Foto de Nana Sousa Dias
Estava naquele
estado de espírito de incerteza e de dúvida que Descartes exige para a procura
da verdade. Este estado não é feito para durar, é inquietante e penoso;
deixa-nos apenas o interesse do vício e a preguiça na alma. Não tinha o coração
tão corrompido para aí me comprazer; e nada preserva melhor o hábito de
refletir que estar mais satisfeito consigo do que com o seu destino.
Meditava então na
triste sorte dos mortais flutuando sobre um mar de opiniões humanas, sem
governo, sem bússola, e entregues às suas tempestuosas paixões, sem outro guia
que um piloto inexperiente que conhece mal a sua rota, e que não sabe nem de
onde vem nem para onde vai. Dizia a mim próprio: Amo a verdade, procuro-a, e
não posso reconhecê-la; que ma mostrem e ficarei a ela ligado: porque será
preciso que ela seja roubada à espontaneidade de um coração feito para a
adorar?
Apesar de ter
provado muitas vezes grandes males, nunca levei uma vida tão desagradável como
nesse tempo de desordem e ansiedade, onde, sem cessar, errando de dúvida em
dúvida, só retirava, das minhas longas meditações, incerteza, obscuridade,
contradições sobre a causa do meu ser e sobre a regulação dos meus deveres.
Como poderemos ser
sistematicamente céticos e estar de boa fé? Não podia compreendê-lo. Estes
filósofos, ou não existem, ou são os mais infelizes dos homens. A dúvida sobre
as coisas que nos importam conhecer é um estado demasiado violento para o
espírito humano: ele não resiste aí muito tempo; decide-se, apesar de tudo, de
um modo ou de outro, e prefere enganar-se a não crer em nada.
O que redobrava o
meu embaraço, era que tendo nascido numa Igreja que tudo decide, que não
permite nenhuma dúvida, um único ponto rejeitado fazia-me rejeitar tudo o resto,
e que a impossibilidade de admitir tantas decisões absurdas separava-me também
das que não o eram. Ao dizer-me: Crê em tudo, impediam-me de crer em alguma
coisa, e eu já não sabia onde me deter.
Consultei os
filósofos, folheei os seus livros, examinei a sua diferentes opiniões;
pareceram-me todos orgulhosos, afirmativos, dogmáticos, mesmo pretendendo ser
céticos, não ignorando nada, não provando nada, troçando uns dos outros; e este
ponto comum a todos pareceu-me o único onde todos tinham razão. Triunfantes
quando atacavam, não tinham qualquer vigor quando se defendiam. Se pensarmos
nas razões, só as têm para destruir; se contarmos as vozes, cada um está
reduzido à sua; só entram em acordo para se disputarem; escutá-los não era a
forma de sair da minha incerteza.
Conclui que a
insuficiência do espírito é a primeira causa desta prodigiosa diversidade de
sentimentos, e que o orgulho é a segunda.(…)
Quando os filósofos
estiverem em estado de descobrir a verdade, quantos terão interesse nela? Cada
um sabe bem que o seu sistema não está melhor fundamentado que o dos outros;
mas mantém-no porque é o seu sistema. Não há um único que chegando ao
conhecimento do verdadeiro e do falso, não prefira a mentira que descobriu à
verdade descoberta por um outro. Onde está
o filósofo que pela sua glória não enganaria voluntariamente o género humano?
Onde está aquele que , no segredo do seu coração, tem outro objetivo senão
distinguir-se? Desde que se eleve por cima da vulgaridade, desde que apague o
efeito dos seus concorrentes, que quer mais? O essencial é pensar de modo
diferente dos outros. Para o crente é ateu, para o ateu será crente.
Tradução de Helena Serrão
Jean-Jacques Rousseau, L’Émile ou de l’éducation, Flammarion,1966, Paris pág.347 e348
Jean-Jacques Rousseau, L’Émile ou de l’éducation, Flammarion,1966, Paris pág.347 e348
Sem comentários:
Enviar um comentário