terça-feira, julho 16, 2024

Crónicas da escola.



Foto Dorothea Lange, EUA, (1895–1965)

 Nos jornais em tom de notícia de última hora, os rankings das escolas deste ano.  Assim sai o título, de facto dia 12 de julho, a data deste acontecimento, as provas de exame do secundário já tinham sido corrigidas e esperavam-se os resultados na próxima segunda feira. O comum dos mortais pensaria, como eu pensei, que os jornais estão a publicar, em primeira mão, os resultados dos exames deste ano. Faria sentido apesar de ser estranho que tenham acedido aos resultados antes das próprias escolas, mas no seguimento cronológico dos acontecimentos, poderíamos pensar que sim, eram os resultados desse ano. Engano! São os resultados do ano passado, que se publicam numa altura em que está no ar a expectativa acerca dos resultados deste ano; a baralhação é o trunfo destas notícias, querem fazer-nos pensar que hierarquia das escolas corresponde a este ano, e sendo agora altura de matrículas, segue-se uma equação simples; os pais quererão inscrever os seus filhos e educandos numa boa escola, isto é, numa escola bem classificada do ranking e as melhores são os colégios privados...vai já um telefonema para marcar uma vaga...isto é, claro! para quem tem dinheiro para pagar, se não há dinheiro, não há alternativa, têm que ficar na escola Pública. Conclusão: Os rankings, pelo momento escolhido, para a sua publicação, fazem uma descarada publicidade ao Ensino Privado e segunda conclusão, vinculam a ideia de que os ricos têm melhor educação que os pobres. Os rankings ajudam a tornar visível o fosso social entre ricos e pobres, os ricos têm acesso às melhores escolas e os pobres não podem escolher, têm que ficar com o que resta. É um facto. A educação de qualidade paga-se, pelo seguro, não arrisque, pague, será melhor servido.

Para começar, melhores classificações de exames não são os únicos indicadores de melhor educação, são um indicador, há outros. A escola pública deve pensar com os rankings e aprender com alguns aspetos que funcionam melhor nos colégios privados.

Como professora da escola pública este ano tive problemas com um aluno que me mandou para aqueles sítios que me envergonho de dizer, o aluno continuou a ser meu aluno, não pediu desculpa, continuou a insultar á boca pequena, para o ar, fiz queixas e nada aconteceu, entretanto este aluno já tinha ameaçado outros professores e estragado material da escola com murros e pontapés, continua sem que nada lhe aconteça. A liberdade da escola pública, e o ensino para a liberdade, que é, sem dúvida algo que deve ser preservado, tem, nestes exemplos o seu contraditório. Uma liberdade efetiva não permite nunca a violação de direitos essenciais, não pode haver liberdade sem a defesa dos direitos de todos os membros da comunidade escolar, considero que os meus direitos não foram defendidos pela instituição e que se dá maus exemplos de liberdade quando se tomam estas atitudes institucionais. Aqui o colégio privado está melhor, o aluno que insulta um professor tem um processo disciplinar e é expulso da escola. Um dos problemas da escola pública é, parece-me, o problema de não sancionar maus comportamentos e confundir liberdade com direito a cada um fazer o que quiser, não cuidando assim da educação, pois dissemina maus exemplos, nem do professor porque não defende os seus direitos, nem do aluno porque lhe permite comportamentos abusivos. Enquanto este tipo de actuação não mudar, continuaremos a ter falta de professores, pois não é apenas o salário que desmotiva, é sobretudo este chão armadilhado que se dá como tarefa ao professor, esta falta de soluções para preservar os seus direitos, sem a preservação integral e inequívoca dos direitos dos professores, poucos serão aqueles que querem abraçar esta profissão e muito pouco se poderá melhorar no ensino.

Helena Serrão


quinta-feira, maio 23, 2024

Robert Nozick: Os mais favorecidos têm direito a queixar-se no sistema de justiça proposto por Rawls.


Ruth Orkin,  GreenwichVillage, Nova Iorque, 1949

Rawls dedica muita atenção a explicar por que os menos favorecidos não devem queixar-se de receber menos. A sua explicação, em termos simples, é que porque a desigualdade age em seu benefício, o indivíduo menos favorecido não deve queixar-se dela: ele recebe mais no sistema desigual do que obteria num sistema igual. (Embora pudesse receber ainda mais num sistema que colocasse alguém mais abaixo dele). Rawls, porém, discute a questão se os mais favorecidos acharão ou não, ou deverão achar, os termos satisfatórios (…) O que Rawls imagina que se diz aos mais favorecidos não demonstra que estes não têm motivos para se queixarem. A condição de que o bem-estar de todos depende da cooperação social, sem a qual ninguém poderia ter uma vida satisfatória, poderia também ser dito aos menos dotados por alguém que propusesse qualquer outro princípio, incluindo o de maximizar a posição dos mais bem dotados. Analogamente, a respeito do facto, só podemos pedir a cooperação voluntária de alguém se os termos do esquema forem razoáveis. A questão é: Que termos seriam razoáveis? (…) Assim quando Rawls continua: “ O princípio da diferença, então, parece ser uma base justa sobre a qual os mais bem dotados, ou mais afortunados nas suas circunstâncias sociais, poderiam esperar que os demais colaborassem com eles, quando o arranjo viável for condição necessária para o bem de todos”, a presença do termo “então” nesse período é enigmática. Uma vez que as orações que o precedem são neutras entre a sua proposta e outra qualquer, a conclusão de que o princípio da diferença oferece uma base justa para a cooperação não pode seguir-se do que a precede neste trecho. Rawls repete que os termos parecem razoáveis, o que seria certamente uma resposta pouco convincente para aqueles para quem eles não são razoáveis. Rawls não demonstrou que o indivíduo mais favorecido A, não tem motivos para se queixar ao ser obrigado a ter menos, para que outro, B, possa ter mais do que teria em outra situação qualquer. E não pode demonstrar isso uma vez que A, de facto, tem motivo de queixa. Ou não tem?

