sexta-feira, junho 02, 2023

Crítica ao princípio da diferença de Rawls.


Dennis Sock, Casal com criança, EUA, 1952

“Pensa-se normalmente – é isso que pensa Rawls, por exemplo – que o princípio da diferença autoriza um argumento a favor da desigualdade baseado em incentivos materiais. A ideia é que as pessoas talentosas serão mais produtivas do que seriam de outra forma se, e apenas se, ganharem mais que o salário comum – e alguma da sua produção adicional pode ser usada para benefício dos mais desfavorecidos. Alega-se que a desigualdade resultante dos incentivos materiais diferenciados, justifica-se pelo princípio da diferença, pois, diz-se, esta desigualdade beneficia os mais desfavorecidos.

Contudo, pelas razões que se seguem, creio que o argumento dos incentivos a favor da desigualdade representa uma aplicação distorcida do princípio da diferença (…). Ou as pessoas acreditam que as desigualdades são injustas se não são necessárias para melhorar a situação dos mais desfavorecidos, ou não acreditam que isso é uma exigência da justiça.  Se não acreditam no princípio da diferença, então a sua sociedade não é justa no sentido rawlsiano apropriado, pois uma sociedade é justa, segundo Rawls, só se os seus membros afirmam e aceitam os princípios da justiça corretos. (…)

Passemos então à outra possibilidade -as pessoas talentosas afirmam o princípio da diferença (…). Podemos perguntar por que razão, à luz da sua crença no princípio, exigem ganhar mais que os não talentosos por um trabalho que, de facto, pode requerer um talento especial, mas que não é especialmente desagradável (…).  Podemos perguntar aos talentosos se o dinheiro que ganham a mais é necessário para melhorar a posição dos mais desfavorecidos -essa é a única justificação que, segundo o princípio da diferença, poderá haver para ganharem mais. Será isso simplesmente necessário? Ou será necessário apenas na medida em que os talentosos decidiriam produzir menos, ou não aceitar os lugares para os quais estão habilitados, se a desigualdade fosse eliminada (por exemplo através de impostos que redistribuíssem os rendimentos de forma a se obter um resultado perfeitamente igualitário? (…)

As pessoas talentosos não poderiam afirmar, para se justificarem (…) que as suas recompensas superiores são necessárias para melhorar a situação dos mais desfavorecidos, dado que são elas próprias que tornam essas recompensas necessárias, recusando-se a trabalhar por recompensas normais tão produtivamente como o fazem por recompensas excecionalmente  altas.  As recompensas altas, portanto, são necessárias apenas porque as escolhas das pessoas talentosas não obedecem propriamente ao princípio da diferença (…)

Deste modo, o princípio da diferença pode justificar a desigualdade apenas numa sociedade em que nem todos o aceitem. Não pode, portanto, justificar a desigualdade de uma forma apropriadamente rawlsiana.”

Se és igualitarista, como ficaste tão rico? G.A. Cohen pp.124-127


 

sexta-feira, maio 26, 2023

Uma aproximação do pensamento de Nozick a Rawls.


Fotografia de Chien-Chi Chang -Bar no centro de Lviv. Não é servido álcool devido a uma proibição do Estado. Lviv, Ukraine, March 22, 2022 

 Em 1971, um até então obscuro professor de filosofia de Harvard, John Rawls, publicou um livro que acabou por aclamá-lo como “o maior filósofo político da América”. No livro “ Teoria da Justiça”, Rawls apresentou uma descrição da justiça na forma de dois princípios, ordenando respetivamente que as “liberdades básicas iguais” das pessoas – direitos como liberdade de expressão, liberdade de consciência e o direito de voto — devem ser maximizados, e que as desigualdades em bens sociais e económicos, que não sejam a liberdade, são aceitáveis apenas se promoverem o bem-estar dos membros “menos favorecidos” da sociedade. (Chamou este último de “princípio da diferença”).

Três anos após o aparecimento de “Teoria”, um colega do seu departamento, Robert Nozick, publicou uma resposta libertária, “Anarquia, Estado e Utopia”, que argumentava que só um "estado mínimo", dedicado a proteger as pessoas contra crimes como assalto, roubo e fraude pode ser moralmente justificado.

