(…) O dever é a necessidade de cumprir uma ação por respeito à lei. Para o objeto concebido como efeito da ação que me proponho, posso verdadeiramente sentir inclinação, nunca porém respeito, precisamente porque ele é simples efeito, e não a atividade de uma vontade. Do mesmo modo, não posso ter respeito por uma inclinação em geral, seja ela minha ou de outrem; quando muito, posso aprová-la no primeiro caso, no segundo caso talvez até amá-la, isto é, considerá-la como favorável ao meu interesse. Só o que está ligado à minha vontade unicamente como princípio, e nunca como efeito, o que não serve a minha inclinação mas a domina, e ao menos a exclui totalmente da avaliação no ato de decidir, por conseguinte a simples lei por si mesma é que pode ser objeto de respeito, e, portanto, ordem, para mim. Ora, se uma ação cumprida por dever elimina completamente a influência da inclinação e, com ela, todo objeto da vontade," nada resta capaz de determinar a mesma vontade, a não ser objetivamente a lei e subjetivamente um puro respeito a esta lei prática, portanto a máxima (*) de obedecer a essa lei, embora com dano de todas as minhas inclinações". Portanto, o valor moral da ação não reside no efeito que dela se espera, nem em qualquer princípio da ação que precise de tirar seu motivo deste efeito esperado. Com efeito, todos estes resultados (contentamento, e até mesmo contribuição para a felicidade alheia) poderiam provir de outras causas; não é necessário para isso a vontade de um ser racional, muito embora somente nesta se possa encontrar o supremo bem, o bem incondicionado. Por isso, a representação da lei em si mesma, que seguramente só tem lugar num ser racional, com a condição de ser esta representação, e não o resultado esperado, o princípio determinado da vontade, eis o que só é capaz de constituir o bem tão excelente que denominamos moral, o qual já se encontra presente na pessoa que age segundo essa ideia, mas que não deve ser esperado somente do efeito da sua ação(**).
(*) Máxima é o princípio subjetivo do querer; o princípio
objetivo (isto é, o princípio capaz de servir também subjetivamente' de princípio
pratico para todos os seres racionais, se a razão tivesse pleno poder sobre a
faculdade apetitiva) é a lei prática.
(**) Poderiam objetar-me que, servindo-me do termo respeito,
tento apenas refugiar-me num sentimento obscuro, em vez de aclarar a questão
por meio de um conceito da razão. Mas, conquanto o respeito seja um sentimento,
não é, todavia, sentimento proveniente de influência estranha, mas, sim, pelo
contrário, sentimento espontaneamente produzido por um conceito da razão, e por
isso mesmo especificamente distinto dos sentimentos da primeira espécie,
referentes à inclinação ou ao temor. O que reconheço imediatamente como lei
para mim, reconheço-o com um sentimento de respeito que exprime simplesmente a
consciência que tenho da subordinação de minha vontade a uma lei, sem intromissão
de outras influências em minha sensibilidade. A determinação imediata da
vontade pela lei, e a consciência que tenho dessa determinação, chama-se
respeito, de sorte que este deve ser considerado, não como causa da lei, mas
como efeito, da mesma sobre o sujeito. Em rigor de expressão o respeito é a
representação— de um valor que vai de encontro ao meu amor próprio.
Conseguintemente é alguma coisa que não é considerada nem como objeto de
inclinação, nem como de temor, se bem que apresente alguma analogia com ambos
ao mesmo tempo. O objeto do respeito é pois simplesmente, a lei, lei que nos
impomos a nós mesmos, mas que no entanto é necessária em si. Enquanto lei,
estamos-lhes sujeitos, sem consultar nosso amor próprio; enquanto imposta por
nós a nós mesmos, é consequência de nossa vontade. Do primeiro ponto de vista
oferece analogia com o temor; do segundo ponto de vista, tem analogia com a
inclinação. O respeito que se sente para com uma pessoa, na realidade não 6
mais do que* o respeito da lei (da honestidade, etc.) de que essa pessoa nos dá
exemplo. Do mesmo modo que consideramos um dever cultivar nossos talentos,
assim também vemos numa pessoa prendada de talentos como que o exemplo de. uma
lei (que ordena que nos exercitemos cm nos assemelhar-nos nela nisto): eis o
que constitui o nosso respeito. Tudo quanto se designa interesse moral
consiste unicamente no respeito da lei.
Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes,(1785), Companhia Editora Nacional, p.9
Tradução de António Pinto de Carvalho,
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