Henri Fantin-Latour, Maçãs, 1868
ACTO V
CENA III
(...)
(Entram os fantasmas dos dois jovens príncipes.)
FANTASMAS
(ao Rei Ricardo)- Pensa em teus primos sufocados na Torre. Chumbo sejamos
dentro em teu peito, Ricardo, e com nosso peso te arremessemos para a ruína,
infâmia e morte. As almas de teus sobrinhos ordenam que desesperes e morras.
(Para Richmond) Dorme, Richmond, dorme em paz, e com alegria acorda. Guardem-te
os anjos bons dos ataques do javali. Vive e gera feliz linhagem de reis. Os
infelizes filhos de Eduardo ordenam que floresças.
(Saem. Entra o fantasma da
senhora Dona Ana, sua esposa)
FANTASMA DE ANA (ao Rei Ricardo)- Ricardo, tua
mulher, essa mísera Ana, tua mulher, que não dormiu contigo uma só hora feliz,
enche agora teu sono de turvações. Amanhã na batalha pensa em mim, e caia, sem
gume, tua espada. Desespera e morre. (Para Richmond) Tu, alma tranquila, dorme
teu sono tranquilo. Sonha bom sucesso e uma vitória feliz. A mulher de teu
adversário ora por ti.
(Sai. Entra o fantasma de Buckingham)
FANTASMA DE
BUCKINGHAM (ao Rei Ricardo)- Fui aquele que primeiro te ajudou a chegar à
coroa, o último que sentiu a tua tirania. Oh, na batalha pensa em Buckingham, e
morre no terror das tuas culpas. Sonha, sonha sanguinolentos feitos e morte. Em
perdendo forças desespera, em desesperando, exala teu derradeiro sopro. (Para
Richmond) Morri na esperança e antes que te pudesse ajudar, mas que teu coração
se alegre, e não esmoreças. Deus e os anjos bons pelejam ao lado de Richmond. E
Ricardo cai do cume de todo seu orgulho. (Sai)
(Ricardo acorda
sobressaltado)
RICARDO III (Rei)- Dai-me outro cavalo! Ligai minhas feridas!
Tende piedade, Jesus! Chiu, tão-só sonhava. Ó covarde consciência, como me
atormentas! As luzes ardem azuis, é a meia-noite dos mortos. Gotas frias de
terror são no meu corpo tremente. De que me receio? De mim próprio? Não é mais
ninguém aqui. Ricardo ama Ricardo, ou seja, eu e eu. Aqui há um assassino? Não! Sim, sou eu! Então fugi.
Quê, de mim próprio? Boa razão há, não me vá eu vingar! Quê, eu próprio contra
mim próprio? Coitado de mim, eu amo-me a mim próprio. Porquê? Pelos bens que eu
próprio a mim próprio ofereci? Oh, não, pobre coitado, antes a mim próprio
tenho ódio por feitos odiosos que eu próprio cometi. Sou ruim vilão... mas
minto, eu o não sou! Sandeu, diz bem de ti próprio! Sandeu, não uses de
lisonja! Minha consciência tem milhares de línguas diferentes e cada língua me
diz um conto diferente, e cada conto me condena como ruim vilão: perjúrio,
perjúrio, no mais subido grau; assassínio, assassínio horrendo, no mais
horrífico grau. Todos os pecados diferentes, todos cometidos em cada grau, se
ajuntam diante o juiz todos bradando: "Culpado, culpado!" Em
desespero cairei. Não há criatura que me ame, e se eu morrer, ninguém me
lamentará... E porque o fariam, se eu próprio em mim próprio por mim próprio
não encontro dó? Cuido que as almas de todos os que assassinei vieram a minha
tenda, e cada qual me ameaçou que amanhã a vingança tombaria sobre a cabeça de
Ricardo.
(Entra Ratcliffe.)
RATCLIFFE- Meu senhor?
RICARDO III (Rei)- Pelo demo! Quem está aí?
William Shakespeare, Ricardo III, Acto V - Cena III
Tradução de Carlos A. Nunes
Não é por acaso que consideramos a consciência como um palco. Ela é o lugar onde várias vozes dialogam, respondem, gritam, enfurecem-se, acarinham, aceitam, revoltam-se, falam como se cada uma fosse uma personagem digna de atenção e tão capaz de se impor como de se frustrar irremediavelmente, viva sem realmente o ser, como fantasma. A acção de Ricardo III não pode ser identificada como tragédia porque há uma consciência que dissolve a terrível e incompreensível injustiça dos actos trágicos, remetendo a sua explicação para a ambição e a insanidade de uma pessoa defeituosa, corcunda e egoísta. A dimensão psicológica de Ricardo III ( que Shakespeare quer mostrar também fisicamente com a corcunda que, consta, a personagem histórica não possuía) permite-nos compreender que a dimensão trágica da condição humana desapareceu, dando lugar à dimensão dramática, aos abismos da mente onde nos perdemos e onde a vontade submerge sem, no entanto, deixarmos de ser conscientes dos nossos actos. Nenhum destino nos manda, somos só nós, sozinhos com os nossos fantasmas, nós a força e a sua negação.
H.S
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