O livro de Nozick era muito mais conciso do que a “Teoria” de Rawls  e não passou despercebido; ganhou o National Book Award de 1975 e mais tarde foi listado pelo Times Literary Supplement como um dos 100 livros mais influentes do século XX. “Anarquia” continua a ser um elemento imprescindível do currículo dos cursos de teoria política, onde geralmente é o contraponto à teoria de Rawls, para sugerir que o liberalismo do estado de bem-estar social de Rawls e o libertarismo de Nozick representam todo o espectro de possibilidades que se colocam às democracias liberais contemporâneas.

No entanto, a reputação e a influência de Nozick na academia - para não falar do reconhecimento de seu nome no mundo mais amplo do direito e da política - nunca rivalizaram com as do seu colega. (Embora 15 anos mais novo que Rawls, Nozick morreu no mesmo ano, 2002, após uma longa luta contra o cancro.) Sem dúvida, parte da explicação é que o “liberalismo de esquerda” de Rawls (como ele mais tarde descreveu a sua posição) se harmoniza muito melhor com a orientação típica do ensino contemporâneo. Além disso, ao contrário de Rawls, Nozick nunca fez do desenvolvimento de uma determinada doutrina política, a preocupação unificadora de sua carreira académica. Em vez disso, o seu intelecto abrangente levou-o a continuar “Anarchy” (seu primeiro livro) com outras obras abordando uma variedade considerável de tópicos filosóficos, do livre arbítrio à teoria da decisão (no seu livro de 1989 “The Examined Life”) amor , morte, fé e o sentido da vida.

Mais importante, no entanto, “Anarquia” nunca constituiu uma verdadeira alternativa à doutrina de Rawls, uma vez que, em todas as questões substantivas, exceto na legitimidade da redistribuição governamental da riqueza, Nozick e Rawls concordaram. (E mesmo nessa questão, numa passagem normalmente ignorada pelos seus admiradores, o próprio Nozick foi evasivo.

Como a “Teoria” de Rawls, “Anarquia” começa com uma declaração abrangente da primazia da justiça – entendida, neste último livro, como direitos individuais, definidos como liberdades, isto é, a ausência de restrições externas sobre as nossas ações – sobre todos os outros critérios para avaliar políticas sociais e instituições. Em outras palavras, Nozick reteve mais ou menos o primeiro princípio de Rawls (liberdade) enquanto eliminou o segundo (diferença).

Sugerindo que “a questão fundamental da filosofia política” não é como o governo deve ser organizado, mas “se deve haver algum estado”, Nozick oferece uma adaptação da doutrina de John Locke de que o governo é legítimo apenas na medida em que oferece maior segurança pela vida, liberdade e propriedade do que existiria num “estado de natureza” caótico e pré-político. Mais enfaticamente do que Locke, no entanto, Nozick conclui que a necessidade de segurança justifica apenas um estado mínimo, ou “vigia noturno”, uma vez que não pode ser demonstrado, acredita, que todos os indivíduos racionais achariam necessário um governo mais extenso para garantir a segurança dos seus direitos.

No lugar do “princípio da diferença” de Rawls, Nozick propõe uma “teoria do direito” da justiça, segundo a qual as propriedades individuais são justificadas apenas se derivarem de aquisições justas ou transferências (voluntárias). Notavelmente, Nozick nunca especifica os critérios de aquisição justa. No entanto, em vez de visões de “corte de tempo atual” da justiça distributiva, como a de Rawls, que avalia as participações atuais de acordo com um padrão externo de equidade, Nozick afirma um padrão “histórico”, que determina a legitimidade de uma distribuição apenas porque teve origem num procedimento justo.

Nozick oferece uma crítica espirituosa e incisiva da lógica de Rawls para o seu princípio da diferença, refutando a alegação implausível de que apenas porque os membros de uma sociedade beneficiam da cooperação social, os membros menos favorecidos têm automaticamente direito a uma participação nos ganhos de seus pares mais bem-sucedidos.

O libertarismo de Nozick, que compara a tributação da renda ao trabalho forçado, sofre, no entanto, de um defeito correspondente. Nozick nunca reconhece a necessidade de um regime liberal para garantir  um certo nível de segurança social e benefícios educacionais a todos os cidadãos, na medida em que suas circunstâncias permitirem, nem que seja para garantir a lealdade contínua dos pobres a esse regime. Como Rawls, Nozick procurou impor uma visão abstrata de justiça na vida política, relegando considerações de viabilidade (isto é, de conformidade com as prováveis demandas de seres humanos reais) para serem resolvidas por outros, no espírito da máxima de Immanuel Kant, “que a justiça triunfe, ainda que, por ela, pereça o mundo”.

