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segunda-feira, novembro 30, 2020

Consciência: uma ideia protetora mas vazia


Harvey Blume: Poderá expandir o papel do algoritmo ao seu pensamento? Parece ser uma ideia unificadora.

Daniel Dennett: É uma delas. Deixe-me ver desta forma: David Hume escreveu sobre ideias e impressões complexas. O que realmente queria fazer era explicar o que chamou de associação de ideias - como uma ideia traz a próxima ideia atrelada. Ele queria explicar a ordem das ideias sem ter que postular um diretor para dirigir o espetáculo. Eu estava a tentar explicar isso e um aluno disse: "Hume precisa ter ideias para pensar por si mesmo" - ao que eu disse, "pensar por si mesmo". Tem que tirar o pensador de lá. Se ainda tem o pensador a dirigir, então ainda não começou a trabalhar na mente. Como se quebra essa regressão? Hume tentou. Locke tentou. Skinner tentou. Turing teve sucesso. Foi Turing quem descobriu como se poderia fazer as próprias ideias pensarem. Escreve uma receita para pensar um pouco e dá-a a um matemático. Ele segue a receita, faz o pensamento. Turing diz: Sim, mas pode deixar o matemático de fora. Basta passar a receita para a máquina e eliminar o intermediário. Elimine o intermediário. E o pensamento simplesmente acontece. Turing mostra que se um computador pode somar, subtrair, multiplicar e dividir, e se  pode dizer a diferença entre zero e um, ele pode fazer qualquer coisa. Pode-se pegar num conjunto de habilidades irracionais e transformá-las em estruturas de poder discriminativo indefinido, poder de discernimento indefinido e poder reflexivo indefinido. Pode-se fazer uma mente inteira; assim pode-se resolver o problema de Hume; pode-se ter ideias para pensar por si mesmas nesta estreita base. Essa é a ideia de um algoritmo. E o que Darwin diria? O que significa ter um algoritmo evolutivo? Olhamos para fora e vemos toda essa beleza, todo esse design fabuloso, toda essa Pesquiza e Desenvolvimento. Darwin mostrou como toda essa pesquisa e desenvolvimento podem ser realizados por um processo basicamente estúpido, sem motivo, mecânico, se não necessariamente maligno.

HB: Deduzo do seu trabalho que o trabalho da filosofia é mostrar como as várias disciplinas são semelhantes entre si de uma forma que as pessoas que trabalham nessas disciplinas podem não ser capazes de ver com clareza. É esse o papel da filosofia?

DD: Esse é um dos papéis. A vida é curta e complicada. As pessoas não podem fazer tudo o que gostariam de fazer. E uma das coisas que as pessoas não podem fazer é controlar como o seu reduto particular, a sua especialização um tanto cega, se encaixa no quadro mais amplo. Há sempre problemas na interface: como se encaixa isto com aquilo? Um dos objetivos dos filósofos é fazer isso melhor do que outras pessoas. Não é o único papel, mas levo esse papel muito a sério.

 HB: Poderá citar outro papel?

DD: No início, era tudo filosofia. Aristóteles, quer estivesse a fazer astronomia, fisiologia, psicologia, física, química ou matemática - era tudo a mesma coisa. Foi filosofia. Ao longo dos séculos, houve um processo de refinamento: área após área, as questões que eram inicialmente obscuras e problemáticas tornaram-se mais claras. E assim que isso acontece, essas questões saem da filosofia e tornam-se ciência. Matemática, astronomia, física, química - todas começaram na filosofia e, quando ficaram claras, foram expulsas do ninho. A filosofia é a mãe. Esses são os seus descendentes. Não precisamos voltar muito atrás para ver vestígios disso. O século XVIII é ainda muito cedo para descobrir que a distinção entre filosofia e física não é levada muito a sério. A psicologia é um dos nascimentos mais recentes da filosofia, e só precisamos voltar ao final do século XIX para o ver. A minha sensação é que a trajetória da filosofia é trabalhar em questões muito fundamentais que ainda não foram transformadas em questões científicas. Depois que fica realmente claro quais são as perguntas e o que conta como uma resposta, então é já ciência. A filosofia não tem mais papel a cumprir. É por isso que parece que simplesmente não há progresso. O progresso sai do campo. Se você quiser perguntar se houve progresso na filosofia, eu diria, olhe ao seu redor. Temos departamentos de biologia e física. É aí que está o progresso. Devemos estar muito orgulhosos de que nossa disciplina gerou todos esses outros departamentos científicos.

