Giuseppe De Nittis, 1846/1884 Itália
Alcançamos o que significa pensar quando nós mesmos
pensamos. Para que tal tentativa seja bem- sucedida, devemos dispor-nos a
aprender a pensar. Assim que nos empenhamos nesta aprendizagem, estamos já a
admitir que não somos capazes de pensar. Mas, ora, por direito, o homem é
aquele que pode pensar. Porque ele é o animal razoável (racional). A razão, a
ratio, desdobra-se em pensamento. Como animal razoável (racional), o homem deve
poder pensar, só dependendo de querer. De todo modo, talvez o homem queira
pensar e, no entanto, não possa. Afinal, nesse querer pensar, ele quer demais
e, por isso, pode menos. O homem pode pensar, no sentido em que tem essa
possibilidade. Mas, sozinha, tal possibilidade ainda não nos garante o
pensamento. Está somente em nosso poder que o desejemos. Mas nós desejamos verdadeiramente,
em compensação, apenas aquilo que, por sua vez, deseja a nós -mesmos, na nossa verdadeira essência.
Revelando-se à nossa essência como o que nos mantém nessa essência. Manter
significa propriamente abrigar, deixar-se apascentar na pastagem. O que nos
mantém na nossa essência, nos mantém apenas enquanto nós-mesmos retemos por o
maior tempo possível, isso que nos mantém. Retemo-lo, enquanto não permitimos
que ele saia da memória. A memória é a coleção de pensares. Coleção de quê? Daquilo
que nos mantêm, enquanto for guardado no nosso pensamento – guardado porque
continua a ser o que precisa ser guardado no pensamento, considerado ou a
considerar. O que é guardado no pensamento e pode ser recordado só o é porque o
desejámos. É apenas enquanto desejamos o que em si merece ser guardado no pensamento,
que este está em nosso poder.
Para poder pensar, para que o pensamento esteja em nosso
poder, nós precisamos aprendê-lo. O que é aprender? É fazer do que fazemos e do
que não fazemos de cada vez, o eco da revelação do essencial. Nós aprendemos a
pensar, prestando atenção ao que exige ser guardado no pensamento.
A nossa língua, por exemplo, nomeia a amizade como o que
pertence à essência de amigo. Do mesmo modo, nomearemos agora, o que em si
exige ser guardado no pensamento: o pensável ( o considerável). Todo pensável (considerável)
dá a pensar.(...).
O que é que exige ser
guardado no pensamento? Como se mostra na nossa época? O que deve ser guardado no
pensamento é o que ainda não pensamos; é um sempre e ainda não, apesar do
estado do mundo o requerer consideravelmente. Esse processo aparece livremente
a sustentar o fato de que o homem prioritariamente está na lida, sem demora, em
vez de dar conferências em congressos e se movimentar em meras apresentações
daquilo que deveria ser e como deveria ser feito. E, não obstante, − talvez o
homem de até então há séculos tenha lidado demais e pensado muito pouco. Mas
como pode alguém hoje afirmar que nós ainda não pensamos, quando por toda a
parte o interesse pela filosofia é mais ruidoso, quando todo homem quer saber
sobre o que, afinal, é a filosofia? Os filósofos são “os” pensadores”. Assim se
chamam, pois é na filosofia que acontece o pensar. Ninguém quer contestar que
existe hoje um interesse pela filosofia. Mas ainda haveria algo hoje pelo qual
o homem não se interesse no sentido mesmo de como ele entende “interessar”?
Interesse significa: estar no meio e entre coisas, demorar-se no coração de uma
coisa e ficar perto dela. Mas para o in-teresse moderno só conta o que é “interessante”.
A característica principal do que é “interessante”, é que pode no instante
seguinte tornar-se-nos indiferente e ser substituído por outra coisa, que nos
preocupa na mesma proporção que a precedente. É frequente, hoje, querermos
honrar particularmente algo só porque o consideramos “interessante”. Na verdade
um tal juízo faz do que é interessante qualquer coisa indiferente, e
rapidamente enfadonho.
Martin Heidegger, Qu’apelle-t-on
penser?, Presses Universitaires de France, Paris, 1973, pp.21, 22 e 23
Título original: Was
heibt denken? (1954)
Tradução do francês de Helena Serrão
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