Assim, pois, vertidas em
origem para a parte passiva do bom, as investigações só mais tarde puderam
conduzir-se para a parte activa, a fim de estudar a conduta do homem
qualificado bom, não mais em relação aos outros, mas em relação a si
mesmo e sobretudo para dar-se conta, por um lado, do respeito objectivo que
inspira aos outros e da satisfação em si mesma especial, que atribui
evidentemente ao indivíduo, do momento em que a adquire com sacrifícios de toda
sorte; e por outro lado, da dor interna que acompanha o mau propósito, qualquer
que seja a vantagem externa que haja dado a quem o nutria. Ai tiveram origem os
sistemas de moral, tanto os que se apoiam na filosofia, quanto os que se fundam
nas religiões. Todos eles procuram reunir por algum modo a felicidade à
virtude. Os primeiros esforçam-se para chegar a esse ponto, ou por meio do
princípio de contradição, ou pelo da razão, isto é, identificando a felicidade
com a virtude, ou fazem a primeira derivar da ultima; mas não nos dão mais do
que sofismas. Os segundos crêem atingir o objectivo, admitindo outros mundos
além dos que a experiência nos pode fazer conhecer. (1) O
nosso estudo, entretanto, nos fará saber que a essência da virtude é uma
aspiração que possui efectivamente uma tendência contrária à da felicidade que
quer o bem-estar e a vida.
De quanto havemos exposto
resulta que, em virtude da sua noção, o bom é ( …) essencialmente relativo,
porque a sua natureza consiste na sua relação com uma vontade especial.
O bom absoluto é, portanto, uma contradição; o bem supremo, summum
bonum, significa a mesma coisa, isto é, uma satisfação final da vontade,
depois da qual não mais surgiriam novos desejos, motivo derradeiro cujo
cumprimento apagaria de maneira indestrutível o querer. Ora, segundo as
considerações contidas até aqui, neste quarto livro, semelhante coisa é
inadmissível. A vontade não pode encontrar uma satisfação que lhe permita não
mais recomeçar a querer, tanto quanto não poderia o tempo acabar ou começar.
Não existe para a vontade uma realização durável e para sempre satisfatória da
sua aspiração. A vontade é o tonel das Danaides. Para ela não há bem supremo,
absoluto, mas apenas um bem que é sempre provisório. Se, porém, nos
empenhássemos com o fim de dar um emprego honorário, de certa maneira a título
emérito, a uma antiga locução que não se quisesse pôr completamente fora de
uso, poder-se-ia, figuradamente e metaforicamente, denominar bem absoluto,
“summum bonum”, ao querer quando se suprime e se nega a si mesmo, à
verdadeira ausência de volição, única a apagar e sufocar para sempre a vontade,
única a dar tão grande satisfação que já não pode ser perturbada por coisa
alguma, única a redimir o mundo e disto trataremos dentro em pouco no fim deste
estudo. Pode-se considerá-la como o único remédio que cura radicalmente,
enquanto todos os outros não são mais que paliativos e anódinos. Neste sentido,
a palavra grega “(C. g.)” bem como a latina finis bonorum se aplicam
ainda melhor à coisa. Eis quanto tinha a dizer sobre as expressões bom e
mau. Agora, entremos na questão.
Quando um homem, apenas
se lhe ofereça a ocasião e nenhuma força extrema lho impeça, está sempre
disposto a agir injustamente, nós o chamamos mau. Isto significa,
segundo a nossa definição de injustiça, que esse homem não se limita a firmar o
seu querer-viver como se manifesta no seu corpo, mas estende essa afirmação até
negá-la nos outros indivíduos. Demonstra-o procurando empregar as forças desses
indivíduos ao serviço da sua vontade e destruir-lhes a existência quando se
tornam obstáculo às suas aspirações. Tudo isto resulta, em última análise,
daquele extremo egoísmo cuja natureza havemos definido anteriormente. Desde o
começo ressaltam aqui duas coisas: Em primeiro lugar, que a vivacidade
do querer-viver é excessiva em tal indivíduo e vai além da afirmação do seu
próprio corpo; em segundo lugar, que a sua consciência, submetida ao
princípio de razão e embebida do princípio de individuação, se atém
obstinadamente apegada à distinção que este último estabelece entre a sua
pessoa e todas as outras; por consequência, esse alguém não procurará senão o
próprio bem e permanecerá completamente indiferente ao dos outros; ou antes, o
próprio ser deles será estranho a seus olhos e separado deles por um largo
abismo; porque, a bem dizer, os considerará como simples fantasmas que nada têm
de real. Estes dois elementos formam a base fundamental dum carácter mau.
Foto: Rodney Smith
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