Robert Frank, NY,1947
Mas, também ainda, embora dissesse e
acreditasse firmemente que és incontaminável e inalterável e sob nenhum aspecto
mutável, tu, nosso Deus, Deus verdadeiro, que criaste não só as nossas almas,
mas também os nossos corpos, e não apenas as nossas almas e os nossos corpos,
mas também todos nós e todas as coisas, não tinha por explicada e esclarecida a
causa do mal. Fosse ela qual fosse, porém, via que era preciso procurá-la de
modo a que, graças a ela, não fosse obrigado a acreditar que é mutável o Deus
imutável, ou que eu próprio me convertesse naquilo que eu procurava. E assim,
procurava-a em segurança e certo de que não era verdade o que diziam aqueles
que eu evitava com toda a minha alma, porque os via, procurando donde provinha
o mal, cheios de maldade, em virtude da qual eram de opinião que é mais a tua
substância que está sujeita a sofrer o mal, do que a deles a fazê-lo. E
esforçava-me por compreender o que ouvia: que o livre arbítrio da vontade é a
causa de praticarmos o mal e o teu recto juízo a de o sofrermos, mas não
conseguia compreender essa causa com clareza. E assim, tentando arrancar do
abismo o olhar do meu espírito, afundava-me de novo, e muitas vezes tentava e
me afundava uma e outra vez. Na verdade, elevava-me para a tua luz o facto tanto
de saber que tinha uma vontade como o de saber que vivia. Por isso, quando
queria ou não queria alguma coisa, tinha absoluta certeza de que quem queria ou
não queria não era outro senão eu. E via, cada vez mais, que aí estava a causa
do meu pecado. E aquilo que fazia contra vontade via que era mais padecer do
que fazer, e julgava que isso não era culpa, mas castigo, pelo qual, como eu
logo confessava, considerando-te justo, era castigado não injustamente. Mas de
novo dizia: ‘Quem me fez? Porventura não foi o meu Deus, que é não apenas bom,
mas o próprio bem? Donde me vem então o querer o mal e o não querer o bem? Será
para haver um motivo para que eu seja castigado justamente? Quem colocou isto
em mim, e plantou em mim este viveiro de amargura , embora todo eu tenha sido
feito por um Deus tão doce? Se o autor é o diabo, donde veio o mesmo diabo? Mas
se também ele, por uma vontade perversa, de anjo bom se tornou diabo, donde lhe
veio, também a ele, a má vontade pela qual se tornaria diabo, quando o anjo, na
sua totalidade, tinha sido criado por um criador sumamente bom?’ De novo me
deixava abater e sufocar com estes pensamentos, mas não me deixava arrastar até
àquele inferno do erro, onde ninguém te confessa quando se julga que és tu a
padecer o mal, e não o homem que o pratica.
Santo Agostinho, Confissões, Livro VII, p.21, Casa da Moeda,2001
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