Entrevista a Daniel Dennett conduzida Por Harvey Blume, in Digital Culture, Dezembro 1998

Ver versão original AQUI

 

segunda-feira, março 13, 2017

A origem da consciência moral




Vladimir Lagrange, n.1939, URSS

Em tudo o que se segue, adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação para a agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e auto-subsistente, e retorno à minha opinião, de que ela é o maior impedimento à civilização. Em determinado ponto do decorrer dessa investigação , fui conduzido à ideia de que a civilização constituía um processo especial que a humanidade experimenta, e ainda me acho sob a influência dela. Posso agora acrescentar que a civilização constitui um processo ao serviço de Eros, cujo propósito é combinar indivíduos humanos isolados, depois famílias e, depois ainda, raças, povos e nações numa única grande unidade, a unidade da humanidade. Porque isso tem de acontecer, não sabemos; o trabalho de Eros é precisamente este. Essas reuniões de homens devem estar libidinalmente ligadas umas às outras. A necessidade, as vantagens do trabalho em comum, por si sós, não as manterão unidas. Mas o natural instinto agressivo do homem, a hostilidade de cada um contra todos e a de todos contra cada um, opõe-se a esse programa da civilização. Esse instinto agressivo é  derivado e  principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que com este divide o domínio do mundo. Agora, penso eu, o significado da evolução da civilização não nos é mais obscuro. Ele deve representar a luta entre Eros e a Morte, entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como ela se elabora na espécie humana. Nessa luta consiste essencialmente toda a vida, e, portanto, a evolução da civilização pode ser simplesmente descrita como a luta da espécie humana pela vida. E é essa batalha de gigantes que as nossas amas tentam apaziguar com a sua cantiga de ninar sobre o Céu.

Outra questão nos interessa mais de perto. Quais os meios que a civilização utiliza para inibir a agressividade que se lhe opõe, torná-la inócua ou, talvez, livrar-se dela? Já nos familiarizamos com alguns desses métodos, mas ainda não com aquele que parece ser o mais importante. Podemos estudá-lo na história do desenvolvimento do indivíduo. O que acontece neste para tornar inofensivo o seu desejo de agressão? Algo notável, que jamais teríamos adivinhado e que, não obstante, é bastante óbvio. A agressividade é introjetada, internalizada; ela é, na realidade, enviada de volta para o lugar de onde proveio, isto é, dirigida no sentido de seu próprio ego. Aí, é assumida por uma parte do ego, que se coloca contra o resto do ego, como superego, e que então, sob a forma de ‘consciência’, está pronta para pôr em ação contra o ego a mesma agressividade rude que o ego teria gostado de satisfazer sobre outros indivíduos, a ele estranhos. A tensão entre o severo superego e o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada.
Sigmund Freud, O mal estar na civilização, p.35, 36
Texto copiado integralmente da edição eletrónica das obras de Freud, versão 2.0 por TupyKurumin

