quarta-feira, abril 04, 2018

A verdadeira origem do bem: Compaixão ou fingimento?




Antonio Rotta, 1828/1903, Venezia, L’ortolanella
Aliás, há outro princípio que Hobbes não percebeu e que, tendo sido dado ao homem para suavizar em certas ocasiões a ferocidade de seu amor próprio ou o desejo de se conservar antes do nascimento desse amor, tempera o ardor que ele tem pelo seu bem-estar com uma repugnância inata de ver sofrer o seu semelhante. Não creio temer contradição alguma concedendo ao homem a única virtude natural que o detrator mais extremado das virtudes humanas é forçado a reconhecer. Refiro-me à piedade (compaixão), disposição conveniente a seres tão fracos e sujeitos a tantos males como nós; virtude tanto mais universal quanto mais útil ao homem que precede o uso de toda reflexão, e tão natural que os próprios animais dão, às vezes, sinais sensíveis dela; sem falar da ternura das mães pelos filhos e dos perigos que afrontam para defendê-los, observamos todos os dias a repugnância que têm os cavalos em pisar um corpo vivo. Um animal não passa sem inquietação perto de um animal morto da sua espécie: alguns lhes dão mesmo uma espécie de sepultura; e os tristes mugidos do gado, ao entrar no matadouro, anunciam a impressão que ele recebe do horrível espetáculo que o comove. (…)     Tal é o puro movimento da natureza, anterior a toda reflexão; tal é a força da piedade natural, que os costumes mais depravados ainda têm dificuldade em destruir, pois vemos todos os dias, nos espetáculos, toda a gente se enternecer e chorar pelas desgraças de um infeliz, como se estivesse cada qual no lugar do tirano e agravasse ainda mais os tormentos do seu inimigo: como o sanguinário Sila, tão sensível aos males que não causara, ou Alexandre, que não ousava assistir à representação de nenhuma tragédia, com medo de que o vissem gemer com Andrómaca e Príamo, enquanto escutava sem emoção os gritos de tantos cidadãos que se degolavam todos os dias por sua ordem.
Mandeville sentiu bem que, com toda a sua moral, os homens nunca teriam passado de monstros, se a natureza não lhes desse a piedade em apoio da razão: mas não viu que dessa única qualidade decorrem todas as virtudes sociais que quer disputar aos homens. Efetivamente, que é a generosidade, a demência, a humanidade, senão a piedade aplicada aos fracos, aos culpados, ou à espécie humana em geral? Mesmo a amizade e a benevolência são, afinal de contas, produções de uma piedade constante, fixada sobre um objeto particular: com efeito, desejar que alguém não sofra, que outra coisa é senão desejar que seja feliz? Mesmo que fosse verdade que a comiseração não passa de um sentimento que nos põe no lugar daquele que sofre, sentimento obscuro e vivo no homem selvagem, desenvolvido mas fraco no homem civilizado, que importaria essa ideia à verdade do que digo, a não ser para lhe dar mais força? Efetivamente, a comiseração será tanto mais enérgica quanto o animal espectador se identificar mais intimamente com o animal sofredor. Ora, é evidente que essa identificação teve de ser infinitamente mais estreita no estado de natureza que no estado de raciocínio. É a razão que engendra o amor próprio, e é a reflexão que o fortifica; é ela que faz o homem cair em si; é ela que o separa de tudo que o incomoda e o aflige. É a filosofia que o isola; é por ela que ele diz em segredo, ao ver um homem que sofre: "Morre, se queres; estou em segurança". Só os perigos da sociedade inteira perturbam o sono tranquilo do filósofo e o fazem levantar-se do leito. Pode-se impunemente degolar o semelhante debaixo da janela; é só tapar os ouvidos e argumentar um pouco, para impedir que a natureza, revoltando-se nele, o identifique com aquele que se assassina. O homem selvagem não tem esse admirável talento, e, por falta de sabedoria e de razão, vemo-lo sempre entregar-se, aturdido, ao primeiro sentimento de humanidade. Nos motins, nas brigas de rua, a populaça aglomera-se, e o homem prudente afasta-se; é a canalha, são as mulheres dos mercados que separam os combatentes e impedem a gente honesta de se degolar mutuamente.
     É, pois, bem certo que a piedade é um sentimento natural, que, moderando em cada indivíduo a atividade do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie. É ela que nos leva sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as vezes de lei, de costume e de virtude, com a vantagem de que ninguém é tentado a desobedecer à sua doce voz; é ela que impede todo selvagem robusto de arrebatar a uma criança fraca ou a um velho enfermo sua subsistência adquirida com sacrifício, se ele mesmo espera poder encontrar a sua alhures; é ela que, em vez desta máxima sublime de justiça raciocinada, Faz aos outros o que queres que te façam, inspira a todos os homens esta outra máxima de bondade natural, bem menos perfeita, porém mais útil, talvez, do que a precedente: Faz o teu bem com o menor mal possível ao outro. Em uma palavra, é nesse sentimento natural, mais do que em argumentos sutis, que é preciso buscar a causa da repugnância que todo homem experimentaria em fazer mal, mesmo independentemente das máximas da educação. Embora possa competir a Sócrates e aos espíritos da sua têmpera adquirir a virtude pela razão, há muito tempo que o género humano não mais existiria se a sua conservação tivesse dependido exclusivamente dos raciocínios.


Rousseau, Discurso sobre os fundamentos da desigualdade entre os homens,1753
file:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.htm (64 of 64) [11/10/2001 19:05:32]

1 comentário:

Rodrigo disse...

Concordo plenamente com o Rousseau. Parece mesmo que todo homem traz em si, de forma inata, o sentimento da piedade. Com frequência, nos comovemos com o sofrimento de outros seres, quer humanos, quer animais. Eu mesmo, há poucos dias, quase chorei ao ver um cachorro revirar o lixo à procura de comida.