 Ironicamente, no entanto, o próprio Nozick finalmente reconhece que sua teoria do direito é insuficiente para refutar a necessidade de um estado redistributivo, uma vez que nunca pode ser demonstrado se as propriedades existentes derivam de uma série ininterrupta de transferências voluntárias ou se derivam de algum ato original de conquista injusta. Assim, surpreendentemente, ele acaba sugerindo que algo como o princípio da diferença de Rawls é moralmente exigido afinal, em nome da “retificação”, na duvidosa premissa de que aqueles atualmente menos favorecidos têm a maior probabilidade de serem descendentes de vítimas anteriores de injustiça.

 Esta não é a única área de acordo entre Nozick e Rawls. Como Rawls, Nozick insiste que a justiça de uma sociedade seja avaliada apenas por causa da correspondência dos seus procedimentos com as noções preferidas de justiça, e não por realmente recompensar modos de vida moralmente dignos. Também como Rawls, Nozick termina seu livro representando a sociedade justa como moralmente libertária ao extremo, negando implicitamente a legitimidade de leis que proíbem práticas como a prostituição e a venda de drogas viciantes.

 Embora tenha reparado a sua crítica às falhas que descobriu na teoria de Rawls, com uma notável homenagem à sua ostensiva “beleza”, Nozick era muito mais brilhante e um escritor muito melhor e mais instigante do que o seu colega. Infelizmente, compartilhava com Rawls uma visão restrita da filosofia política como um empreendimento dedicado à produção de teorias abstratas, com pouca ou nenhuma consideração pela fundamentação da justiça na natureza humana. Aqueles que buscam uma alternativa ao igualitarismo superficial e ao libertarismo moral de nosso tempo fariam muito melhor em retornar ao pensamento dos maiores estadistas da América, como Lincoln e os autores de “The Federalist”; aos filósofos liberais que os guiaram, nomeadamente Locke e Montesquieu, e finalmente aos maiores filósofos clássicos, para os quais a teorização política era inseparável da busca por uma séria compreensão empírica da condição humana e do bem humano.

 David Lewis Schaefer, "Robert Nozick and the Coast of Utopia," New York Sun, April 30, 2008.

 

sexta-feira, maio 19, 2023

Será que um contrato social hipotético dá alguma garantia de justiça?


 

David Seymour (Polónia, 1911/1956), 1º dia de escola, Vila de Pilis,


Analisemos agora uma experiência mental: suponhamos que, ao reunir-nos para definir os princípios, não saibamos a qual categoria pertencemos na sociedade. Imaginemo-nos cobertos por um “véu de ignorância” que temporariamente nos impeça de saber quem realmente somos. Não sabemos a que classe social ou género pertencemos e desconhecemos a nossa raça ou etnia, as nossas opiniões políticas ou crenças religiosas. Tampouco conhecemos as nossas vantagens ou desvantagens — se somos saudáveis ou frágeis, se temos alto grau de escolaridade ou se abandonámos a escola, se nascemos numa família estruturada ou numa família desestruturada. Se não possuíssemos essas informações, poderíamos realmente fazer uma escolha a partir de uma posição original de equidade. Já que ninguém estaria numa posição de negociação superior, os princípios escolhidos seriam justos. É assim que Rawls entende um contrato social — um acordo hipotético numa posição original de equidade. Rawls convida-nos a raciocinar sobre os princípios que nós — como pessoas racionais e com interesses próprios — escolheríamos caso estivéssemos nessa posição. Ele não parte do pressuposto de que todos sejamos motivados, na vida real, apenas pelo interesse egoísta; pede apenas que deixemos de lado as nossas convicções morais e religiosas para realizar essa experiência mental. Que princípios escolheríamos?

