quarta-feira, abril 08, 2020

Compreender o artista através da interpretação de uma obra?


1889, "Paisagem de Saint- Rémy", Fotografia de Saint-Paul-de- Mausole, hospício onde à época Van Gogh esteve internado, e "Vista de Saint- Rémy".

"Quanto mais nos aproximamos da nossa época, mais os documentos estão conservados. No caso de Avista de Saint-Rémy, de Van Gogh, é possível conhecer a paisagem que o inspirou, seguir pelos esboços e os desenhos a forma como a transformou, e chegar ao quadro, ou melhor, à série, de quadros que terminam esta trajectória criadora.

A paisagem é a que Van Gogh via da janela do pequeno atelier posto à sua disposição no asilo de loucos onde se encontrava em tratamento, após a grande crise de Arles. Uma fotografia mostra este local, que o tempo pouco modificou: o jardim provençal cercado por um murovelho, por detrás do qual estão escalonados os planos de árvores que conduzem às colinas do fundo. Tudo é triste, indiferente. Van Gogh começa a desenhar. A natureza não lhe interessa: o que lhe interessa é interrogar-se e projectar-se a si próprio, procurando reconhecer no mundo afigura do seu drama. A onda interior que o transtorna, erguendo-o a paroxismos de que tomba, recaindo na angústia, abandona-o precipitadamente. Como uma vaga que transborda, ela corre através do pequeno campo, e segue o seu curso louco, amedrontada, com ondulações rápidas de réptil assustado que foge de um perigo. Como nos pesadelos, o muro recua quase até ao horizonte; por detrás dele, a vegetação ferve e de repente ncendeia-se; os pinheiros estalam, as folhas lançam chamas para o ar. O próprio céu, maltratado pelos remoínhos amplificados, como ondas de uma deflagração, dissolve-se, num movimento giratório, em redor do seu centro, o sol.
Desta forma, os desenhos enunciaram o drama. Van Gogh aborda o quadro definitivo. As ondas, já postas em movimento, amplificam-se, o campo inteiro agita-se como um mar remexido por um vento de tempestade. As linhas incham, empurram-se e correm (...). O sol arrasta o seu giro sem fim o quadro nteiro, e as pinceladas não marcam senão os remoínhos do maelstrom que se amplifica indefenidamente; ele volta, tremendo de fúria e de angústia, para o universo que o evocou. O pintor, ponto de chegada do mundo, e ponto de partida da pintura, ergue-se no coração da arte."

René Huygue, Os poderes da imagem, Lx, Ed. 70

Este texto tem o poder de ser evocativo, de nos transportar para o que poderia ser a exaltação artística do pintor Van Gogh,  não em abstrato, a exaltação de um pintor, que viveu  um certo drama, naquele hospício de Saint Rémy. Como se pode compreender o proceso da criação através da interpretação das formas e dos elementos de um quadro concreto "A vista de Saint- Rémy"?  Pensar a arte assumindo que esse pensamento é livre, no sentido de que pensar é antes de mais, fazer o mesmo movimento de criar, ver e sentir e depois encontrar uma forma de expressar o que vemos e o que sentimos, cientes de que o que vemos exalta de uma certa forma particular, o que sentimos. Nesse aspeto, concordo com Huygue, essa parece-me a única forma legítima e interessante de fazer crítica literária ou filosofia da arte, porque tenta mostrar a forma como cada um recria o que vê de acordo com a sua sensibilidade, não deixando contudo de o fundamentar em exemplos e narrativas verosímeis e igualmente apelativas, tanto quanto a obra de que se partiu. Por outro lado arrepia-me a posição que tende a compreender o processo psicológico da criação e a descrever as intenções do artista; é uma pretensão vã e enganadora, pois se dissermos o oposto da intenção de Van Gogh  que o autor expõe neste texto, não ver-se na paisagem que vê, mas sim fugir de si, alienando-se na paisagem que vê, poderia ser igualmente verdadeiro, daí ser vã a pretensão de tentar captar as intenções do artista no acto criador, é como apanhar o ar.

Helena Serrão

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