sábado, julho 23, 2016

O estrangeiro


Marcelo Mastroianni em " O Estangeiro" de Luchino Visconti, 1967

“Porque atirou sobre um corpo caído?” Mais uma vez não soube responder. O juiz passou a mão pela testa e repetiu a pergunta com a voz um pouco alterada. “Porquê? É preciso que me diga. Porquê?” Continuei calado.
Bruscamente levantou-se, com largas passadas dirigiu-se ao outro lado do escritório e abriu a gaveta de um classificador. Tirou um crucifixo de prata que bramiu enquanto se dirigia para mim. E com a voz alterada, quase trémula, gritou: “Conhece-o, a este aqui?” Disse: “Sim, naturalmente.” Então disse-me muito depressa e de forma apaixonada que acreditava em Deus, e era sua convicção que nenhum homem era suficientemente culpado para que Deus não lhe perdoasse, mas era preciso, pelo arrependimento, o homem tornar-se uma criança na qual a alma é vazia e pronta a tudo acolher. Tinha o corpo todo inclinado sobre a mesa. Agitava o seu crucifixo quase em cima de mim. Para dizer a verdade, mal segui o seu raciocínio, primeiro porque tinha calor e havia no seu escritório grandes moscas que pousavam na minha figura, e também porque ele me fazia um pouco de medo. Reconhecia, ao mesmo tempo, que isso era ridículo porque, afinal de contas, era eu o criminoso. No entanto, ele continuou. Compreendi pouco a pouco que, na sua opinião, não havia senão um ponto obscuro na minha confissão; o facto de ter esperado até atirar o meu segundo tiro de revólver. Quanto ao resto tudo bem, mas isso, ele não compreendia.
Ia dizer-lhe que não valia a pena obstinar-se: esse último ponto não tinha afinal assim tanta importância. Mas ele interrompeu-me e exortou-me uma última vez, do alto da sua autoridade, perguntando-me se acreditava em Deus. Respondi que não. Sentou-se indignado. Disse-me que era impossível, que todos os homens acreditavam em Deus, mesmo aqueles que se desviavam do seu rosto. Era essa a sua convicção, e se algum dia duvidasse, a sua vida não teria mais sentido. “ O senhor quer, exclamou, que a minha vida não tenha mais sentido?” Disse-lhe que, na minha opinião, isso não me dizia respeito. Mas ele avançava por cima da mesa com o Cristo sobre os meus olhos e gritando de um modo descontrolado: “ Eu sou cristão. Peço a Ele perdão pelos teus pecados. Como podes tu não acreditar que ele sofreu por ti?” Reparei que me estava a tratar por tu, mas estava farto. O calor era cada vez maior. Como sempre, quando tinha vontade de me desembaraçar de alguém que já não consiguia ouvir , fiz semblante de concordar. Para minha surpresa, rematou em triunfo: “Vês, vês, dizia ele. Não é verdade que acreditas e que te vais confessar a Ele?” Evidentemente que lhe disse não, mais uma vez. Ele deixou-se cair na cadeira. Tinha um ar cansado. Ficou um momento em silêncio enquanto a máquina, que não tinha parado de seguir o diálogo, se prolongava ainda pelas últimas frases. Depois, olhou-me atentamente e com um pouco de tristeza. Murmurou: “ Nunca vi uma alma tão endurecida como a sua. Os criminosos que têm vindo à minha presença sempre choraram perante esta imagem de sofrimento.” Ia responder que era justamente por isso que eram criminosos. Mas pensei que eu era também como eles. Ainda não me tinha habituado a essa ideia . O juiz levantou-se então como me querendo transmitir que o interrogatório tinha terminado.

Um francês na Argélia mata um árabe numa praia. Razão? Nenhuma em especial, talvez um medo difuso, eram estrangeiros, estava calor, tinha, por acaso, um revólver no bolso. Uma soma de acasos, nenhum motivo especial, nem auto-defesa, nem ódio, nenhum interesse ou ambição, depois nenhum remorso, uma consciência adormecida pelo calor. Um absurdo que se materializou.Estávamos  em 1942 em plena II Guerra Mundial, a morte não tem rosto nem sentido.


