quarta-feira, fevereiro 05, 2025

O Erro do Livre-arbítrio


Inge Morath, Durante o festival de São Firmin, Pamplona, Espanha. 1954

Não somos indulgentes com a ideia do livre-arbítrio: sabemos de sobejo do que se trata; a habilidade teológica de pior reputação que já houve para tornar a humanidade responsável à maneira dos teólogos, o que equivale a colocar a humanidade sob a dependência dos teólogos. Vou me limitar a explicar a psicologia dessa tendência a exigir responsabilidades. Onde quer que exijam responsabilidades, o instinto de julgar e de castigar anda, geralmente, mesclado na tarefa. Retira-se a inocência do devir quando lhe atribui um estado de fato, qualquer que seja, à vontade, a intenções, a atos de responsabilidade. A doutrina da vontade foi inventada, principalmente, colimando castigar, isto é, com a intenção de achar um culpado. Toda a antiga psicologia, psicologia da vontade, deve sua existência ao fato de que seus inventores, os sacerdotes, chefes das comunidades primitivas, quiseram atribuir-se o direito de castigar, ou quiseram conceder tal direito a Deus. Os homens foram considerados livres para se poder julgá-los e castigá-los, para se poder declará-los culpados. Consequentemente, toda ação tinha que reputar-se voluntária, e a origem de todo ato devia supor-se na consciência (pelo que a falsificação das moedas in psychologicis, por princípio, se erigia da própria psicologia). Hoje, que entramos na corrente contrária e nós, os imoralistas, trabalhamos com todas nossas forças para conseguir que desapareça mais uma vez do mundo a ideia da culpabilidade e do castigo, tanto quanto para eliminar delas a psicologia, a história, a Natureza, as instituições e as sanções sociais, não há, a nossos olhos, oposição mais radical que a dos teólogos, que por meio da ideia do mundo moral prosseguem contaminando a inocência do devir com o pecado e o castigo. O cristianismo é uma metafísica de verdugos.

                          Friedrich Nietzsche, O crepúsculo dos ídolos, Lisboa, Edições 70, pag 41

O anátema que Nietzsche impõe ao cristianismo, o enfoque no discurso de ódio, tem exactamente, nas suas palavras, um espelho claro onde se vê esse mesmo discurso virulento, acusar de virulência toda a moral cristã. A análise será oportuna como diagnóstico de uma certa forma de julgar, que ultrapassa o sentido de juízo enquanto forma de considerar, entre outras formas, e se pretende determinante para moldar a consciência do indivíduo. O juízo cristão é fundamentado numa metafísica do julgamento e não do livre-arbítrio que seria um pretexto mais do que uma verdadeira crença. O tribunal do julgamento será a consciência de cada indivíduo, daí ser uma moral enfraquecedora, que cria, por isso mesmo, um ressentimento perante aqueles que, não estando submetidos a essa moral, seriam , esses sim, verdadeiramente livres, isto é, capazes de fazer o que verdadeiramente têm vontade de fazer. Pressuposto de que a moral cristã, impediria o homem de fazer a sua vontade pois o pecado estaria na própria vontade. A questão que parece pertinente acerca de textos como estes é que eles não deixam de ser textos de ódio e de ressentimento. Pois a luz de uma libertação que parece devir do "faz verdadeiramente o que queres" nos leva a perguntar o que molda a vontade para que esta constitua motor da ação, sendo que a resposta é que a vontade é deterministicamente, sempre, uma vontade de poder.  Mas há, parece um conflito entre poderes visto que Nietzsche parte do princípio de que o poder está do lado cristão, daí o seu ódio.  

Helena Serrão


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