Robert Nozick, Anarquia, Estado e Utopia (1974), Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, (1991), p.213, 214

 

quinta-feira, maio 16, 2024

Rawls: Como pensar uma sociedade mais justa.


Luís Pavão, Taberna da Rua de S. Mamede, 1981

"O político visa à próxima eleição, o estadista, à próxima geração. É papel do estudante de filosofia visar às condições permanentes e aos reais interesses de uma sociedade democrática justa e boa”, John Rawls

O filósofo norte-americano John Rawls (1921-2002) costumava dizer que a última coisa de que gostaria era de se tornar assunto de teses académicas. Não podia evitá-lo, porém. O que a frase acima indica é que ele preferia que seu pensamento servisse de inspiração para que outros implementassem, ou levassem adiante, as suas ideias, em vez de se limitar a alimentar teses e doutores. Dedicou boa parte da sua vida académica, se não toda ela, à elaboração de uma teoria da justiça, à qual deu o nome de “Justiça como equidade” (Justice as fairness). A sua teoria foi apresentada de modo mais consistente, em 1971, em Uma Teoria da Justiça, e a partir daí ocupou-se em responder às críticas e corrigir ou alterar alguns aspetos da sua teoria. O conjunto de sua produção converge, de maneira impressionante, para o tema central: como tornar as sociedades mais justas? (...)

Rawls não se limita a descrever uma situação de injustiça social; aliás, raramente o faz. Parte do pressuposto de que a desigualdade é inerente à condição do homem em sociedade, e que o homem é intrinsecamente auto-interessado, um “egoísta racional”. Ainda assim, julga, ele pode superar essa condição ao associar-se a outros para estabelecer os princípios da vida em comum. Para que a escolha dos princípios não seja distorcida por esses interesses, tal escolha efetua-se por trás de um “véu de ignorância”, os agentes ignoram a sua posição atual bem como suas chances futuras na sociedade, tanto as suas como as dos outros. A essa situação chama de “posição original”.

Uma vez escolhidos os princípios para essa sociedade, que são, argumenta, o “princípio da liberdade igual para todos” e o “princípio da diferença”, caberá a cada sociedade, internamente , deliberar sobre a forma de pôr em prática esses princípios

A igualdade de oportunidades só pode ser efetiva se todos se beneficiarem das mesmas condições formais de educação, saúde e alimentação, dentre outros bens primários. Caso todos possuam acesso pelo menos aos bens básicos, a condição inicial será justa. Isso não significa que não haja mais desigualdade, mas essa desigualdade será pelo menos aceitável para os que se encontram na base da pirâmide social; este é, basicamente, o que é enunciado pelo princípio da diferença. Como diz Rawls, a “igualdade de oportunidades é assegurada por um certo conjunto de instituições que asseguram igualmente boa educação e chances de cultura para todos e que mantêm aberta a competição para posições com base em qualidades que podem ser relacionadas com a performance”.

A teoria da justiça como equidade não constitui um igualitarismo rasteiro. Trata-se de mexer na distribuição até ao ponto em que se possa fazê-lo sem afetar a renda da sociedade como um todo, o que é conhecido como o princípio "maximin". Este defende que se pode elevar a renda e as condições de vida dos que têm menos, ao mesmo tempo em que se taxa progressivamente (ou por meio de um imposto de consumo) a renda dos que têm mais, até ao ponto em que uma maior alteração afetaria negativamente as condições económicas da sociedade em geral. Em linguagem mais simples, quer dizer que a desigualdade se justifica se e somente se, aqueles que estão na parte mais baixa da pirâmide são mais beneficiados pela presente repartição (desigual) de bens e oportunidades do que seriam se o sistema fosse mais igualitário.

Luiz Paulo Rouanet



quarta-feira, maio 08, 2024

Problemas do argumento cosmológico


No argumento cosmológico o cerne do problema é que, se a resposta à pergunta “O que causou o universo?” é X (Deus, por exemplo, ou o Big Bang), é sempre possível dizer-se “Sim, mas o que causou X?”. E se a resposta a isso for Y, poderá perguntar-se ainda “O que causou Y?”. A única maneira de fazer que a pergunta pare de se referir interminavelmente a uma anterioridade é insistir que X (ou Y, ou Z) é de um género tão radicalmente diferente, que a pergunta nem sequer pode ser feita. E isso exige que se atribuam a X algumas propriedades bem estranhas. Quem tiver relutância em aceitar esta consequência talvez se sinta mais contente ao aceitar a implicação de se estender indefinidamente a cadeia causal, designadamente a de que o universo não tem começo. Ou poderá adotar o ponto de vista de Bertrand Russell, para quem o universo é em definitivo ininteligível, um facto bruto acerca do qual não podemos falar ou debater com coerência. Uma resposta insatisfatória, mas não pior do que outras também disponíveis para este problema tão intratável.»

Ben Dupré (2011), 50 Ideias de Filosofia que Precisa Mesmo de Saber, Alfragide, Publicações Dom Quixote, p. 158

O Universo tal como até agora a ciência e a tecnologia nos mostra, com algum grau de certeza, é um conjunto de galáxias com estrelas e planetas e que, em número de seres existentes, tende para o infinito. A sua existência infinita ou não teve um começo ou não teve começo algum como pensavam os gregos; uma matéria eterna. Pode ser uma criação divina? As evidências de planetas e estrelas onde parece só existir  matéria sem vida em vários estados, aponta para a possibilidade de um acaso, e não para um Deus criador inteligente, senão para quê tanta matéria inerte? Parece não ter nenhum propósito do ponto de vista da nossa inteligência. Um Deus entediado que, como um fazedor de coisas, não se cansa de as fazer sem fim também custa a acreditar dado que há um padrão nas coisas existentes, que se coaduna mais com leis de causa efeito produzidas pela própria natureza da matéria, sem excluir o acaso. A evidência deste Universo que conhecemos não se coaduna com a ideia de um Cosmos, bem organizado e com propósito, nem com a ideia de um Deus teísta o que excluíria todos os argumentos para provar a existência do Deus teísta.

quarta-feira, abril 24, 2024

Arte e falsificação: Será uma falsificação obra de arte?


