domingo, outubro 30, 2022

Niilismo

 


Vivian Maier, NI, 1926/2009

Saber, porém, significa: poder manter-se na verdade. Essa é a manifestação do ente, O saber é por conseguinte: poder estar na manifestação do ente, suportá-la. Possuir simples conhecimentos, por mais amplos que sejam, não é saber. Mesmo tratando-se de conhecimentos "ligados à vida",  modelados pela mais imperiosa necessidade, ainda assim, a sua posse, não é saber. Quem traz consigo tais conhecimentos e ainda se exercitou em algumas técnicas de uso prático, ficará, sem embargo, desarmado diante da realidade real, que sempre difere do que o cidadão comum entende por proximidade da vida e da realidade, e será necessariamente um inexperiente. E porquê? Porque não possui saber, pois saber significa: poder aprender. O poder-aprender supõe o poder-investigar. Investigar é o querer-saber esclarecido acima: a re-solução de abrir-se a um poder-suportar a manifestação do ente. Visto que se trata para nós da investigação da primeira questão em dignidade, tanto o querer como o saber são de índole particularmente originária. (...). A atitude de Investigação deve-se então esclarecer, assegurar e firmar pelo exercício.  A nossa primeira tarefa consiste, pois, em desdobrar a questão: "Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?” Em que direção se poderá fazê-lo? Em primeiro lugar a questão tem um enunciado acessível pois proporciona, por assim dizer, uma amostra sobre a questão. Por isso sua formulação linguística tem que ser correspondentemente ampla e pouco rigorosa. Consideremos, sob este ponto de vista, o enunciado da nossa questão. "Por que há simplesmente o ente e não antes c Nada?". (...) Ora, na nossa questão  indica-se, com toda exatidão, o que se investiga, a saber o ente. Aquilo em função do qual se investiga, aquilo pelo que se investiga, ê o porquê, ou seja o fundamento. Logo, o que ainda segue no enunciado da questão "e não antes o Nada?”, é mais um apêndice, que numa linguagem introdutória e pouco rigorosa se junta por si mesmo, mas nada  acrescenta ao tema, seja aquilo que,  seja aquilo pelo que se Investiga. É um floreio de adorno. Até sem o apêndice, que só nasce da abundância de um discurso impreciso, a questão ganha muito mais em precisão e exatidão: “Por que há simplesmente o ente?” O acréscimo, “e não antes o Nada?”, não só, com vista a uma formulação rigorosa, se torna supérfluo, como ainda mais, em razão de não dizer coisa alguma. Pois com efeito, o que se poderia ainda investigar no Nada? O Nada é simplesmente nada. Aqui a investigação já não tem nada mesmo o que procurar. Com a introdução do Nada, antes de tudo, não logramos o mínimo que seja para o conhecimento do ente. Quem fala do Nada, não sabe o que faz. Quem diz algo do Nada, transforma-o, ao fazê-lo. em alguma coisa. Dizendo algo, di-lo pois contra o que pensa. Contradiz-se  a si mesmo. Ora, um dizer, que se contradiz, formula-se contra a regra fundamental de todo dizer (logos]-. contra a “Lógica”. Falar do Nada é ilógico. O homem, que fala e pensa de modo ilógico, está irremediavelmente fora da ciência. Quem, dentro da filosofia, onde a lógica tem a sua cidadela, fala do Nada, é atingido pela  incriminação de faltar contra a regra fundamental de todo pensamento, ainda mais duramente, Um falar do Nada consta sempre de meras frases sem sentido. Ademais, quem leva o Nada a sério, coloca-se a favor do negativo. Favorece evidentemente o espírito de negação e serve apenas ao aniquilamento. Falar do Nada não só é inteiramente contrário ao pensamento, como arruína também toda cultura e qualquer fé. Qra, desprezar o pensamento, na sua lei fundamental, é como destruir a vontade construtiva e a fé, é, portanto, puro niilismo.