Primeiramente, raciocina, não optaríamos pelo utilitarismo. Sob o véu de ignorância, cada um de nós ponderaria: “Pensando bem, posso vir a ser membro de uma minoria oprimida.” E ninguém arriscaria ser o cristão que é atirado aos leões para o divertimento da multidão. Nem escolheríamos o simples laissez-faire, o princípio libertário que daria às pessoas o direito de ficar com todo o dinheiro que ganhassem numa economia de mercado. “Posso acabar por ser o Bill Gates”, alguém raciocinaria, “mas também posso, por outro lado, ser um sem-abrigo. Portanto, é melhor evitar um sistema que me deixe desamparado e na penúria. “

Rawls acredita que dois princípios de justiça, poderiam emergir do contrato hipotético. O primeiro oferece as mesmas liberdades básicas para todos os cidadãos, como liberdade de expressão e religião. Esse princípio sobrepõe-se a considerações sobre utilidade social e bem-estar geral. O segundo princípio refere-se à equidade social e económica. Embora não requeira uma distribuição igualitária de renda e riqueza, ele permite apenas as desigualdades sociais e económicas que beneficiam os membros menos favorecidos de uma sociedade. Os filósofos questionam se os participantes do contrato social hipotético de Rawls escolheriam os princípios que ele afirma que escolheriam. Mais à frente veremos por que Rawls acha que esses dois princípios seriam escolhidos. Mas, antes de abordar os princípios, analisemos uma questão anterior a essa: A experiência hipotética de Rawls é a maneira correta de abordar a questão da justiça? Como podem princípios da justiça resultar de um acordo que jamais aconteceu de fato?

Michael Sandel, Justiça, Lx, Presença, pp.150, 151


sábado, maio 06, 2023

Considere-se a cooperação social...



Susan Meiselas, prisão e documentação de um rapaz de 12 anos, fronteira do México, 1989, USA



Considere-se de novo a ideia de cooperação social. Como se irão determinar os justos termos da cooperação? Serão, simplesmente, estabelecidos por uma autoridade externa, distinta das pessoas que cooperam entre si? Serão, por exemplo, estabelecidos por uma lei divina? Ou serão esses termos reconhecidos como justos pelas pessoas que cooperam, tomando como referência o seu conhecimento de uma ordem moral independente? Por exemplo, serão reconhecidos como termos exigidos pela lei natural ou pela esfera de valores conhecida por intuição racional? Ou serão esses termos estabelecidos através de uma aceitação por parte das próprias pessoas á luz daquilo que consideram a sua vantagem recíproca? (…)

A justiça como equidade reformula o contrato social e adota a última das hipóteses consideradas os justos termos da cooperação social são concebidos entre aqueles que nela se envolvem, isto é, por cidadãos livres e iguais que nascem na sociedade em que passam toda a sua vida. Mas o seu acordo, como qualquer outro acordo válido, deve ser firmado em condições apropriadas.

John Rawls, O liberalismo político, p.49 (adaptado).


sexta-feira, abril 21, 2023

Nós, os Refugiados



Em primeiro lugar, não gostamos de ser chamados “refugiados”. Chamamo-nos uns aos outros “recém-chegados” ou “imigrantes”. Os nossos jornais são jornais para “americanos de língua alemã”; e, tanto quanto sei, não há e nunca houve qualquer clube fundado pelos perseguidos por Hitler cujo nome indicasse que os seus membros são refugiados.
Um refugiado costuma ser uma pessoa obrigada a procurar refúgio devido a algum ato cometido ou por tomar alguma opinião política.
Bom, é verdade que tivemos que procurar refúgio; mas não cometemos nenhum ato e a maioria de nós nunca sonhou em ter qualquer opinião política radical. O sentido do termo “refugiado” mudou connosco. Agora “refugiados” são aqueles de nós que chegaram à infelicidade de chegar a um novo país sem meios e tiveram que ser ajudados por comités de refugiados.
Antes desta guerra começar éramos ainda mais sensíveis quanto ao sermos chamados refugiados. Demos o nosso melhor para provar aos outros que éramos apenas imigrantes comuns. Afirmávamos que tínhamos partido pela nossa própria vontade para países da nossa escolha e negávamos que a nossa situação tivesse algo a ver com “supostos problemas judaicos”. Sim, éramos “imigrantes” ou “recém-chegados” que tínhamos deixado o nosso país porque, num belo dia, não nos convinha mais ficar, ou puramente por razões económicas. Queríamos reconstruir as nossas vidas, isso era tudo. De modo a reconstruir a vida tem que se ser forte e otimista. Portanto, éramos bastante otimistas.