'Voltando para Casa', supostamente de Gertrude Abercombrie, foi vendida em leilão por US$ 93,750 no ano passado. A pintura está a ser investigada pelo FBI por suspeita de ser uma falsificação.


A definição formalista de Bell (1), que é uma definição essencialmente estética, permite claramente classificar como arte as falsificações. Se basta que uma obra tenha forma significante para ser arte e se, como escreve Bell, a forma significante na pintura consiste em «linhas e cores combinadas de um modo particular, ou em certas formas e relações de formas», então uma cópia perfeita – seja uma falsificação ou não – de um objecto com forma significante terá também forma significante, pelo que será também uma obra de arte. Neste sentido, é irrelevante determinar qual a história da produção das obras de arte ou obter informação sobre quaisquer outras propriedades quando há arte!  Daí que, «para apreciarmos uma obra de arte, a única coisa que temos de trazer connosco é um sentido de forma e de cor e um conhecimento do espaço tridimensional», diz Bell . Assim, não precisamos de qualquer bagagem extra, a não ser sensibilidade estética e inteligência, para determinar se um dado objecto é ou não uma obra de arte, pois temos diante de nós tudo o que realmente conta. O que nos importa, pergunta Bell, «se as formas que nos emocionam foram criadas anteontem em Paris ou há cinquenta séculos na Babilónia?»  Talvez isso não seja irrelevante para avaliar os méritos artísticos de uma dada obra de arte, mas é irrelevante para decidir se estamos ou não diante de uma obra de arte. As coisas já são menos claras quando pensamos na definição institucional. As falsificações parecem satisfazer todas as condições indicadas pela definição institucional de Dickie: ser um artefacto, em virtude de cujas características é proposto por alguém que age em nome do mundo da arte como candidato a apreciação. No entanto, foi o próprio Dickie que, em Art and the Aesthetic (2), argumentou que as falsificações não são arte por falta de originalidade, uma vez que a obra genuína teria, como diz Davies, «esgotado o uso da patente da obra» (3). Este requisito soa um tanto ad hoc, dado que a definição institucional não parece exigir tal coisa. Daí que Dickie tenha posteriormente mudado de opinião:

“Seguindo o exemplo de Danto, em Art and the Aesthetic ,concluí que as falsificações não são obras de arte. Penso agora que foi uma conclusão errada. [...] Claro que ainda se pode dar o caso de as falsificações não serem obras de arte por algum motivo. Mas não vejo razão para que tais obras não possam satisfazer todos os requisitos para serem obras de arte no sentido classificatório: as falsificações são obras de arte sobre cujo criador estamos ou temos estado enganados; as cópias são obras de arte sem imaginação ou completamente parasitárias. (4)

Ainda assim, independentemente de a posição inicial de Dickie estar relacionada com a questão da originalidade, poderia haver dúvidas quanto à satisfação de algum dos requisitos indicados na sua definição. Um desses requisitos é que um objecto só pode ser arte se alguém do mundo da arte o propuser como candidato a apreciação. Dickie esclarece que fazem parte do mundo da arte os próprios artistas, os membros do público e os apresentadores, que são os intermediários entre o artista e o público. Mas é aqui que surgem as dúvidas: se dissermos que uma cópia ou uma falsificação são arte porque foram propostas como candidatas a apreciação pelos próprios artistas que as produziram, então estaremos perante um círculo. O que justifica que os seus autores sejam chamados artistas? Não é esclarecedor dizer que basta que alguém se considere artista para o ser, até porque Dickie sublinha que uma característica de todos os artistas é a consciência de que aquilo que está a ser criado para apresentação é arte. Mas é, no mínimo, duvidoso que o falsário tenha sempre a consciência de que aquilo que está a apresentar seja mesmo uma obra de arte, caso contrário talvez não precisasse de esconder a verdadeira autoria.


(1) BELL,Clive. Arte. Traduzido por Rita Canas Mendes. Lisboa: Texto e Grafia, 2009.

(2) DICKIE, George. Art and the Aesthetic. Ithaca: Cornell University Press, 1974.

(3) DAVIES, Stephen. Definitions of Art. Ithaca: Cornell University Press, 1981, 

(4) DICKIE, George. The Art Circle. Nova Iorque: Haven, 1984.


Aires Almeida,"Arte e contrafacção: valor estético e estatuto das falsificações"
 in Quando Há Arte! Ensaios de Homenagem a Maria do Carmo d’Orey,  Organizadores: Vítor Guerreiro, Carlos João Correia e Vítor Moura, 2023, Bookbuilders / Letras Errantes, p.93,94

quarta-feira, abril 17, 2024

A palavra "jogo" e a palavra "arte": sabemos identificar os objetos pertencentes à classe do conceito mas não sabemos identificar uma característica comum a todos os objetos.

 


Fotografia, Helen Bartlett, Londres

E é verdade. – Em vez de mencionar algo que é comum a tudo o que chamamos de linguagem, eu afirmo que essas manifestações nada têm em comum, ainda que para todas empreguemos a mesma palavra, – mas estão mutuamente aparentadas de muitas formas diferentes. E é devido a esse parentesco, ou a esses parentescos, que nós chamamos a todas essas manifestações de “linguagem”. Vou tentar explicar isto.

