Ora a primeira questão é se o homem, nos casos em que não se
pode esquivar à resposta com sim ou não, terá a faculdade (o direito) de ser
inverídico. A segunda questão é se ele não estará obrigado, numa certa
declaração a que o força uma pressão injusta, a ser inverídico a fim de
prevenir um crime que o ameaça a si ou a outrem. A veracidade nas declarações,
que não se pode evitar, é o dever formal do homem em relação seja a quem for2 ,
por maior que seja a desvantagem que daí decorre para ele ou para outrem; e se
não cometo uma injustiça contra quem me força injustamente a uma declaração, se
a falsificar, cometo em geral, mediante tal falsificação, que também se pode
chamar mentira (embora não no sentido dos juristas), uma injustiça na parte
mais essencial do Direito: isto é, faço, tanto quanto de mim depende, que as
declarações não tenham em geral crédito algum, por conseguinte, também que
todos os direitos fundados em contratos sejam abolidos e percam a sua força – o
que é uma injustiça causada à humanidade em geral.
Por conseguinte, a mentira define-se como uma declaração
intencionalmente não verdadeira feita a outro homem, e não é preciso
acrescentar que ela deve prejudicar outrem, como exigem os juristas para a sua
definição [mendacium est falsiloquium in praejudicium alterius] 3 .
Efectivamente ela, ao inutilizar a fonte do direito, prejudica sempre outrem,
mesmo se não é um homem determinado, mas a humanidade em geral. Mas a mentira bem
intencionada pode também, por um acaso (casus), ser passível de penalidade,
segundo as leis civis. Porém, o que apenas por acaso se subtrai à punição pode
igualmente julgar-se como injustiça, segundo leis externas. Se, por exemplo,
mediante uma mentira, a alguém ainda agora mesmo tomado de fúria assassina, o
impediste de agir és responsável, do ponto de vista jurídico, de todas as
consequências que daí possam surgir. Mas se te ativeres fortemente à verdade, a
justiça pública nada em contrário pode contra ti, por mais imprevistas que
sejam as consequências. É, pois, possível que, após teres honestamente
respondido com um sim à pergunta do assassino sobre a presença em tua casa da
pessoa por ele perseguida, esta se tenha ido embora sem ser notada, furtando-se
assim ao golpe do assassino e que, portanto, o crime não tenha ocorrido; mas se
tivesses mentido e dito que ela não estava em casa e tivesse realmente saído
(embora sem teu conhecimento) e, em seguida, o assassino a encontrasse a fugir
e levasse a cabo a sua ação, poderias com razão ser acusado como autor da sua
morte, pois se tivesses dito a verdade, tal como bem a conhecias, talvez o
assassino, ao procurar em casa o seu inimigo, fosse preso pelos vizinhos que
acorreram, e ter-se-ia impedido o crime. Quem, pois, mente, por mais bondosa
que possa ser a sua disposição, deve responder pelas consequências, mesmo
perante um tribunal civil, e por ela se penitenciar, por mais imprevistas que
essas consequências possam também ser; porque a veracidade é um dever que tem
de se considerar como a base de todos os deveres a fundar num contrato e cuja
lei, quando se lhe permite a mínima excepção, se toma vacilante e inútil. Ser
verídico (honesto) em todas as declarações é, portanto, um mandamento sagrado
da razão que ordena incondicionalmente e não é limitado por quaisquer
conveniências.
Immanuel Kant, Sobre um suposto direito de mentir por amor à
humanidade,
Tradução de Artur Morão
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