Uma tarde, próxima do fim do primeiro verão, indo eu buscar
ao povoado um sapato que havia mandado consertar, fui apanhado e metido na
cadeia, porque, (…) não pagara impostos ao Estado, deixando assim de reconhecer
a autoridade de uma instituição que, à porta do Senado, compra e vende homens,
mulheres e crianças como se fossem reses. Tinha-me retirado nos bosques com
outros objetivos. Mas, onde quer que um homem vá o grupo há de segui-lo e agarrá-lo
com as suas sórdidas instituições e, se possível, constrange-lo a tomar parte
na desesperada sociedade de Odd Fellows
(Sociedade de auxílio mútuo com fins educacionais e piedosos, fundada na
Inglaterra do século XVIII). É bem verdade que eu podia ter resistido à força,
com maior ou menor resultado, podia ter-me enfurecido contra a sociedade; mas
preferi que a sociedade se enfurecesse contra mim, por ser ela a parte desesperada.
Entretanto, fui libertado no dia seguinte, apanhei o sapato já consertado e
regressei aos bosques a tempo de colher o meu jantar de mirtilos na colina de
Fair Haven. Nunca fui aborrecido por ninguém a não ser por pessoas que
representam o Estado. Não tinha fechadura nem ferrolho, salvo na gaveta onde
guardava os meus papéis, nem sequer dispunha de um prego para pôr no trinco ou
nas janelas. Nunca fechei a porta de dia ou de noite, ainda que fosse
ausentar-me durante vários dias, nem mesmo quando no Outono seguinte fui passar
duas semanas aos bosques do Maine. E, contudo, a minha casa era mais respeitada
do que se tivesse sido cercada por um pelotão de soldados. O andarilho fatigado
podia repousar e aquecer-se à minha lareira, o literato entreter-se com os
pucos livros em cima da mesa, e o curioso, ao abrir a porta do armário na parede,
ver o que havia sobrado do almoço e o que eu pretendia cear. No entanto, embora
muita gente de todas as classes seguisse por este caminho rumo ao lago, não
sofri, por isso, nenhum inconveniente sério e nunca perdi nada, exceto um
pequeno livro, um volume de Homero talvez impropriamente dourado, que espero
tenha entretanto sido encontrado por um soldado do nosso acampamento. Se todos
os homens vivessem tão simplesmente como eu naquele tempo, estou convencido de
que não haveria roubos e assaltos. Estes só ocorrem nas comunidades em que
alguns têm mais do que é suficiente enquanto outros não têm o necessário. Os
Homeros de Pope (Pope, poeta do século XVIII tradutor de Homero) logo se
distribuiriam de maneira equitativa:
“Aos homens nem molestaram as guerras
Quando estavam em jogo apenas as gamelas.”
Vós que governais os assuntos públicos, que necessidade
tendes de aplicar castigos? Amai a virtude, e o povo será virtuoso. As virtudes
de um homem superior são como o vento; as do homem comum como o capim; e quando
sobre ele o vento passa, o capim verga-se.
Henry David Thoreau, Walden, ou a vida nos bosques, Lx,
2018, Antígona, p.193, 194, 195
A desconfiança em relação aos assuntos públicos, por parte dos que defendem ferozmente a sua individualidade como sinónimo de liberdade, não me parece alternativa. A visão da pobreza como panaceia para eliminar os males do mundo e esta visão de uma corrupção endémica do Estado e dos assuntos públicos terá, como consequência, o afastamento dos indivíduos da participação no espaço público. Sem esta participação envolvida nenhuma espécie de liberdade poderá ser garantida, pois a liberdade é, sem dúvida uma conquista de certas sociedades que abriram, ou foram forçadas a abrir o espaço público a todos os indivíduos. Mas, por inércia ou abastança ou desconfiança, afastamo-nos progressivamente desse espaço, preferimos aderir a fórmulas milagrosas, a palavras salvadoras que assentem como luva nas nossas frustrações ou mal estares, está bom de ver que o resultado não pode ser brilhante, e é arriscado. HS
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