 Considera, por exemplo, os processos a que chamamos de “jogos”. Quero dizer, jogos de tabuleiro, de carta, com bola, de combate, etc. O que é que é comum a todos eles? – Não respondas: “Tem que haver alguma coisa em comum, senão não se chamariam ‘jogos’” – mas olha, para ver se têm alguma coisa em comum, – Porque, quando olhares para eles não verás de facto o que toos têm em comum, mas parecenças, parentescos, e em grande quantidade. Como foi dito: não penses, olha! – Olha, por exemplo, para os jogos de tabuleiro com os seus múltiplos parentescos. A seguir considera os jogos de cartas: encontras aqui muitas correspondências com a primeira classe, mas desaparecem muitos traços comuns, outros aparecem. Se consideramos a seguir os jogos de bola, então muitas coisas em comum ficam preservadas, mas muitas se perdem. – São todos eles ‘divertidos’? Compara o xadrez com o jogo da cabra cega. Ou há sempre perder e ganhar, ou uma competição entre os jogadores? Pensa nos jogos de paciência. Nos jogos de bola há ganhar e perder; mas quando uma criança atira a bola à parede e depois a apanha, este aspeto desaparece. Olha para o papel que desempenham a habilidade e a sorte. O quão diferente que é a habilidade no jogo de xadrez e no jogo de ténis. Pensa agora nos jogos de andar à roda: Tem-se aqui divertimento, mas desaparecem muitos dos outros traços característicos! E assim podemos percorrer muitos, muitos outros grupos de jogos e ver surgir e desaparecer as suas parecenças.

E o resultado desta investigação é o seguinte: vemos uma complicada rede de parecenças que se sobrepõem e se cruzam mutuamente. Parecenças de conjunto e de pormenor. Eu não poderia caracterizar melhor essas parecenças do que pela expressão “parecenças de família”;39 porque as diversas parecenças entre os membros de uma família: altura, traços faciais, cor dos olhos, andar, temperamento etc., etc. sobrepõem-se e cruzam-se da mesma maneira – E eu direi: os ‘jogos’ constituem uma família.

(…) Como é que explicaríamos então a uma pessoa o que é um jogo? Penso que lhe descreveríamos jogos, e poderíamos acrescentar à descrição: “A isto, e a coisas parecidas chama-se um ‘jogo’”.

Investigações filosóficas (1953), Ludwig Wittgenstein, Lx, 2002, Fundação Calouste Gulbenkian, p.227,228,229

(Este texto resulta da comparação entre a obra mencionada e a edição brasileira, tradução e notas João José R. L. de Almeida)

Esta reflexão poderia aplicar-se a muitas palavras como "Arte"cujo conceito é vago e ilimitado, podendo até dizer-se que por não podermos selecionar características comuns a todas as manifestações artísticas, Arte seria uma palavra sem conceito, como jogo ou beleza, podemos descrever várias manifestações artísticas talvez porque não tendo todas a mesma característica, têm contudo uma parecença de família. Como a beleza, diz algo que nos é familiar, uma experiência que podemos descrever, mas que não podemos definir.

quinta-feira, abril 11, 2024

A semelhança de família

 


Pintura de Cecily Brown’s “No You for Me” (2013)


Um tema perene da filosofia ocidental desde que Platão tem sido a busca por definições. Os diálogos socráticos normalmente fazem uma pergunta – o que é justiça, o que é conhecimento, o que é beleza – e prosseguem mostrando, através de uma série de perguntas e respostas, que os interlocutores (apesar da confiança no seu conhecimento) não têm, de facto, uma compreensão clara dos conceitos envolvidos.

A suposição tácita é que o verdadeiro conhecimento de algo depende da capacidade para o definir, e é isso que aqueles que debatem com Sócrates (o porta-voz) não conseguem fazer. Mas isto apresenta-nos um paradoxo, aqueles que não conseguem fornecer uma definição de um determinado conceito são geralmente capazes de reconhecer o que não é, o que certamente exige que eles saibam, em algum nível, o que é. O conceito de arte confronta-nos exatamente com esse caso. Parece que sabemos o que é, mas lutamos para definir as condições necessárias e suficientes que têm de ocorrer para que algo conte como obra de arte.

Na nossa perplexidade, talvez seja natural perguntar se a tarefa de definição não é em si mal concebida: uma caça ao ganso selvagem cujo objetivo é identificar algo que se recusa veementemente a cooperar.

Uma saída para esse labirinto é fornecida pela noção de “semelhança de família” de Wittgenstein, que ele explica no seu livro publicado postumamente “Investigações Filosóficas”. Pegue-se na palavra “jogo”. Todos nós temos uma ideia clara do que são jogos: podemos dar exemplos, fazer comparações entre diferentes jogos, arbitrar casos limites, e assim por diante. Mas surgem problemas quando tentamos aprofundar e procurar algum significado ou definição essencial que englobe todas as instâncias. Pois não existe esse denominador comum: há muitas coisas que os jogos têm em comum, mas não há uma característica que todos compartilhem. Para abreviar, não há profundidade oculta ou significado essencial: a nossa compreensão da palavra é nem mais nem menos do que a nossa capacidade de usá-la adequadamente numa ampla gama de contextos.

Se supusermos que “arte”, assim como “jogo”, é uma palavra com uma “semelhança de família”, a maior parte de nossos as dificuldades evaporam. As obras de arte têm muitas coisas em comum com outras obras de arte: podem expressar as emoções interiores de um artista; podem destilar a essência da natureza; podem comover-nos, assustar-nos ou chocar-nos. Mas se olharmos para alguma característica que todas possuem, procuraremos em vão; qualquer tentativa de definir arte – definir um termo que é essencialmente fluido e dinâmico no seu uso – é mal concebido e fadado ao fracasso.

Tradução Helena Serrão

Ben Dupré, 50 philosophy ideas, London, 2007,Quercus, p.146,147

quarta-feira, março 27, 2024

O medo da liberdade

 




Eduardo Gageiro, 25 de Abril 1974

“À medida que a criança cresce e corta os laços primários, vai desenvolvendo uma busca de liberdade e independência. Mas o fim desta busca só pode ser entendido se entendermos o carácter dialético deste processo de individuação crescente.