terça-feira, julho 19, 2016

Oh! Atormentada consciência! A tragédia que é ( apenas) drama.Ricardo III


Henri Fantin-Latour, Maçãs, 1868

ACTO V
CENA III

(...)
(Entram os fantasmas dos dois jovens príncipes.)
 FANTASMAS (ao Rei Ricardo)- Pensa em teus primos sufocados na Torre. Chumbo sejamos dentro em teu peito, Ricardo, e com nosso peso te arremessemos para a ruína, infâmia e morte. As almas de teus sobrinhos ordenam que desesperes e morras. (Para Richmond) Dorme, Richmond, dorme em paz, e com alegria acorda. Guardem-te os anjos bons dos ataques do javali. Vive e gera feliz linhagem de reis. Os infelizes filhos de Eduardo ordenam que floresças. 
(Saem. Entra o fantasma da senhora Dona Ana, sua esposa) 
FANTASMA DE ANA (ao Rei Ricardo)- Ricardo, tua mulher, essa mísera Ana, tua mulher, que não dormiu contigo uma só hora feliz, enche agora teu sono de turvações. Amanhã na batalha pensa em mim, e caia, sem gume, tua espada. Desespera e morre. (Para Richmond) Tu, alma tranquila, dorme teu sono tranquilo. Sonha bom sucesso e uma vitória feliz. A mulher de teu adversário ora por ti.
 (Sai. Entra o fantasma de Buckingham)
 FANTASMA DE BUCKINGHAM (ao Rei Ricardo)- Fui aquele que primeiro te ajudou a chegar à coroa, o último que sentiu a tua tirania. Oh, na batalha pensa em Buckingham, e morre no terror das tuas culpas. Sonha, sonha sanguinolentos feitos e morte. Em perdendo forças desespera, em desesperando, exala teu derradeiro sopro. (Para Richmond) Morri na esperança e antes que te pudesse ajudar, mas que teu coração se alegre, e não esmoreças. Deus e os anjos bons pelejam ao lado de Richmond. E Ricardo cai do cume de todo seu orgulho. (Sai) 
(Ricardo acorda sobressaltado)
 RICARDO III (Rei)- Dai-me outro cavalo! Ligai minhas feridas! Tende piedade, Jesus! Chiu, tão-só sonhava. Ó covarde consciência, como me atormentas! As luzes ardem azuis, é a meia-noite dos mortos. Gotas frias de terror são no meu corpo tremente. De que me receio? De mim próprio? Não é mais ninguém aqui. Ricardo ama Ricardo, ou seja, eu e eu. Aqui  há um assassino? Não! Sim, sou eu! Então fugi. Quê, de mim próprio? Boa razão há, não me vá eu vingar! Quê, eu próprio contra mim próprio? Coitado de mim, eu amo-me a mim próprio. Porquê? Pelos bens que eu próprio a mim próprio ofereci? Oh, não, pobre coitado, antes a mim próprio tenho ódio por feitos odiosos que eu próprio cometi. Sou ruim vilão... mas minto, eu o não sou! Sandeu, diz bem de ti próprio! Sandeu, não uses de lisonja! Minha consciência tem milhares de línguas diferentes e cada língua me diz um conto diferente, e cada conto me condena como ruim vilão: perjúrio, perjúrio, no mais subido grau; assassínio, assassínio horrendo, no mais horrífico grau. Todos os pecados diferentes, todos cometidos em cada grau, se ajuntam diante o juiz todos bradando: "Culpado, culpado!" Em desespero cairei. Não há criatura que me ame, e se eu morrer, ninguém me lamentará... E porque o fariam, se eu próprio em mim próprio por mim próprio não encontro dó? Cuido que as almas de todos os que assassinei vieram a minha tenda, e cada qual me ameaçou que amanhã a vingança tombaria sobre a cabeça de Ricardo.
 (Entra Ratcliffe.) 
RATCLIFFE- Meu senhor?
RICARDO III (Rei)- Pelo demo! Quem está aí?

William Shakespeare, Ricardo III, Acto V - Cena III


Tradução de Carlos A. Nunes


Não é por acaso que consideramos a consciência como um palco. Ela é o lugar onde várias vozes dialogam, respondem, gritam, enfurecem-se, acarinham, aceitam, revoltam-se, falam como se cada uma fosse uma personagem digna de atenção e tão capaz de se impor como de se frustrar irremediavelmente, viva sem realmente o ser, como fantasma. A acção de Ricardo III não pode ser identificada como tragédia porque há uma consciência que dissolve a terrível e incompreensível injustiça dos actos trágicos, remetendo a sua explicação para a ambição e a insanidade de uma pessoa defeituosa, corcunda e egoísta. A dimensão psicológica de Ricardo III ( que Shakespeare quer mostrar também fisicamente com a corcunda que, consta, a personagem histórica não possuía) permite-nos compreender que a dimensão trágica da condição humana desapareceu, dando lugar à dimensão dramática, aos abismos da mente onde nos perdemos e onde a vontade submerge sem, no entanto, deixarmos de ser conscientes dos nossos actos. Nenhum destino nos manda, somos só nós, sozinhos com os nossos fantasmas, nós a força e a sua negação.

