elevados, as indeterminações tendem a anular-se, de modo que, no fim, com uma bola de beisebol, por exemplo, podemos prever o seu comportamento como se fosse um sistema newtoniano fixo, porque a probabilidade de se comportar de uma maneira indeterminística é ínfima. Mas é ainda indeterminística. A indeterminação quântica está em todo lado.
Contudo, de que serve tudo isso aos seres humanos? Sempre me pareceu que a indeterminação quântica nada tem que ver com o problema do livre-arbítrio, porque aquilo que a indeterminação nos dá é aleatoriedade, e esta, é claro, não é o mesmo que liberdade. Quando escolhi votar nos democratas, tomei essa decisão no hiato, mas essa não foi uma decisão aleatória. Pressupus que isso não estava fixado por causas anteriores, mas não votei simplesmente de maneira aleatória nos democratas e não nos republicanos. Portanto, o determinismo quântico parecia-me irrelevante para o problema do livre-arbítrio, pois não fornece a liberdade. Fornece apenas aleatoriedade.
Mas, formalmente falando, esse argumento que acabei de apresentar tem uma falácia, e quero explica-la. Há uma falácia comum chamada “falácia da composição”. Trata-se da falácia de supor que se uma característica é verdadeira com respeito aos elementos de um sistema, então é verdadeira com respeito a todo o sistema que é composto desses elementos. Assim. Se digo que os meus neurónios estão a disparar à taxa de 40 hertz, 40 vezes por segundo, seria uma falácia da composição dizer depois que o cérebro como um todo está a disparar à taxa de 40 hertz. É uma falácia de composição dizer” porque no nível quântico a indeterminação implica a aleatoriedade, a indeterminação ao nível mais elevado tem de implicar a aleatoriedade”. Poderíamos ter uma indeterminação quântica que fosse aleatória no nível inferior, mão não no nível mais elevado.”
John R. Searle, Da realidade física à realidade humana, Gradiva, Lx, 2020,pp.289 a 29
sexta-feira, fevereiro 15, 2019
Liberdade como condição de qualquer ação humana.
segunda-feira, outubro 22, 2018
Dualismo
"O dualismo é a perspectiva segundo a qual és composto por um corpo e por uma alma e a tua vida mental se desenrola na tua alma. O fisicalismo é a perspectiva segundo a qual a tua vida mental consiste em processos físicos no teu cérebro. Contudo, outra possibilidade é a de a tua vida mental se desenrolar no teu cérebro, mas todas essas experiências, sentimentos, pensamentos e desejos não serem processos físicos no teu cérebro, o que equivaleria a dizer que a massa cinzenta de milhares de milhões de células nervosas no teu crânio não é apenas um objecto físico. Tem muitas propriedades físicas - desenrolam-se nele grandes quantidades de actividade química e eléctrica - mas também tem processos mentais. (...) A perspectiva de que o cérebro é o lugar da consciência mas que os seus estados conscientes não são apenas estados cerebrais, é designada por teoria do aspecto dual. Chama-se assim porque significa que quando comes um chocolate se produz um estado ou um processo no teu cérebro com dois aspectos: um aspecto físico, que envolve diversas transformações químicas e eléctricas, e um aspecto mental- a experiência do sabor do chocolate. Quando este processo ocorre, um cientista que olhe para o teu cérebro será capaz de observar o aspecto físico, mas tu próprio passarás, interiormente, pelo processo mental: terás a sensação de saborear chocolate. Se isto for verdade, o teu cérebro terá um interior que não poderá ser alcançado por um observador exterior, mesmo que o abra. Ao comeres um chocolate, existiria um aspeto mental do processo cerebral que seria a tua própria sensação. (...)"
Thomas Nagel, Que Quer dizer tudo isto?, Gradiva, pag 34-35;
quinta-feira, dezembro 01, 2016
O cérebro não toma decisões antes de pensarmos tomá-las.
quarta-feira, outubro 12, 2016
Da existência do livre- arbítrio - Santo Agostinho