Toda a moralidade das
nossas acções está no julgamento que trazemos dentro de nós. Se é verdade que o
bem seja bem, ele deve estar no fundo dos nossos corações assim como nas nossas
obras, e o primeiro prémio da justiça é o de sentir que a praticamos. Se a
bondade moral é conforme à nossa natureza, o homem não poderia ser são de espírito
e bem constituído se não fosse bom. Se assim não for, se o homem é mau
naturalmente, ele não pode parar de o ser sem se corromper, e a bondade é nele,
não mais que um vício contra natura. Feito para lesar os teus semelhantes como
o lobo sacrifica a presa, um homem humano seria um animal tão depravado como um
miserável lobo; e só a virtude nos deixaria remorsos.
Entremos em nós próprios,
oh meu jovem amigo! Examinemos, sem qualquer interesse pessoal, aonde nos
conduzem as nossas inclinações. Qual é o espectáculo que mais nos anima, o dos
tormentos ou o da felicidade de alguém? O que nos é mais doce de fazer, e nos
deixa uma impressão mais agradável depois de o ter feito, um acto de bondade ou
um acto de mesquinhez? Por quem vos interessais nos vossos teatros? É a perversidade que vos dá prazer? É à punição
dos seus autores que dais as vossas lágrimas? Tudo nos é indiferente, dirão
eles, fora do nosso interesse: e, completamente ao contrário, as doçuras da
amizade, da humanidade, consolam-nos nas nossas dores; e, mesmo nos nossos
prazeres, seríamos demasiado solitários, demasiado miseráveis, se não tivéssemos
com quem os partilhar. Se não há nada moral no coração do homem, de onde lhe vêem
estes arrebatamentos de admiração pelas acções heróicas, estes encantamentos
amorosos pelas grandes almas? Este entusiasmo pela virtude, que relação terá
com o nosso interesse particular? Porque prefiro eu ser Catão que rasgou as
suas entranhas, a ser César triunfante?
Tirai dos nossos corações este amor do bem, tirareis todo o charme da
vida. Aqueles cujas vis paixões sufocaram a sua alma limitaram estes deliciosos
sentimentos; aquele que, à força de se concentrar dentro de si , acaba por só
se amar a si mesmo, não tem arrebatamentos, o seu coração gélido não palpita
mais de alegria; um doce enternecimento não humedece os seus olhos; não goza mais com nada; o infeliz não sente
mais, não vive mais; já está morto.
Jean- Jaccques Rousseau, Émile ou de L’Éducation,
Flammarion, 1966, pág.373,374
Tradução de Helena Serrão
Fotografia de Rodney Smith
A moral fundada na natureza humana, mais propriamente no sentimento (no coração) como o que nos aproxima do outro e desse modo encontrar nele aquilo que encontramos em nós, o que poderíamos chamar de empatia ou numa linguagem herdeira das virtudes cristãs, a piedade como inclinação para sentir os outros como iguais, na sua humanidade de dores e alegrias. Contrariamente aos princípios do sistema moral de Kant, esta proposta de Rousseau parece-me mais enriquecedora e essencial porque, podendo correr mais riscos uma vez que o sentimento tem atrás de si toda uma tradição filosófica negativa, a suspeita de ser volátil e nos tornar vulneráveis, é por outro lado o que nos impele para o outro, num sentido amoroso e o que nos impede de o molestar.
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