Com efeito, o nosso otimismo é admirável, mesmo que sejamos nós a dizê-lo. A história da nossa luta finalmente tornou-se conhecida. Perdemos a nossa casa o que significa a familiaridade da vida quotidiana. Perdemos a nossa ocupação o que significa a confiança de que tínhamos algum uso neste mundo. Perdemos a nossa língua o que significa a naturalidade das reações, a simplicidade dos gestos, a expressão impassível dos sentimentos. Deixámos os nossos familiares nos guetos polacos e os nossos melhores amigos foram mortos em campos de concentração e tal significa a rutura das nossas vidas privadas.
Não obstante, logo que fomos salvos – e a maioria de nós teve que ser salvo várias vezes – começámos a nossas novas vidas e tentávamos seguir tão próximo quanto possível todos os bons conselhos que os nossos salvadores nos transmitiram. Foi-nos dito; e esquecemos mais rápido do que alguém poderia imaginar. De um modo amigável foi-nos lembrado que o novo país tornar-se-ia uma nova casa; e depois de quatro semanas em França ou seis semanas na América, fingiríamos ser franceses ou americanos. Os mais otimistas entre nós teriam mesmo acrescentado que toda a sua vida anterior teria sido passada numa espécie de exílio inconsciente e apenas o seu novo país lhes ensinaria agora com o que se parece uma casa. É verdade que por vezes levantámos objeções quando nos disseram para esquecer o nosso trabalho anterior; e, logo que o nosso estatuto social está em jogo é-nos extremamente difícil desembaraçarmo-nos dos nossos ideais. Com a língua, contudo, não encontramos dificuldades: depois de um único ano os otimistas estavam convencidos que falavam inglês tão bem quanto a sua língua materna; e depois de dois anos juravam solenemente que falavam inglês melhor do que qualquer outra língua – o seu alemão é uma língua que dificilmente lembram.
De modo a esquecer mais eficientemente preferíamos evitar qualquer alusão aos campos de concentração ou de internamento que experienciámos em quase todos os países europeus – poderia ser interpretado como pessimismo ou falta de confiança na nossa nova pátria.
Além disso, quão frequentemente nos foi dito o que ninguém gosta de ouvir de todo; o inferno não é mais uma crença religiosa ou uma fantasia, mas algo tão real quanto as casas, as árvores e as pedras. Aparentemente ninguém quer saber que a história contemporânea criou um novo tipo de seres humanos – o tipo dos que são postos em campos de concentração pelos seus inimigos e nos campos de internamento pelos seus amigos.

Hannah Arendt, Nós, os refugiados, 
Tradutor: Ricardo Santos, Lusosofia

domingo, abril 09, 2023

Carmo D'Orey

Faleceu dia 3 de abril, a professora Carmo D'Orey, uma das professoras que mais me marcou. Deu-me a disciplina de Hermenêutica na Faculdade de Letras de Lisboa e, por causa dela, adorei Hermenêutica e ainda adoro.  À procura de uma foto, não encontrei nenhuma, apesar de ser uma mulher elegantíssima, detestava ser fotografada e era tão discreta que só os seus livros encontramos na NET. 

Professora, descanse em paz.

Ler Obituário AQUI

sábado, abril 08, 2023

Senso comum e conhecimento científico


William, Keo, Norte de Mykolaiv, Ternivka; Edifícios destruídos pela aviação russa, Ucrânia, 11 de Março 2022