Este processo tem dois aspetos: um é o de que a criança se torna mais forte dos pontos de vista físico, emocional e mental. (…) Os limites do crescimento da individuação e do eu são estabelecidos, em parte, por condições individuais, mas essencialmente por condições sociais. Isto porque, embora as diferenças entre os indivíduos, a este respeito, pareçam ser grandes, cada sociedade é caracterizada por um certo nível de individuação que o indivíduo não pode superar.

O outro aspeto do processo de individuação é a solidão crescente. Os laços primários oferecem segurança e unidade básica com o mundo que nos é exterior. À medida que a criança emerge deste mundo, torna-se consciente de estar sozinha, de ser uma entidade separada de todas as outras. Esta separação de um mundo que, em comparação com a nossa própria existência individual, é esmagadoramente forte e poderoso, muitas vezes ameaçador e perigoso, cria um sentimento de impotência e ansiedade. Enquanto somos parte integral desse mundo, inconscientes das possibilidades e responsabilidades da ação individual, não há necessidade de o temer. Quando nos tornamos indivíduos, ficamos sozinhos e enfrentamos o mundo em todos os seus aspetos perigosos e esmagadores.

Surgem impulsos de renúncia à nossa individualidade, de superação do sentimento de solidão e de impotência, submergindo completamente no mundo exterior. Ora, estes impulsos e os novos laços que deles surgem não são idênticos aos laços primários que foram cortados no próprio processo de crescimento. Da mesma maneira que uma criança nunca pode regressar fisicamente ao útero da mãe, nunca pode inverter fisicamente o processo de individuação. Os esforços para o fazer adquirem necessariamente o carácter de submissão, em que a contradição básica entre a autoridade e a criança que se lhe submete nunca é eliminada. Conscientemente, a criança pode sentir-se segura e satisfeita, mas, inconscientemente, percebe que o preço a pagar é a renúncia à força e integridade do seu eu. Assim, o resultado da submissão é exatamente o oposto do que devia ser: a submissão aumenta a insegurança da criança e, ao mesmo tempo, gera hostilidade e rebeldia, que são mais assustadoras, porque se dirigem contra as mesmas pessoas relativamente às quais a criança permaneceu – ou se tornou – dependente.

(…) Também em termos filogenéticos, a história do homem pode ser caracterizada como um processo de crescente individuação e de crescente liberdade. O homem emerge do estádio pré-humano ao dar os primeiros paços na direção da libertação dos instintos coercivos. (…) De todos, o homem é o animal mais desamparado ao nascer. A sua adaptação à natureza baseia-se essencialmente no processo de aprendizagem e não na determinação instintiva. O instinto é uma categoria que diminui e até desaparece nas formas animais superiores, em especial no ser humano.

A existência humana começa quando a falta de fixação da ação pelos instintos supera um certo ponto; quando a adaptação à natureza perde o seu carácter coercivo, quando a maneira de agir já não é determinada por mecanismos herdados. Por outras palavras, a existência humana e a liberdade são inseparáveis."

Erich Fromm, O medo da liberdade, (1941), Lx, Edições 70, 2023, p.p 45 a 48.


A questão da liberdade como hoje a colocamos quando falamos no 25 de Abril, ganha protagonismo com a revolução francesa, "Liberté, Fraternité, Egalité" é a chave das novas Repúblicas, uma nova forma de entender os indivíduos e as sociedades, de entender o que interessa preservar ou conquistar. Aqui a Liberdade dá-se como um grito de revolta contra uma tirania política e social que impedia vários direitos, entre os quais o direito à liberdade de escolha política, religiosa, sexual, cultural, económica. Centra-se essa liberdade no direito que cada indivíduo tem de escolher, o poder do indivíduo inserido num coletivo, porque o poder é do coletivo, politicamente falando. A questão é de desviar a atenção deste pormenor, cada indivíduo é um poder, no sentido que pode escolher, mas as sociedades só mudam e os direitos só prevalecem se individualmente formos capazes de deixar as nossas singularidades e escolhermos um projeto coletivo, penso que hoje, em Portugal, estamos só centrados nas liberdades individuais e descurámos o coletivo, e só o coletivo, as sociedades e as políticas podem garantir esses direitos.  50 anos depois, o fervor da liberdade continua como uma ideia bonita e definitivamente enraizada no nosso imaginário mas, sem uma vivência efetiva. A possibilidade de escolha é angustiante, dá-nos mais paz uma autoridade que decida por nós, alguém em quem confiar enfim, voltar ao ventre materno. Ora, a democracia atual e o atual estado político nega-nos esse conforto, não há paizinhos protetores, nem úteros maternos onde fechar os olhos e deixar-se levar, a democracia exige vivência da liberdade e isso causa um medo imenso, a verdade é que não sabemos o que escolher, e não pensamos muito sobre isso, nem perdemos muito tempo, passa-se o mesmo com todos os problemas da participação, nas assembleias camarárias, nos grupos de café, em qualquer sítio onde se possa discutir a política, se tenha poder decisório de uma voz pública. O medo da liberdade não é só um sintoma psicológico de não querer crescer, pois esse faz parte das dores do crescimento, é sobretudo uma conjuntura social alienante que identifica liberdade com saída com amigos, correr e viajar, isto é com a fuga da intervenção e responsabilidade política. O medo da liberdade é proporcional ao nosso desdém pela política, como se pudesse ter havido liberdades sem um coletivo onde cada um se revia em todos, ou seja num espírito político. HS

quinta-feira, março 21, 2024

Filosofia

 



Construo o pensamento aos pedaços: cada
ideia que ponho em cima da mesa é uma parte do
que penso; e, ao ver como cada fragmento se
torna um todo, volto a parti-lo, para evitar
conclusões.