H.S

quinta-feira, fevereiro 26, 2015

Como é ser um morcego? À descoberta da relação mente corpo


Rene Magritte, O Peregrino, 1966


A experiência consciente é um fenómeno difundido. Ocorre em muitos níveis da vida animal, porém não podemos estar certos da sua presença nos organismos mais simples, e é muito difícil dizer, em termos gerais, o que nos dá evidências dessa experiência. (Alguns extremistas chegaram a negá-la até mesmo nos mamíferos diferentes do homem). Ela ocorre, sem dúvida, sob formas incontáveis, totalmente inimagináveis para nós, em outros planetas, em outros sistemas solares, pelo universo afora. Mas quaisquer que sejam as variações quanto à forma, o fato de um organismo ter, seja lá como for, uma experiência consciente significa, basicamente, que há "algo que seja ser como aquele organismo" [that there is something it is like to be that organism]. Pode haver implicações adicionais sobre a forma da experiência; pode mesmo haver implicações sobre o comportamento do organismo (porém, disso eu duvido). Mas, fundamentalmente, um organismo tem estados mentais conscientes se e somente se existe algo que "é como ser esse organismo", algo que é como ser para o organismo [something it is like for the organism].
Podemos chamar isso de o carácter subjectivo da experiência. Ele não é capturado por quaisquer das recentes e familiares análises redutoras do mental, já que todas elas são logicamente compatíveis com sua ausência. Não é analisável em termos de nenhum sistema explicativo de estados funcionais, ou de estados intencionais, pois esses poderiam ser atribuídos a robôs ou autómatos que se comportassem como pessoas, embora não experimentassem nada [2]. Não é analisável em termos do papel causal das experiências no comportamento humano típico, por razões similares [3]. Eu não nego que os estados e eventos mentais causem o comportamento, nem que possam ser dadas caracterizações funcionais deles. Nego apenas que esse tipo de coisa esgote a análise dos mesmos. Qualquer programa reducionista tem que se basear em uma análise do que deve ser reduzido. Se a análise deixa algo de fora, o problema será colocado erroneamente. É inútil basear a defesa do materialismo em qualquer análise dos fenómenos mentais que não encare explicitamente o seu carácter subjectivo. Não há razão para se supor que uma redução que pareça plausível quando não se tenta explicar a consciência possa ser estendida para incluir a consciência.
(:Eu disse que a essência da crença de que morcegos têm experiência está em que haja algo que é ser como um morcego [that there is something that it is like to be a bat]. Atualmente, sabemos que a maior parte dos morcegos (microchiroptera, para ser preciso) percebem o mundo externo primariamente por um sonar, localizando-se pelo eco, detectando as reflexões dos seu próprios gritos rápidos, sutilmente modulados e de alta frequência, nos objetos ao seu alcance. Seus cérebros são projetados [designed] para correlacionar os impulsos enviados com os ecos subsequentes, e as informações assim adquiridas permitem aos morcegos discriminações precisas acerca da distância, tamanho, forma, movimento e textura, comparáveis às que fazemos pela visão. Mas o sonar dos morcegos, embora seja claramente uma forma de percepção, não é similar a nenhum sentido que possuímos, quanto à forma das suas operações. E não há razão para se supor que ele seja, subjetivamente, parecido com algo que nós possamos experimentar ou imaginar. Isso parece criar dificuldades para a noção de como é ser um morcego [what is it like to be a bat]. Devemos considerar se algum método nos permitirá extrapolar o nosso próprio caso à vida interior do morcego, [5] e, em caso negativo, se pode haver algum método alternativo para o entendimento desta noção.
A nossa própria experiência provê o material básico para a nossa imaginação, cujo alcance é, consequentemente, limitado. Não ajuda tentar imaginar que alguém tenha membranas sob os braços que o habilite a voar ao entardecer e ao alvorecer pegando insetos com a boca, que tenha a visão muito precária e perceba o mundo à sua volta por um sistema de sinais de som em alta frequência refletidos, e que passe o dia pendurado de cabeça para baixo com os pés no teto de um sótão. Até onde eu consiga imaginar isso (e não chego muito longe), isso apenas me diz como seria para mim comportar-me como um morcego se comporta. Mas não é essa a questão. Eu quero saber como é, para um morcego, ser um morcego. Se eu ainda assim tento imaginar isso, fico restrito aos recursos da minha própria mente, inadequados para a tarefa. Não consigo isso nem mesmo imaginando acréscimos à minha experiência presente, nem imaginando segmentos gradualmente subtraídos dela, nem imaginando uma combinação de acréscimos, subtrações e modificações.
Mesmo que eu pudesse parecer uma vespa ou um morcego, ou comportar-me como eles, sem modificar a minha estrutura fundamental, minhas experiências não seriam nada parecidas com as experiências de tais animais.(...)

Estranhamente, nós podemos ter evidência da verdade de algo que não podemos realmente compreender. Suponhamos que uma lagarta seja trancada num cofre esterilizado por alguém que tenha pouca familiaridade com as metamorfoses dos insectos. Semanas depois o cofre é aberto, revelando uma borboleta. Se a pessoa sabe que o cofre esteve trancado o tempo todo, tem razões para acreditar que a borboleta seja, ou tenha sido, a lagarta, sem ter nenhuma ideia de como isso possa ser assim. (Uma possibilidade seria que a lagarta tivesse um parasita alado minúsculo que a tivesse devorado inteiramente e crescido transformando-se numa borboleta).

Tomas Nagel, Como é ser um morcego?

A experiência do cogito inicia a aventura do ser que se pensa e do mundo que é pensado e da sua radical ligação e separação.