Entre o conhecimento comum e o conhecimento cientifico a rutura nos parece tão nítida que estes dois tipos de conhecimento não poderiam ter a mesma filosofia. O empirismo é a filosofia que convém ao conhecimento comum. O empirismo encontra aí sua raiz, as suas provas, o seu desenvolvimento. Ao contrário, o conhecimento científico é solidário com o racionalismo e, quer se queira ou não, racionalismo está ligado a. ciência, o racionalismo reclama fins científicos. Pela atividade cientifica, o racionalismo conhece uma atividade dialética que prescreve uma extensão constante dos métodos. Desde então, quando o conhecimento vulgar e o conhecimento científico registram o mesmo fato, este mesmo fato não tem certamente o mesmo valor epistemológico nos dois conhecimentos. Que o "odor" da eletricidade seja um desinfetante e que o ozônio seja um poderoso oxidante que desinfeta, não há entre estes dois conhecimentos uma mudança de valor de conhecimento? De um facto verdadeiro, a química teórica fez um conhecimento verídico. Por ele só, este duplo sentido  do verdadeiro e do verídico retém a ação polar do conhecimento. Este duplo sentido permite reunir os dois grandes valores epistemológicos que explicam a fecundidade da ciência contemporânea. A ciência contemporânea é feita da pesquisa dos fatos verdadeiros e da síntese das leis verídicas. As leis verídicas da ciência têm uma fecundidade de verdades, elas prolongam as verdades de fato por verdades de direito. O racionalismo pelas suas sínteses do verdadeiro abre uma perspetiva de descobertas. O materialismo racionalista, depois de ter acumulado os factos verdadeiros e organizado as verdades dispersadas, ganhou uma surpreendente força de previsão. A ordenação das substâncias apaga progressivamente a contingência de seu ser, ou. em outras palavras, cada ordenação suscita descobertas que preenchem as lacunas que faziam acreditar na contingência do ser material. Apesar de suas riquezas aumentadas, suas riquezas transbordantes. a química se ordena num vasto domínio de racionalidade. E não é a menor lição da química contemporânea nos mostrar, além do racionalismo da identidade, a racionalidade do múltiplo.

Gaston Bachelard, Le Matérialisme rationnel, 1953, pp

sexta-feira, março 17, 2023

O carácter dogmático da pesquisa científica

 


Adolescentes ucranianas partilham um cobertor na fronteira com a Roménia, Março 2022 
 Foto de Ioana Moldovan

" São estas as características da investigação normal que eu tinha em vista quando, no começo deste ensaio, descrevia a pessoa envolvida nela como um solucionador de puzzles, à maneira de um jogador de xadrez. O paradigma que ele adquiriu graças a uma preparação prévia fornece-lhe as regras do jogo, descreve as peças com que se deve jogar e indica o objetivo que se pretende alcançar. A sua tarefa consiste em manipular as peças segundo as regras, de maneira a que seja alcançado o objetivo em vista. Se ele falha, como acontece com a maioria dos cientistas, pelo menos na primeira tentativa de alcançar um problema, esse fracasso só revela a sua falta de habilidade. As regras fornecidas pelo paradigma não podem então ser postas em causa, uma vez que sem essas regras começaria por não haver puzzle para resolver. Não haja portanto dúvidas de que os problemas (ou puzzles), pelos quais o praticante da ciência madura normalmente se interessa, pressupõem a adesão profunda a um paradigma. E é uma sorte que essa adesão não seja abandonada com facilidade. A experiência mostra que, em quase todos os casos, os esforços repetidos, quer do indivíduo quer do grupo profissional, acabam finalmente por produzir, dentro do âmbito do paradigma, uma solução, mesmo para os problemas mais difíceis. Esta é uma das maneiras como a ciência avança. Nessas condições será de nos surpreendermos com a resistência dos cientistas à mudança de paradigmas? O que eles defendem é, no fim de contas, nem mais nem menos do que a base do seu modo de vida profissional.

Chegando aqui, uma das principais vantagens do que comecei por chamar "o dogmatismo científico" deve ser evidente. Como uma rápida vista de olhos a qualquer ciência mostra, a natureza é demasiado complexa para ser explorada ao acaso, mesmo de maneira aproximada. Tem que existir algo que diga ao cientista onde procurar e por que procurar, e esse algo que pode muito bem não durar mais que uma geração, é o paradigma que lhe foi fornecido pela sua educação de cientista. Em virtude desse paradigma e da necessária confiança nele, o cientista deixa em grande parte de ser um explorador, pelo menos de ser um explorador do desconhecido. "

Thomas Kuhn, A função do dogma na investigação científica, Lx, 1979, A regra do Jogo, pp 65,66

sexta-feira, março 10, 2023

O critério de objetividade científica.


 

Jérôme SessiniPrédios residenciais em Borodyanka destruídos por misseis russos

Ucrânia,  9 Abril 9, 2022, 

“É totalmente errado admitir que a objetividade da ciência está dependente da objetividade do cientista. Assim como é totalmente errado pensar que há maior objetividade, a nível individual, nas ciências da natureza, do que nas ciências sociais. O cientista da natureza é tão parcial quanto qualquer outro indivíduo e infelizmente – se não pertencer ao pequeno número dos que estão continuamente a produzir novas ideias -, é conquistado normalmente, de uma forma unilateral e parcial, pelas suas próprias ideias. Alguns dos mais destacados físicos contemporâneos fundaram inclusivamente escolas que opõem uma forte resistência a qualquer ideia nova.

