René Burri (Suíça, 1933/2014) - S.Paulo Brasil, quatro homens no telhado, 1960
Há uma antiga linha de pensamento filosófico que tenta
demonstrar que agir racionalmente é agir eticamente. O argumento está hoje
associado a Kant e encontra-se principalmente nos textos dos kantianos
modernos, embora remonte no passado pelo menos aos Estóicos. A forma em que
este argumento é apresentado varia, mas a estrutura comum é a seguinte:
1. Para a ética, é essencial uma exigência qualquer de
universalidade ou de imparcialidade. 2. A razão é universal ou objetivamente
válida. Se, por exemplo, das premissas "Todos os seres humanos são
mortais" e "Sócrates é um ser humano" decorre que Sócrates é
mortal, então esta inferência tem de ser universalmente válida. Não pode ser
válida para uma pessoa e inaceitável para outra. Trata-se de uma questão geral
sobre a razão, tanto teórica como prática.
Logo:
3. Só um juízo que satisfaça o requisito descrito em 1 como
condição necessária de um juízo ético será um juízo objetivamente :, racional
de acordo com 2. Pois não posso estar à espera de que outro agente racional
aceite como válido um juízo que eu não aceitaria se estivesse no seu lugar; se
dois agentes racionais não puderem aceitar os juízos um do outro, esses juízos
não podem ser racionais, pela razão dada em 2. Dizer que eu aceitaria o meu
juízo mesmo que estivesse no lugar de uma outra pessoa equivale, porém, a dizer
simplesmente que o meu juízo se pode prescrever de um ponto de vista universal.
Tanto a ética como a razão exigem que nos elevemos acima do nosso ponto de
vista pessoal e adotemos uma perspetiva a partir da qual a nossa identidade
pessoal -- o papel que por acaso desempenhamos -- não seja importante. Assim, a
razão exige que atuemos com base em juízos universais e, nessa medida,
eticamente.
Será este argumento válido? Já indiquei que aceito o
primeiro ponto, o de que a ética implica a universalidade. O segundo ponto
também é indesmentível. A razão tem de ser universal. Será então que a
conclusão se segue? Reside aqui a falha do argumento. A conclusão parece
seguir-se diretamente das premissas; mas este passo implica um afastamento do
sentido estrito, no qual é verdade que um juízo racional é universalmente
válido, para um sentido mais forte de "universalmente válido" que é
equivalente à universalidade. A diferença entre estes dois sentidos torna-se
manifesta ao considerar um imperativo não universalizável, como o puramente
egoísta: "Que todos façam o que é do meu interesse", que difere do
imperativo do egoísmo universalizável -- "Que todos façam o que é *do seu
próprio* interesse" -- porque contém uma referência não eliminável a uma
pessoa em concreto. Não pode por isso ser um imperativo ético. Será que carece
da universalidade exigida para constituir uma base racional da ação? Por certo
que não. Todo o agente racional poderia aceitar que a atividade puramente
egoísta de outros agentes racionais é racionalmente justificável. O egoísmo
puro podia ser racionalmente adotado por toda a gente. Vejamos a questão de
mais perto. Temos de conceder que há um sentido em que um agente racional
puramente egoísta -- chamemos-lhe Jack -- não podia aceitar os juízos práticos
de outro agente puramente egoísta -- chamemos-lhe Jill. :, Presumindo que os
interesses de Jill diferem dos de Jack, Jill pode estar a agir racionalmente ao
pressionar Jack a fazer *_A*, enquanto Jack também age racionalmente ao decidir
não fazer *_A*. Contudo, este desacordo é compatível com todos os agentes
racionais que aceitam o egoísmo puro. Embora ambos aceitem o egoísmo puro, este
leva-os para direções diferentes porque partem de lugares diferentes. Quando
Jack adota o egoísmo puro, este leva-o a promover os seus próprios interesses,
e quando Jill adota o egoísmo puro, este leva-a a promover os seus próprios
interesses. Daqui o desacordo sobre o que fazer. Por outro lado -- e é este o
sentido em que o egoísmo puro podia ser aceite como válido por todos os agentes
racionais -- se perguntássemos a Jill (em segredo e prometendo nada dizer a
Jack) o que ela pensava que seria racional Jack fazer, ela responderia, se
fosse honesta, que seria racional Jack fazer o que era do seu próprio
interesse, e não o que era do interesse de Jill. Logo, quando os agentes puramente
racionais se opõem aos atos uns dos outros, isso não significa desacordo quanto
à racionalidade do egoísmo puro. O egoísmo puro, embora não seja um princípio
universalizável, podia ser aceite como base racional da ação por todos os
agentes racionais. O sentido no qual os juízos racionais têm de ser
universalmente aceitáveis é mais fraco do que o sentido no qual os juízos
éticos o têm de ser. O facto de uma ação me beneficiar mais a mim que a outra
pessoa qualquer podia ser uma razão válida para a fazer, embora não pudesse ser
uma razão ética para tal. Uma consequência desta conclusão é a de que um agente
racional pode racionalmente tentar evitar que outro faça aquilo que ele próprio
admite que o outro tem justificação racional para fazer. Infelizmente, nada há
de paradoxal nisto. Dois vendedores que compitam para conseguir efetuar uma
determinada venda aceitarão que o comportamento do outro é racional, embora
cada um deles pretenda frustrar os intentos do outro. O mesmo se pode dizer de
dois soldados que se enfrentam no campo de batalha ou de dois jogadores de
futebol que disputam a bola. Assim, esta tentativa de demonstração da
existência de uma ligação entre razão e ética fracassa. Pode haver outras
formas de forjar esta ligação, mas é difícil vislumbrar uma que seja mais :,
promissora. O obstáculo principal a ultrapassar é a natureza da razão prática.
Há muito tempo, David Hume argumentou que, na ação, a razão aplica-se apenas a
meios, e não a fins. Os fins são dados pelos nossos desejos. Hume apresentou de
forma implacável as implicações desta perspetiva.
Peter Singer, Ética Prática, Tradução Álvaro Augusto
Fernandes Revisão Científica Cristina Beckert e Desidério Murcho, Faculdade de
Letras da Universidade de Lisboa, Gradiva, 1993
1 comentário:
Que texto chato!
1 - "agir racionalmente é agir eticamente":Se a ética for a busca da melhor solução dentro das possibilidades presentes, sim.
2 - " Para a ética, é essencial uma exigência qualquer de universalidade ou de imparcialidade.": É, um bem maior.
3 - "se dois agentes racionais não puderem aceitar os juízos um do outro, esses juízos não podem ser racionais": Só se os fatores levados em conta por um deles não forem necessáriamentes os mesmos. Um dos dois pode não ter conhecimento de algum fator ou fatores.
4 - "A razão tem de ser universal.": Determinada razão, sim. Com aquelas premissas, a conclusão deve ser X.
5 - "O egoísmo puro, embora não seja um princípio universalizável, podia ser aceite como base racional da ação por todos os agentes racionais.": Se buscarem a destruição mútua, sim! Não seria ético.
6 - "a razão aplica-se apenas a meios, e não a fins. ": ao como, e não ao para quê?
7 - "Os fins são dados pelos nossos desejos.": Se o desejo for pelo bem maior, beleza!
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