"A pura inscrição do amor", pág. 42 | Publicações Dom Quixote, 1ª. edição. Jan. 2018


Nuno Júdice 29 de abril de 1949/ 17 de março de 2024

sexta-feira, março 08, 2024

O imprevisto como um dos motores da ciência

 


Matt Black, Um fazendeiro revê os seus sistemas de rega, Georgia, EUA, 2017

Na ciência, (…) a novidade somente emerge com dificuldade (dificuldade que se manifesta através de uma resistência) contra um pano de fundo fornecido pelas expectativas. Inicialmente experimentamos somente o que é habitual e previsto, mesmo em circunstâncias nas quais mais tarde se observará uma anomalia. Contudo, uma maior familiaridade dá origem à consciência de uma anomalia ou permite relacionar o facto a algo que anteriormente não ocorreu conforme o previsto. Essa consciência da anomalia inaugura um período no qual as categorias conceptuais são adaptadas até que o que inicialmente era considerado anómalo se converta no previsto. Nesse momento completa-se a descoberta. Já insisti anteriormente sobre o fato de que esse processo (ou um muito semelhante) intervém na emergência de todas as novidades científicas fundamentais Gostaria agora de assinalar que, reconhecendo esse processo, podemos facilmente começar a perceber por é que a ciência normal — um empreendimento não dirigido para as novidades e que a princípio tende a suprimi-las — pode, não obstante, ser tão eficaz a provocá-las.

No desenvolvimento de qualquer ciência, admite-se habitualmente que o primeiro paradigma explica com bastante sucesso a maior parte das observações e experiências facilmente acessíveis aos praticantes daquela ciência. Em consequência, um desenvolvimento posterior requer geralmente, a construção de um equipamento elaborado, o desenvolvimento de um vocabulário e técnicas esotéricas, além de um refinamento de conceitos que se assemelham cada vez menos com os protótipos habituais do senso comum. Por um lado, essa profissionalização leva a uma imensa restrição da visão do cientista e a uma resistência considerável à mudança de paradigma. A ciência torna-se sempre mais rígida. Por outro lado, dentro das áreas para as quais o paradigma chama a atenção do grupo, a ciência normal conduz a uma informação detalhada e a uma precisão da integração entre a observação e a teoria que não poderia ser atingida de outra maneira. Além disso, esse detalhe e precisão da integração possuem um valor que transcende o seu interesse intrínseco, nem sempre muito grande. Sem os instrumentos especiais, construídos sobretudo para fins previamente estabelecidos, os resultados que conduzem às Mesmo quando os instrumentos especializados existem, a novidade normalmente emerge apenas para aquele que, sabendo com precisão o que deveria esperar, é capaz de reconhecer que algo está errado. A anomalia aparece somente contra o pano de fundo proporcionado pelo paradigma. Quanto maiores forem a precisão e o alcance de um paradigma, tanto mais sensível este será como indicador de anomalias e, consequentemente de ocasiões para a mudança de paradigma. No processo normal de descoberta, até mesmo a mudança tem uma utilidade que será mais amplamente explorada no próximo capítulo. Ao assegurar que o paradigma não, será facilmente abandonado, a resistência garante que os cientistas não serão perturbados sem razão.

Thomas Kuhn, A estrutura das revoluções científicas, (1962), S. Paulo, Editora Perspectivas,1998, p.90,91,92

quarta-feira, fevereiro 28, 2024

Sobre não mentir

 



Foto: Kultur Tava,

Ora a primeira questão é se o homem, nos casos em que não se pode esquivar à resposta com sim ou não, terá a faculdade (o direito) de ser inverídico. A segunda questão é se ele não estará obrigado, numa certa declaração a que o força uma pressão injusta, a ser inverídico a fim de prevenir um crime que o ameaça a si ou a outrem. A veracidade nas declarações, que não se pode evitar, é o dever formal do homem em relação seja a quem for2 , por maior que seja a desvantagem que daí decorre para ele ou para outrem; e se não cometo uma injustiça contra quem me força injustamente a uma declaração, se a falsificar, cometo em geral, mediante tal falsificação, que também se pode chamar mentira (embora não no sentido dos juristas), uma injustiça na parte mais essencial do Direito: isto é, faço, tanto quanto de mim depende, que as declarações não tenham em geral crédito algum, por conseguinte, também que todos os direitos fundados em contratos sejam abolidos e percam a sua força – o que é uma injustiça causada à humanidade em geral.

Por conseguinte, a mentira define-se como uma declaração intencionalmente não verdadeira feita a outro homem, e não é preciso acrescentar que ela deve prejudicar outrem, como exigem os juristas para a sua definição [mendacium est falsiloquium in praejudicium alterius] 3 . Efectivamente ela, ao inutilizar a fonte do direito, prejudica sempre outrem, mesmo se não é um homem determinado, mas a humanidade em geral. Mas a mentira bem intencionada pode também, por um acaso (casus), ser passível de penalidade, segundo as leis civis. Porém, o que apenas por acaso se subtrai à punição pode igualmente julgar-se como injustiça, segundo leis externas. Se, por exemplo, mediante uma mentira, a alguém ainda agora mesmo tomado de fúria assassina, o impediste de agir és responsável, do ponto de vista jurídico, de todas as consequências que daí possam surgir. Mas se te ativeres fortemente à verdade, a justiça pública nada em contrário pode contra ti, por mais imprevistas que sejam as consequências. É, pois, possível que, após teres honestamente respondido com um sim à pergunta do assassino sobre a presença em tua casa da pessoa por ele perseguida, esta se tenha ido embora sem ser notada, furtando-se assim ao golpe do assassino e que, portanto, o crime não tenha ocorrido; mas se tivesses mentido e dito que ela não estava em casa e tivesse realmente saído (embora sem teu conhecimento) e, em seguida, o assassino a encontrasse a fugir e levasse a cabo a sua ação, poderias com razão ser acusado como autor da sua morte, pois se tivesses dito a verdade, tal como bem a conhecias, talvez o assassino, ao procurar em casa o seu inimigo, fosse preso pelos vizinhos que acorreram, e ter-se-ia impedido o crime. Quem, pois, mente, por mais bondosa que possa ser a sua disposição, deve responder pelas consequências, mesmo perante um tribunal civil, e por ela se penitenciar, por mais imprevistas que essas consequências possam também ser; porque a veracidade é um dever que tem de se considerar como a base de todos os deveres a fundar num contrato e cuja lei, quando se lhe permite a mínima excepção, se toma vacilante e inútil. Ser verídico (honesto) em todas as declarações é, portanto, um mandamento sagrado da razão que ordena incondicionalmente e não é limitado por quaisquer conveniências.

