sexta-feira, julho 15, 2016

Pensar


Giuseppe De Nittis, 1846/1884 Itália

Alcançamos o que significa pensar quando nós mesmos pensamos. Para que tal tentativa seja bem- sucedida, devemos dispor-nos a aprender a pensar. Assim que nos empenhamos nesta aprendizagem, estamos já a admitir que não somos capazes de pensar. Mas, ora, por direito, o homem é aquele que pode pensar. Porque ele é o animal razoável (racional). A razão, a ratio, desdobra-se em pensamento. Como animal razoável (racional), o homem deve poder pensar, só dependendo de querer. De todo modo, talvez o homem queira pensar e, no entanto, não possa. Afinal, nesse querer pensar, ele quer demais e, por isso, pode menos. O homem pode pensar, no sentido em que tem essa possibilidade. Mas, sozinha, tal possibilidade ainda não nos garante o pensamento. Está somente em nosso poder que o desejemos. Mas nós desejamos verdadeiramente, em compensação, apenas aquilo que, por sua vez,  deseja a nós -mesmos, na nossa verdadeira essência. Revelando-se à nossa essência como o que nos mantém nessa essência. Manter significa propriamente abrigar, deixar-se apascentar na pastagem. O que nos mantém na nossa essência, nos mantém apenas enquanto nós-mesmos retemos por o maior tempo possível, isso que nos mantém. Retemo-lo, enquanto não permitimos que ele saia da memória. A memória é a coleção de pensares. Coleção de quê? Daquilo que nos mantêm, enquanto for guardado no nosso pensamento – guardado porque continua a ser o que precisa ser guardado no pensamento, considerado ou a considerar. O que é guardado no pensamento e pode ser recordado só o é porque o desejámos. É apenas enquanto desejamos o que em si merece ser guardado no pensamento, que este está em nosso poder.
Para poder pensar, para que o pensamento esteja em nosso poder, nós precisamos aprendê-lo. O que é aprender? É fazer do que fazemos e do que não fazemos de cada vez, o eco da revelação do essencial. Nós aprendemos a pensar, prestando atenção ao que exige ser guardado no pensamento.
A nossa língua, por exemplo, nomeia a amizade como o que pertence à essência de amigo. Do mesmo modo, nomearemos agora, o que em si exige ser guardado no pensamento: o pensável ( o considerável). Todo pensável (considerável) dá a pensar.(...).
 O que é que exige ser guardado no pensamento? Como se mostra na nossa época? O que deve ser guardado no pensamento é o que ainda não pensamos; é um sempre e ainda não, apesar do estado do mundo o requerer consideravelmente. Esse processo aparece livremente a sustentar o fato de que o homem prioritariamente está na lida, sem demora, em vez de dar conferências em congressos e se movimentar em meras apresentações daquilo que deveria ser e como deveria ser feito. E, não obstante, − talvez o homem de até então há séculos tenha lidado demais e pensado muito pouco. Mas como pode alguém hoje afirmar que nós ainda não pensamos, quando por toda a parte o interesse pela filosofia é mais ruidoso, quando todo homem quer saber sobre o que, afinal, é a filosofia? Os filósofos são “os” pensadores”. Assim se chamam, pois é na filosofia que acontece o pensar. Ninguém quer contestar que existe hoje um interesse pela filosofia. Mas ainda haveria algo hoje pelo qual o homem não se interesse no sentido mesmo de como ele entende “interessar”? Interesse significa: estar no meio e entre coisas, demorar-se no coração de uma coisa e ficar perto dela. Mas para o in-teresse moderno só conta o que é “interessante”. A característica principal do que é “interessante”, é que pode no instante seguinte tornar-se-nos indiferente e ser substituído por outra coisa, que nos preocupa na mesma proporção que a precedente. É frequente, hoje, querermos honrar particularmente algo só porque o consideramos “interessante”. Na verdade um tal juízo faz do que é interessante qualquer coisa indiferente, e rapidamente enfadonho.

Martin Heidegger, Qu’apelle-t-on penser?, Presses Universitaires de France, Paris, 1973, pp.21, 22 e 23
Título original: Was heibt denken? (1954)

Tradução do francês de Helena Serrão



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