quarta-feira, fevereiro 28, 2024

Sobre não mentir

 



Foto: Kultur Tava,

Ora a primeira questão é se o homem, nos casos em que não se pode esquivar à resposta com sim ou não, terá a faculdade (o direito) de ser inverídico. A segunda questão é se ele não estará obrigado, numa certa declaração a que o força uma pressão injusta, a ser inverídico a fim de prevenir um crime que o ameaça a si ou a outrem. A veracidade nas declarações, que não se pode evitar, é o dever formal do homem em relação seja a quem for2 , por maior que seja a desvantagem que daí decorre para ele ou para outrem; e se não cometo uma injustiça contra quem me força injustamente a uma declaração, se a falsificar, cometo em geral, mediante tal falsificação, que também se pode chamar mentira (embora não no sentido dos juristas), uma injustiça na parte mais essencial do Direito: isto é, faço, tanto quanto de mim depende, que as declarações não tenham em geral crédito algum, por conseguinte, também que todos os direitos fundados em contratos sejam abolidos e percam a sua força – o que é uma injustiça causada à humanidade em geral.

Por conseguinte, a mentira define-se como uma declaração intencionalmente não verdadeira feita a outro homem, e não é preciso acrescentar que ela deve prejudicar outrem, como exigem os juristas para a sua definição [mendacium est falsiloquium in praejudicium alterius] 3 . Efectivamente ela, ao inutilizar a fonte do direito, prejudica sempre outrem, mesmo se não é um homem determinado, mas a humanidade em geral. Mas a mentira bem intencionada pode também, por um acaso (casus), ser passível de penalidade, segundo as leis civis. Porém, o que apenas por acaso se subtrai à punição pode igualmente julgar-se como injustiça, segundo leis externas. Se, por exemplo, mediante uma mentira, a alguém ainda agora mesmo tomado de fúria assassina, o impediste de agir és responsável, do ponto de vista jurídico, de todas as consequências que daí possam surgir. Mas se te ativeres fortemente à verdade, a justiça pública nada em contrário pode contra ti, por mais imprevistas que sejam as consequências. É, pois, possível que, após teres honestamente respondido com um sim à pergunta do assassino sobre a presença em tua casa da pessoa por ele perseguida, esta se tenha ido embora sem ser notada, furtando-se assim ao golpe do assassino e que, portanto, o crime não tenha ocorrido; mas se tivesses mentido e dito que ela não estava em casa e tivesse realmente saído (embora sem teu conhecimento) e, em seguida, o assassino a encontrasse a fugir e levasse a cabo a sua ação, poderias com razão ser acusado como autor da sua morte, pois se tivesses dito a verdade, tal como bem a conhecias, talvez o assassino, ao procurar em casa o seu inimigo, fosse preso pelos vizinhos que acorreram, e ter-se-ia impedido o crime. Quem, pois, mente, por mais bondosa que possa ser a sua disposição, deve responder pelas consequências, mesmo perante um tribunal civil, e por ela se penitenciar, por mais imprevistas que essas consequências possam também ser; porque a veracidade é um dever que tem de se considerar como a base de todos os deveres a fundar num contrato e cuja lei, quando se lhe permite a mínima excepção, se toma vacilante e inútil. Ser verídico (honesto) em todas as declarações é, portanto, um mandamento sagrado da razão que ordena incondicionalmente e não é limitado por quaisquer conveniências.

Immanuel Kant, Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade,

Tradução de Artur Morão

 

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