Camilo José Vergara,1970, NY
Este problema do valor da compaixão e da moral da compaixão
(- eu sou um adversário do amolecimento moderno dos sentimentos -) à primeira
vista parece ser algo isolado, uma interrogação à parte; mas quem neste ponto
se detém, quem aqui aprende a questionar, a este sucederá o mesmo que ocorreu a
mim - uma perspectiva imensa se abre para ele, uma nova possibilidade dele se
apodera como uma vertigem, toda espécie de desconfiança, suspeita e temor salta
adiante, cambaleia a crença na moral, em toda moral - por fim, uma nova
exigência se faz ouvir, Enunciemo-la, esta nova exigência: necessitamos de uma
crítica dos valores morais, o próprio valor desses valores deverá ser colocado
em questão - para isto é necessário um conhecimento das condições e
circunstâncias nas quais nasceram, sob as quais se desenvolveram e se modificaram (moral como conseqüência,
como sintoma, máscara, tartufice, doença, mal-entendido; mas também moral como
causa, medicamento, estimulante, inibição, veneno), um conhecimento tal como
até hoje nunca existiu nem foi desejado. Tomava-se o valor desses
"valores" como dado, como efetivo, como além de qualquer
questionamento; até hoje não houve dúvida ou hesitação em atribuir ao
"bom" valor mais elevado que ao "mau", mais elevado no
sentido da promoção, utilidade, influência fecunda para o homem (não esquecendo
o futuro do homem), E se o contrário fosse a verdade? E se no "bom"
houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um
narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas do futuro?
Talvez de maneira mais cômoda, menos perigosa, mas também num estilo menor,
mais baixo?... De modo que precisamente a moral seria culpada de que jamais se
alcançasse o supremo brilho e potência do tipo homem? De modo que precisamente
a moral seria o perigo entre os perigos?
(…)
"Originalmente" - assim eles decretam - "as
ações não egoístas foram louvadas e consideradas boas por aqueles aos quais
eram feitas, aqueles aos quais eram úteis; mais tarde foi esquecida essa origem
do louvor, e as ações não egoístas, pelo simples fato de terem sido
costumeiramente tidas como boas, foram também sentidas como boas como se em si
fossem algo bom." Logo se percebe: esta primeira dedução já contém todos
os traços típicos da idiossincrasia dos psicólogos ingleses - temos aí "a
utilidade", "o esquecimento", "o hábito" e por fim
"o erro", tudo servindo de base a uma valoração da qual o homem
superior até agora teve orgulho, como se fosse um privilégio do próprio homem.
Este orgulho deve ser humilhado, e esta valoração desvalorizada: isso foi
feito?... Para mim é claro, antes de tudo, que essa teoria busca e estabelece a
fonte do conceito "bom" no lugar errado: o juízo "bom" não
provém daqueles aos quais se fez o "bem"! Foram os "bons"
mesmos, isto é, os nobres, poderosos, superiores em posição e pensamento, que
sentiram e estabeleceram a si e a seus atos como bons, ou seja, de primeira
ordem, em oposição a tudo que era baixo, de pensamento baixo, e vulgar e
plebeu. Desse pathos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar
valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade! Esse
ponto de vista da utilidade é o mais estranho e inadequado, em vista de tal
ardente manancial de juízos de valor supremos, estabelece dores e definidores
de hierarquias: aí o sentimento alcançou bem o oposto daquele baixo grau de
calor que toda prudência calculadora, todo cálculo de utilidade pressupõe - e
não por uma vez, não por uma hora de exceção, mas permanentemente. O pathos da
nobreza e da distância, como já disse, o duradouro, dominante sentimento global
de uma elevada estirpe senhorial, em sua relação com uma estirpe baixa, com um
"sob" – eis a origem da oposição "bom" e "ruim".
(O direito senhorial de dar nomes vai tão longe, que nos permitiríamos conceber
a própria origem da linguagem como expressão de poder dos senhores: eles dizem
"isto é isto", marcam cada coisa e acontecimento com um som, como que
apropriando-se assim das coisas.) Devido a essa providência, já em princípio a
palavra "bom" não é ligada necessariamente a ações "não
egoístas", como quer a superstição daqueles genealogistas da moral. É
somente com um declínio dos juízos de valor aristocráticos que essa oposição
"egoísta" e "não egoísta" se impõe mais e mais à
consciência humana - é, para utilizar minha linguagem, o instinto de rebanho,
que com ela toma finalmente a palavra (e as palavras). E mesmo então demora
muito, até que esse instinto se torne senhor de maneira tal que a valoração
moral fique presa e imobilizada nessa oposição (como ocorre, por exemplo, na
Europa de hoje: nela, o preconceito que vê equivalência entre "moral",
"não egoísta" e "désinteréssé" já predomina com a violência
de uma "idéia fixa" ou doença do cérebro).
Nietzsche, Para uma genealogia da moral, 1887, w w w . s a b o t a g e m . n e t
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