Martin Heidegger, Introdução à metafísica, 1999, Tempo Brasileiro

sexta-feira, outubro 21, 2022

 

Sebastien Durand

 

“Os pensadores essenciais dizem sempre o mesmo. Isto, porém, não quer dizer: o igual. Não há dúvida que eles só dizem a quem se empenha a meditar sobre eles. Na medida em que o pensar, rememorando historicamente, presta atenção ao destino do ser, ele já se adequou ao humor que é adequado ao destino. E, contudo, permanece o elemento aventureiro, a saber, como o constante risco de pensar. Já é tempo de desacostumar-se de super valorizar a filosofia e de, por isso, lhe vir com exigências. Na presente indigência do mundo, é necessário: menos filosofia, mas mais desvelo de pensar; menos literatura e mais cultivo da letra.

O pensamento futuro não é mais filosofia, porque pensa mais originariamente que a “metafísica”, nome que diz o mesmo. O pensar futuro também não pode mais, como exigia Hegel, deixar de lado o nome de “amor pela sabedoria” e nem ter-se tornado a própria sabedoria na forma de saber absoluto. O pensar está na descida para a pobreza da sua essência precursora. O pensar recolhe a linguagem para junto do simples dizer. A linguagem é assim a linguagem do ser, como as nuvens são as nuvens do céu. Com seu dizer, o pensar abre sulcos invisíveis na linguagem. Eles são mais invisíveis que os sulcos que o camponês, a passo lento, traça pelo campo. “

Martin Heidegger, Carta sobre o humanismo, Lisboa, Guimarães, 1980, pp.123-125

 

sexta-feira, outubro 07, 2022

Filosofia: uma indagação em tudo semelhante à ciência?

 

 


 

Edward Munch, 1904, Costa com casa vermelha

" Há um mito do génio solitário, que tudo pensa por si em glorioso isolamento. Não é assim que funcionam a filosofia ou a matemática ou a ciência natural. Embora muito nelas se tenha alcançado por via do pensamento solitário, isso foi feito por pensadores que tinham já aprendido muito com o trabalho dos outros. Talvez o mais próximo de um contra-exemplo a isto tenha sido o génio matemático indiano Srinivasa Ramanujan (1887 -1920), mas até ele começou com manuais. Os bons filósofos parecem-se menos ainda com gurus saídos do ermo. A filosofia avança por comparação racional de ideias rivais, através do diálogo, não do monólogo.  Há que estar envolvido na discussão para saber que ideias foram propostas como rivais às nossas, e que base comum temos com os proponentes daquelas para começar a argumentar contra as mesmas. O guru solitário carece de tal conhecimento.  Dois gurus têm de aprender tanto a ouvir como a falar um com o outro.(…)

A questão controversa é saber se os filósofos precisam ou não de muito mais conhecimento da história menos recente do seu assunto do que precisam os matemáticos e cientistas naturais nas suas áreas. Terá a filosofia contemporânea absorvido já todas as ideias significativas do trabalho anterior?

Eis uma ideia. É difícil saber que suposições a filosofia toma por garantidas até encontrarmos alguma filosofia do passado que não as tomava como garantidas. Aí reside parte do valor de as tomar por garantidas: de modo a não perder tempo a refletir sobre elas. Porém, os filósofos tipicamente querem detetar as suas suposições, e não as deixar passar despercebidas. “ A vida não examinada não é digna de ser vivida”, afirmou Sócrates, segundo Platão. Examinar a nossa própria vida envolve identificar aquilo que se tem tomado como garantido. Por exemplo, muitos filósofos contemporâneos pressupõem que os deveres morais se sobrepõem sempre a considerações estéticas de beleza e fealdade, sem estarem cientes de que fazem uma suposição substancial. Ler F.Nietzsche  poderia alertá-los para alternativas, e talvez fazê-los questionar a sua pressuposição”

Timothy Williamson, Filosofar, Da curiosidade comum ao raciocínio lógico, Lx, Gradiva,2019, p.p214,215