Instituição dos jogos cénicos.
Todavia, ficai sabendo, vós
que o ignorais e vós também que fingis ignorá-lo; prestai atenção, vós que
murmurais contra quem vos libertou de tais senhores: os jogos cénicos, espetáculos
de torpeza e desvario de vaidades, foram criados em Roma não por vícios humanos
mas por ordem dos vossos deuses. Seria mais tolerável conceder honras divinas a
Cipião do que prestar culto a deuses deste jaez. Porque estes não eram melhores
que o seu pontífice. Vede se prestais atenção — se é que o vosso espírito,
embriagado por erros sorvidos desde há tanto tempo, vos permite tom ar em
consideração alguma coisa de são. Os deuses ordenavam exibições de jogos
teatrais em sua honra para refrearem a pestilência dos corpos. O pontífice, ao
invés, proibia a própria construção do teatro para evitar que as vossas almas
se empestassem. Se em vós resta uma centelha de lucidez para dar preferência à
alma sobre o corpo — escolhei a qual dos dois deveis prestar culto. E não se
acalmou aquela pestilência dos corpos, porque, num povo belicoso como este, até
então acostumado apenas aos jogos de circo, se insinuou a insânia refinada das
representações teatrais. Mas a astúcia de espíritos nefandos, prevendo que a
seu tempo terminaria aquela peste, teve o cuidado de inocular outra muito mais
grave e do seu pleno agrado, desta vez não nos corpos mas nos costumes. Esta
peste cegou o espírito a estes desgraçados com tão espessas [185] trevas e
tornou-os tão disformes, que, agora (a posteridade talvez não acredite se lhe
chegar ao ouvido), devastada que foi Roma, os contagiados desta peste que na
fuga conseguiram chegar a Cartago, todos os dias e à porfia se encontram nos
teatros enlouquecidos pelos histriões.
Santo Agostinho, A cidade de Deus, Lisboa. Fundação Calouste Gulbenkian, Livro I, p.185
Tradução Dias Pereira
Ora Agostinho considera o Teatro perverso, ora ele é realizado a pedido e como oferenda a uma divindade, logo, a divindade é perversa. Aqui há um juízo de valor que se fundamenta numa crença prévia. O teatro é perverso porquê? Porque não é uma oferenda ao Deus Único? Porque não tem como fim a sua exaltação?
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