quinta-feira, fevereiro 13, 2014

Outro sentido de bom



Assim, pois, vertidas em origem para a parte passiva do bom, as investigações só mais tarde puderam conduzir-se para a parte activa, a fim de estudar a conduta do homem qualificado bom, não mais em relação aos outros, mas em relação a si mesmo e sobretudo para dar-se conta, por um lado, do respeito objectivo que inspira aos outros e da satisfação em si mesma especial, que atribui evidentemente ao indivíduo, do momento em que a adquire com sacrifícios de toda sorte; e por outro lado, da dor interna que acompanha o mau propósito, qualquer que seja a vantagem externa que haja dado a quem o nutria. Ai tiveram origem os sistemas de moral, tanto os que se apoiam na filosofia, quanto os que se fundam nas religiões. Todos eles procuram reunir por algum modo a felicidade à virtude. Os primeiros esforçam-se para chegar a esse ponto, ou por meio do princípio de contradição, ou pelo da razão, isto é, identificando a felicidade com a virtude, ou fazem a primeira derivar da ultima; mas não nos dão mais do que sofismas. Os segundos crêem atingir o objectivo, admitindo outros mundos além dos que a experiência nos pode fazer conhecer. (1) O nosso estudo, entretanto, nos fará saber que a essência da virtude é uma aspiração que possui efectivamente uma tendência contrária à da felicidade que quer o bem-estar e a vida.
De quanto havemos exposto resulta que, em virtude da sua noção, o bom é ( …) essencialmente relativo, porque a sua natureza consiste na sua relação com uma vontade especial. O bom absoluto é, portanto, uma contradição; o bem supremo, summum bonum, significa a mesma coisa, isto é, uma satisfação final da vontade, depois da qual não mais surgiriam novos desejos, motivo derradeiro cujo cumprimento apagaria de maneira indestrutível o querer. Ora, segundo as considerações contidas até aqui, neste quarto livro, semelhante coisa é inadmissível. A vontade não pode encontrar uma satisfação que lhe permita não mais recomeçar a querer, tanto quanto não poderia o tempo acabar ou começar. Não existe para a vontade uma realização durável e para sempre satisfatória da sua aspiração. A vontade é o tonel das Danaides. Para ela não há bem supremo, absoluto, mas apenas um bem que é sempre provisório. Se, porém, nos empenhássemos com o fim de dar um emprego honorário, de certa maneira a título emérito, a uma antiga locução que não se quisesse pôr completamente fora de uso, poder-se-ia, figuradamente e metaforicamente, denominar bem absoluto, “summum bonum”, ao querer quando se suprime e se nega a si mesmo, à verdadeira ausência de volição, única a apagar e sufocar para sempre a vontade, única a dar tão grande satisfação que já não pode ser perturbada por coisa alguma, única a redimir o mundo e disto trataremos dentro em pouco no fim deste estudo. Pode-se considerá-la como o único remédio que cura radicalmente, enquanto todos os outros não são mais que paliativos e anódinos. Neste sentido, a palavra grega “(C. g.)” bem como a latina finis bonorum se aplicam ainda melhor à coisa. Eis quanto tinha a dizer sobre as expressões bom e mau. Agora, entremos na questão.
Quando um homem, apenas se lhe ofereça a ocasião e nenhuma força extrema lho impeça, está sempre disposto a agir injustamente, nós o chamamos mau. Isto significa, segundo a nossa definição de injustiça, que esse homem não se limita a firmar o seu querer-viver como se manifesta no seu corpo, mas estende essa afirmação até negá-la nos outros indivíduos. Demonstra-o procurando empregar as forças desses indivíduos ao serviço da sua vontade e destruir-lhes a existência quando se tornam obstáculo às suas aspirações. Tudo isto resulta, em última análise, daquele extremo egoísmo cuja natureza havemos definido anteriormente. Desde o começo ressaltam aqui duas coisas: Em primeiro lugar, que a vivacidade do querer-viver é excessiva em tal indivíduo e vai além da afirmação do seu próprio corpo; em segundo lugar, que a sua consciência, submetida ao princípio de razão e embebida do princípio de individuação, se atém obstinadamente apegada à distinção que este último estabelece entre a sua pessoa e todas as outras; por consequência, esse alguém não procurará senão o próprio bem e permanecerá completamente indiferente ao dos outros; ou antes, o próprio ser deles será estranho a seus olhos e separado deles por um largo abismo; porque, a bem dizer, os considerará como simples fantasmas que nada têm de real. Estes dois elementos formam a base fundamental dum carácter mau.
 Shopenhauer, O mundo como vontade e representação, Bondade e maldade
 
Foto: Rodney Smith

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