Fotografia de Vivian Maier, EUA, Chicago, 1926/2009
Imagine que uma equipa de exploradores descobre duas tribos
exóticas numa região longínqua. Na primeira, a dos Rigiditos, há uma lista
muito precisa daquilo que é permitido e daquilo que é proibido (…). A crença
comum é que o bem e o mal são noções imutáveis com referências intangíveis.
Aqui, não há questões a colocar: a moral repousa sobre a palavra sagrada do
Todo-Poderoso. Neste universo, não há outra opção senão submeter-se a todos os
mandamentos. Os Regiditos estão tão seguros da sua moral que a tomam por
universal: ela deverá ser aplicada a todas as pessoas de todas as tribos, sem restrição.
Na segunda tribo, a dos Relativitos, as regras de bom
comportamento não dependem de princípios superiores, (…) mas mais prosaicamente
da boa vontade de cada um. Os membros desta tribo falam mais depressa em ética
do que em moral, em bom e mau do que em bem e mal. Não existe qualquer lista pormenorizada
daquilo que é permitido e daquilo que é proibido, uma vez que nesta matéria as
coisas variam em função das pessoas, das épocas e das circunstâncias (…) Aqui,
é opinião comum que o bom e o mau são relativos aos desejos de cada um.(…)
Contrariamente aos Regiditos, os Relativitos não têm pretensão de
universalidade. Tal como acontece com eles, consideram que outras tribos
poderão viver segundo diferentes códigos de boa conduta. (…)
Não há dúvida que a moral é um conjunto de valores
convencionais (não pode deixar de ser assim), no entanto, devemos agir como se
de um conjunto de valores universais absolutos se tratasse, como fica provado
com a declaração universal dos Direitos do Homem. É o princípio da
universalidade sobejamente conhecido. Uma conduta que não possa ser
generalizada não poderá ser uma conduta moral. É isso que se passa com a
mentira: não podemos desejar que ela seja universal, não podendo, portanto, ser
moral, jamais poderíamos transformá-la em “lei geral”.(…) Trata-se muito
simplesmente de preservar a possibilidade de comunicar comos nossos
semelhantes.
Todavia há situações em que a mentira é um ato moral, para
não dizermos heroico. Por exemplo, uma pessoa, durante a Segunda Guerra
Mundial, que nega abrigar um evadido quando a Gestapo lhe bate à porta. Neste caso,
o respeito cego do princípio da universalidade, na medida em que ele conduz à
denúncia, constitui um mal maior do que a violação (ocasional) desse princípio.
Um outro princípio permite compreender este ponto, é o da reciprocidade: não
faças aos outros o que não gostarias que te fizessem a ti, ou, para utilizar
uma fórmula mais técnica e menos utilitarista, trata sempre a Humanidade (na
tua pessoa como em qualquer outra) como um fim. Sublinhe-se que este princípio
não passa de uma implicação lógica do princípio da universalidade, que o
engloba. Princípios destes fazem com que
possamos agir moralmente, ou seja, em virtude da nossa ideia de bem, com
conhecimento de causa.
Estes dois princípios, o princípio da universalidade e o
princípio da reciprocidade, não são obviamente suficientes para resolver a
questão moral e separar sistematicamente o bem do mal. Mas permitem, pelo
menos, duas coisas. Por um lado, permitem evitar que a moral se confunda com os
interditos caprichosos e risíveis de alguns autocratas (por perversidade essas
pessoas interditam tudo o que diz respeito ao prazer e o mesmo é dizer, ao
bem). Por outro, permitem constituir uma terceira via entre uma moral absoluta
caída do céu (ilusão da transcendência) e uma moral puramente local, ligada aos
costumes e usos de uma qualquer tribo humana.
Stéphane Ferret, Aprender com as coisas, Lx, 2007, Ed. ASA, p.97
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