Fotografia: Robert Capa
(…) o homem, estando condenado a ser livre,
carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si
mesmo enquanto maneira de ser. Tomamos a palavra "responsabilidade"
no sentido corriqueiro de "consciência (de) ser o autor incontestável de
um acontecimento ou de um objeto", (...) pois os piores
inconvenientes ou as piores ameaças que prometem atingir a minha pessoa só
adquirem sentido pelo meu projeto; e elas aparecem sobre o fundo de compromisso
que eu sou. Portanto, é insensato pensar em queixar-se, pois nada alheio
determinou aquilo que sentimos, vivemos ou somos. Por outro lado, tal responsabilidade absoluta não é resignação: é
simples reivindicação lógica das consequências de nossa liberdade. O que
acontece comigo, acontece por mim, e eu não poderia deixar me afetar por isso, nem revoltar-me, nem resignar-me. Além disso, tudo aquilo que me
acontece é meu; deve-se entender por isso, em primeiro lugar, que estou sempre
à altura do que me acontece, enquanto homem, pois aquilo que acontece a um
homem por outros homens e por ele mesmo não poderia ser senão humano. As mais
atrozes situações da guerra, as piores torturas, não criam um estado de coisas
inumano·I não há situação inumanas;
é somente pelo medo, pela fuga e pelo recurso a condutas mágicas que irei
determinar o inumano, mas esta decisão é humana e tenho de assumir total
responsabilidade por ela. Mas, além disso, a situação é minha por ser a imagem
da minha livre escolha de mim mesmo, e tudo quanto ela me apresenta é meu,
nesse sentido de que me representa e me simboliza. Não serei eu quem determina
o coeficiente de adversidade das coisas e até sua imprevisibilidade ao decidir
por mim mesmo? Assim, não há acidentes numa vida; uma ocorrência comum que
irrompe subitamente e me carrega não provém de fora; se sou mobilizado para a
guerra, esta guerra é a minha guerra, é feita à minha imagem e eu mereço-a.
Mereço-a, primeiro, porque sempre poderia livrar-me dela pelo suicídio ou pela
deserção: esses últimos possíveis são os que devem estar sempre presentes
quando se trata de enfrentar uma situação. Por ter deixado. de livrar-me dela eu
escolhi-a; pode ser por fraqueza, por covardia frente à opinião pública, porque
prefiro certos valores ao valor da própria recusa de entrar na guerra (a estima
dos meus parentes, a honra de minha família, etc.). De qualquer modo, trata-se
de uma escolha. Essa escolha será reiterada depois, continuamente, até o fim da
guerra; portanto, devemos subscrever as palavras de J. Romains: "Na
guerra, não há vítimas inocentes". Portanto, se preferi a guerra à morte
ou à desonra, tudo se passa como se eu carreasse inteira responsabilidade por
esta guerra. Sem dúvida, outros declararam a guerra, e eu ficaria tentado,
talvez, a considerar-me um simples
cúmplice. Mas esta noção de cumplicidade não tem mais do que um sentido
jurídico; só que, neste caso, tal sentido não se sustenta, pois de mim dependeu
o fato de que esta guerra não viesse a existir para mim e por mim, e eu decidi
que ela existisse. Não houve coerção alguma, pois a coerção não poderia ter
qualquer domínio sobre uma liberdade; não tenho desculpa alguma, porque, como
dissemos e repetimos nesse livro, o próprio da realidade-humana é ser sem
desculpa.
Jean- Paul Sartre, O ser e o nada, Ed.Vozes, p.678,679
Tradução de Paulo Perdigão
2 comentários:
Por favor pode por a correcao das perguntas por favor.
As perguntas devem ser respondidas pelos alunos. Na aula será feita a correção.
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