Aliás, há outro princípio que Hobbes não percebeu e que,
tendo sido dado ao homem para suavizar em certas ocasiões a ferocidade de seu amor
próprio ou o desejo de se conservar antes do nascimento desse amor, tempera o
ardor que ele tem pelo seu bem-estar com uma repugnância inata de ver sofrer o
seu semelhante. Não creio temer contradição alguma concedendo ao homem a única
virtude natural que o detrator mais extremado das virtudes humanas é forçado a
reconhecer. Refiro-me à piedade (compaixão), disposição conveniente a seres tão
fracos e sujeitos a tantos males como nós; virtude tanto mais universal quanto
mais útil ao homem que precede o uso de toda reflexão, e tão natural que os
próprios animais dão, às vezes, sinais sensíveis dela; sem falar da ternura das
mães pelos filhos e dos perigos que afrontam para defendê-los, observamos todos
os dias a repugnância que têm os cavalos em pisar um corpo vivo. Um animal não
passa sem inquietação perto de um animal morto da sua espécie: alguns lhes dão
mesmo uma espécie de sepultura; e os tristes mugidos do gado, ao entrar no
matadouro, anunciam a impressão que ele recebe do horrível espetáculo que o
comove. (…) Tal é o puro movimento da
natureza, anterior a toda reflexão; tal é a força da piedade natural, que os
costumes mais depravados ainda têm dificuldade em destruir, pois vemos todos os
dias, nos espetáculos, toda a gente se enternecer e chorar pelas desgraças de
um infeliz, como se estivesse cada qual no lugar do tirano e agravasse ainda
mais os tormentos do seu inimigo: como o sanguinário Sila, tão sensível aos
males que não causara, ou Alexandre, que não ousava assistir à representação de
nenhuma tragédia, com medo de que o vissem gemer com Andrómaca e Príamo,
enquanto escutava sem emoção os gritos de tantos cidadãos que se degolavam
todos os dias por sua ordem.
Mandeville sentiu bem que, com toda a sua moral, os homens
nunca teriam passado de monstros, se a natureza não lhes desse a piedade em
apoio da razão: mas não viu que dessa única qualidade decorrem todas as
virtudes sociais que quer disputar aos homens. Efetivamente, que é a
generosidade, a demência, a humanidade, senão a piedade aplicada aos fracos,
aos culpados, ou à espécie humana em geral? Mesmo a amizade e a benevolência
são, afinal de contas, produções de uma piedade constante, fixada sobre um
objeto particular: com efeito, desejar que alguém não sofra, que outra coisa é
senão desejar que seja feliz? Mesmo que fosse verdade que a comiseração não
passa de um sentimento que nos põe no lugar daquele que sofre, sentimento
obscuro e vivo no homem selvagem, desenvolvido mas fraco no homem civilizado,
que importaria essa ideia à verdade do que digo, a não ser para lhe dar mais
força? Efetivamente, a comiseração será tanto mais enérgica quanto o animal
espectador se identificar mais intimamente com o animal sofredor. Ora, é
evidente que essa identificação teve de ser infinitamente mais estreita no
estado de natureza que no estado de raciocínio. É a razão que engendra o amor
próprio, e é a reflexão que o fortifica; é ela que faz o homem cair em si; é
ela que o separa de tudo que o incomoda e o aflige. É a filosofia que o isola;
é por ela que ele diz em segredo, ao ver um homem que sofre: "Morre, se
queres; estou em segurança". Só os perigos da sociedade inteira perturbam
o sono tranquilo do filósofo e o fazem levantar-se do leito. Pode-se
impunemente degolar o semelhante debaixo da janela; é só tapar os ouvidos e
argumentar um pouco, para impedir que a natureza, revoltando-se nele, o
identifique com aquele que se assassina. O homem selvagem não tem esse
admirável talento, e, por falta de sabedoria e de razão, vemo-lo sempre
entregar-se, aturdido, ao primeiro sentimento de humanidade. Nos motins, nas
brigas de rua, a populaça aglomera-se, e o homem prudente afasta-se; é a
canalha, são as mulheres dos mercados que separam os combatentes e impedem a
gente honesta de se degolar mutuamente.
É, pois, bem
certo que a piedade é um sentimento natural, que, moderando em cada indivíduo a
atividade do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a
espécie. É ela que nos leva sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer;
é ela que, no estado de natureza, faz as vezes de lei, de costume e de virtude,
com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer à sua doce voz; é ela que
impede todo selvagem robusto de arrebatar a uma criança fraca ou a um velho
enfermo sua subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo espera poder
encontrar a sua alhures; é ela que, em vez desta máxima sublime de justiça
raciocinada, Faz aos outros o que queres
que te façam, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade
natural, bem menos perfeita, porém mais útil, talvez, do que a precedente: Faz o teu bem com o menor mal possível ao
outro. Em uma palavra, é nesse sentimento natural, mais do que em
argumentos sutis, que é preciso buscar a causa da repugnância que todo homem
experimentaria em fazer mal, mesmo independentemente das máximas da educação.
Embora possa competir a Sócrates e aos espíritos da sua têmpera adquirir a
virtude pela razão, há muito tempo que o género humano não mais existiria se a
sua conservação tivesse dependido exclusivamente dos raciocínios.
file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (64 of 64) [11/10/2001 19:05:32]
1 comentário:
Concordo plenamente com o Rousseau. Parece mesmo que todo homem traz em si, de forma inata, o sentimento da piedade. Com frequência, nos comovemos com o sofrimento de outros seres, quer humanos, quer animais. Eu mesmo, há poucos dias, quase chorei ao ver um cachorro revirar o lixo à procura de comida.
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