Immanuel Kant, Sobre um suposto direito de mentir por amor à humanidade,

Tradução de Artur Morão

 

quarta-feira, fevereiro 21, 2024

Não há falta de normas

 


Diego-Herrera, Igreja destruída em Yasnohorodka perto de Kiev, March-2022,


A diferença entre o âmbito moral, jurídico e religioso

Porque falamos em “normas” para nos referimos à Moralidade, podemos confundir-nos com as normas jurídicas e religiosas. Um código de normas pode-se inscrever nesses três âmbitos. Nós podemos pensar: “Mas todas essas normas não são estabelecidas para que todos as sigam?” Ou ainda: “Não são todas as normas possíveis de transformação em relação ao contexto histórico e social?” Ou então: “Todas essas normas não buscam que todos os indivíduos vivam melhor em sociedade?”

Sim, as normas jurídicas e, algumas normas religiosas, possuem aspetos em comum com as normas morais, como, por exemplo, o aspeto prescritivo. Mas há distinções importantes. Vejamos algumas delas:

a) As normas morais têm o sentido de uma obrigação interna, ou seja, fundada na razão; as jurídicas de uma obrigação externa fundada nas leis; as religiosas têm o sentido de uma obrigação externa fundada na divindade, expressa por algum livro sagrado ou pelas autoridades religiosas;

b) As normas morais são estabelecidas pela consciência pessoal de cada indivíduo; as normas jurídicas são estabelecidas por organismos legislativos do Estado; as normas religiosas são estabelecidas pelos intérpretes da doutrina professada, tendo relação tanto com o livro sagrado (se houver para a determinada religião) quanto com a tradição;

c) As normas morais têm uma condição universalizável, ou seja, abrangem diversos aspetos da vida humana, por isso também não possuem um código formal. As normas jurídicas referem-se a questões específicas e geralmente, pela sua ligação com o Estado, afetam um território delimitado. As normas religiosas referem-se a princípios compartilhados por um grupo de pessoas, que não têm relação ao território, pois pessoas de países diferentes podem professar o mesmo credo. No entanto, as normas morais são independentes da expressão religiosa, sem que isso signifique que sejam opostas.

CORTINA, Adela; MARTINEZ, Emílio. Ética. Ediciones Akal. Espanha, 2001.

sábado, fevereiro 17, 2024

Quem gosta da liberdade mas prefere servir

 



Andrew Wyeth (1917 – 2009)


Nas muito famosas batalhas de Milcíades, Leônidas e Temístocles, travadas há já dois mil anos e que permanecem tão frescas na memória dos livros e dos homens como se tivessem acontecido ontem, nessas batalhas travadas na Grécia para bem da Grécia e exemplo do mundo inteiro, donde terá vindo aos gregos escassos não digo o poder mas o ânimo para se oporem à força de navios tão numerosos que mal cabiam no mar? E para desbaratarem nações tão numerosas que em toda a armada grega não se achariam soldados que chegassem para preencherem, se tal fosse mister, os postos de comandantes desses navios? É que, em boa verdade, o que estava em causa nesses dias gloriosos não era tanto a luta entre gregos e persas como a vitória da liberdade sobre a dominação, da razão sobre a cupidez. Quantos prodígios temos ouvido contar sobre a valentia que a liberdade põe no coração dos que a defendem! Mas o que acontece afinal em todos os países, com todos os homens, todos os dias? Quem, só de ouvir contar, sem o ter visto, acreditaria que um único homem tenha logrado esmagar mil cidades, privando-as da liberdade? Se casos tais acontecessem apenas em países remotos e outros no-los contassem, quem não diria que era tudo invenção e impostura? Ora o mais espantoso é sabermos que nem sequer é preciso combater esse tirano, não é preciso defendermo-nos dele. Ele será destruído no dia em que o país se recuse a servi-lo. Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa alguma. Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não faça nada contra si próprio. São, pois, os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois deixariam de ser no dia em que deixassem de servir. É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios. Se fosse difícil recuperar a liberdade perdida, eu não insistiria mais; haverá coisa que o homem deva desejar com mais ardor do que o retorno à sua condição natural, deixar, digamos, a condição de alimária e voltar a ser homem? Mas não é essa ousadia o que eu exijo dele; limito-me a não lhe permitir que ele prefira não sei que segurança a uma vida livre. Que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la? Se basta um ato de vontade, se basta desejá-la, que nação há que a considere assim tão difícil? Como pode alguém, por falta de querer, perder um bem que deveria ser resgatado a preço de sangue? Um bem que, uma vez perdido, torna, para as pessoas honradas, a vida aborrecida e a morte salutar? Veja-se como, ateado por pequena fagulha, acende-se o fogo, que cresce cada vez mais e, quanto mais lenha encontra, tanta mais consome; e como, sem se lhe despejar água, deixando apenas de lhe fornecer lenha a consumir, a si próprio se consome, perde a forma e deixa de ser fogo. Assim são os tiranos: quanto mais eles roubam, saqueiam, exigem, quanto mais arruínam e destroem, quanto mais se lhes der e mais serviços se lhes prestarem, mais eles se fortalecem e se robustecem até aniquilarem e destruírem tudo. Se nada se lhes der, se não se lhe obedecer, eles, sem ser preciso luta ou combate, acabarão por ficar nus, pobres e sem nada; da mesma forma que a raiz, sem humidade e alimento, se torna ramo seco e morto.

DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA, Étienne de La Boétie,154



quarta-feira, fevereiro 07, 2024

Problematizar a indução na ciência.

 


Fotografia: Peter van Agtmael (2012) : Mohammed na porta da sua casa. Os residentes de Nabi Saleh protestam, desde 2009, todas as sextas feiras depois das orações do meio dia, contra a a ocupação israelita.

Um tipo diferente de objeção à perspetiva simples do método científico levanta-se pelo facto de esta se apoiar na indução, e não na dedução. A indução e a dedução são dois tipos diferentes de argumentos. Um argumento indutivo envolve uma generalização baseada num certo número de observações específicas. Se eu observar um grande número de animais com pelo, concluindo a partir das minhas observações que todos os animais com pelo são vivíparos (isto é, dão à luz crias em vez de porem ovos), estaria a usar um argumento indutivo. Um argumento dedutivo, por outro lado, parte de certas premissas, passando depois logicamente para uma conclusão que se segue dessas premissas. Por exemplo, das premissas «Todas as aves são animais» e «Os cisnes são aves» posso concluir que, portanto, todos os cisnes são animais: este é um argumento dedutivo. Os argumentos dedutivos preservam a verdade. Isto significa que, se as suas premissas são verdadeiras, as suas conclusões têm de ser verdadeiras. Entraríamos em contradição se afirmássemos as premissas e negássemos a conclusão. Assim, se as premissas «Todas as aves são animais» e «Os cisnes são aves» são ambas verdadeiras, tem de ser verdade que todos os cisnes são animais. Ao invés, os argumentos indutivos com premissas verdadeiras podem ter ou não conclusões verdadeiras. Mesmo que todas as observações de animais com pelo por mim efetuadas tenham sido fidedignas e que todos os animais sejam de facto vivíparos, e mesmo que tenha feito milhares de observações, pode vir a descobrir-se que a minha conclusão indutiva de que todos os animais com pelo são vivíparos é falsa. Na verdade, a existência do plácido ornitorrinco, um tipo peculiar de animal com pelo que põe ovos, significa que se trata de uma generalização falsa.

Apesar deste papel central desempenhado pela indução nas nossas vidas, é um facto indesmentível que o princípio da indução não é inteiramente fidedigno. Como já vimos, pode dar-nos uma conclusão falsa relativamente à questão de saber se é verdade que todos os animais com pelo são vivíparos. As suas conclusões não são tão fidedignas quanto as conclusões resultantes de argumentos dedutivos com premissas verdadeiras. Para ilustrar este aspeto, Bertrand Russell, nos "Problemas da Filosofia", usou o exemplo de uma galinha que acorda todas as manhãs pensando que, uma vez que foi alimentada no dia anterior, sê-lo-á mais uma vez naquele dia. Um dia acorda e o camponês torce-lhe o pescoço. A galinha estava a usar um argumento indutivo baseado num grande número de observações. Estaremos a ser tão tolos quanto esta galinha ao apoiar-nos tão fortemente na indução? Como poderemos justificar a nossa fé na indução? Este é o chamado problema da indução, um problema identificado por David Hume no seu "Tratado acerca do Conhecimento Humano". 

Como poderemos nós alguma vez justificar a nossa confiança num método de argumentação tão pouco digno de confiança? Esta questão é particularmente relevante para a filosofia da ciência porque, pelo menos na teoria simples delineada acima, a indução desempenha um papel crucial no método científico. 

Nigel Walburton, Elementos básicos da Filosofia, Lisboa, 1998, Gradiva, 172,173


quinta-feira, fevereiro 01, 2024

O problema da demarcação.

 


Fotografia, Emin Özmen, Turquia, 2015

Um contributo fundamental para o problema clássico da demarcação foi dado por Popper (1959, 2002), que era da opinião de que a ciência é diferente da pseudociência no sentido em que visa a produção de hipóteses falsificáveis.

 Popper não está convencido de que, no contexto da demarcação, fazer apelo à possibilidade de verificação seja satisfatório. A sua sugestão de uma estratégia alternativa é baseada na observação de que as afirmações gerais nunca podem ser verificadas pela experiência, uma vez que seria necessário um número infinito de observações. Quantas observações de cisnes brancos são necessárias para verificar a afirmação «Todos os cisnes são brancos»? Afirmações gerais na forma «Todos os X são Y» dizem respeito a casos passados, presentes e futuros de X e, portanto, nenhum número de observações de X constituiria prova suficiente para estabelecer com certeza a verdade dessa afirmação geral. E claro que se eu observo cem cisnes e são todos brancos, é razoável que espere que o próximo cisne que vou observar também seja branco. Porém, como sabemos, a observação de um cisne negro numa viagem à Austrália pode ser reveladora. A existência de apenas um caso em que X não é Y prova que afinal de contas a afirmação geral é falsa. O ponto de partida para a introdução da noção de falsificação é o de que uma única experiência pode contradizer a previsão baseada numa hipótese geral, e que isto é suficiente para provar que a hipótese é falsa. Segundo Popper, só as hipóteses científicas são falsificáveis desta maneira, ao passo que as teorias pseudocientíficas e as teorias metafísicas são imunes ao fracasso empírico. Por este motivo, pensava que o apelo à falsificabilidade era a forma mais promissora de distinguir a ciência da não-ciência. Ora será que esta maneira de ver as coisas pode explicar o estatuto pseudocientífico da astrologia? Popper (1963) defende que há uma diferença importante entre 

a) prever indícios observacionais com base numa dada teoria e 

b) modelar  os indícios de modo a serem compatíveis com a teoria. 

Lisa Bortolotti, Introdução à Filosofia das ciências, Gradiva