Aquilo que se pode designar por objetividade científica encontra-se única e exclusivamente na tradição crítica, na tradição que, mau grado todas as resistências, permite muitas vezes criticar um dogma dominante. Dito de outro modo, a objetividade da ciência não é uma questão individual dos diversos cientistas, mas antes uma questão social da sua crítica recíproca, da divisão de trabalho, amistoso-hostil, dos cientistas, da sua colaboração, mas também das guerras entre si. Está, por conseguinte, dependente em parte de todo o conjunto de circunstâncias, sociais e políticas, que tornam possível tal crítica. (…)

Numa discussão crítica distinguem-se questões como: (1) a questão da verdade de uma asserção; a questão da sua relevância, do seu interesse e do seu significado relativamente aos problemas em causa. (2) A questão da sua relevância, do seu interesse e do seu significado relativamente a diversos problemas extra-científicos , como por exemplo o problema do bem estar humano, ou ainda, o problema completamente distinto da defesa interna, de uma política ofensiva nacional,  do desenvolvimento industrial, ou do enriquecimento pessoal.

É obviamente impossível dissociar esses interesses extra-científicos da investigação científica; tal como é igualmente inviável, dissocia-los da investigação quer na área das ciências da natureza – no campo da física, por exemplo – quer na área das ciências sociais.

O que é possível e importante e que confere à ciência o seu carácter específico não é a eliminação, mas antes a distinção entre os interesses não inerentes à procura da verdade e o interesse puramente científico pela verdade. No entanto, se bem que a verdade constitua o valor científico essencial, não é o único. A relevância, o interesse e o significado de uma asserção relativamente à formulação puramente científica de um problema constituem igualmente valores científicos de primeira ordem, do mesmo modo que o são a inventividade, a capacidade de esclarecimento, a simplicidade e a precisão. (…)

…uma das tarefas da crítica e da discussão científicas é a de lutar contra a confusão das esferas de valores e, em particular, eliminar as valorações extra-científicas das questões relativas à verdade. (…) O cientista objetivo e despido de valores não é o cientista ideal. Sem paixão nada avança, e muito menos a ciência pura. A expressão “amor à verdade” não é uma mera metáfora.

Portanto, não só a objetividade e o despojamento de valores são praticamente inacessíveis ao cientista, como também essa objetividade e esse despojamento são já em si valores. E sendo o despojamento de valores ele mesmo um valor, a exigência desse despojamento constitui um paradoxo."

Karl Popper, Em busca de um mundo melhor, Lx, 1989, Ed. Fragmentos, pp77,78,79



quarta-feira, março 08, 2023

A verdade e a crítica como valores científicos

 


Jerôme Sessini, Março, 2022, Ucrânia,
 Mulher a evacuar de Irpin

“Estamos, pois, constantemente em busca de uma teoria verdadeira (uma teoria verdadeira e relevante), ainda que não possamos nunca dar razões (razões positivas) para mostrar que encontrámos realmente a teoria verdadeira que buscávamos. Ao mesmo tempo, podemos ter boas razões – isto é, boas razões críticas – para pensar que aprendemos algo de importante: que progredimos em direção à verdade. Pois podemos, primeiro, ter aprendido que uma determinada teoria não é verdadeira segundo o estado presente da discussão crítica; e, em segundo lugar, podemos ter encontrado algumas razões provisórias para acreditar (sim, até para acreditar) que uma teoria nova se aproxima mais da verdade que as suas antecessoras.

Para ser menos abstrato, vou dar um exemplo histórico.

As teorias de Einstein foram muito discutidas pelos filósofos, mas poucos salientaram o importante facto de que Einstein não acreditava que a relatividade especial fosse verdadeira: logo desde o início, ele chamou a atenção para o facto de ela poder ser, quando muito, apenas uma aproximação (já que era válida apenas para o movimento não-acelerado). Encaminhou-se, assim, para uma aproximação maior, a relatividade geral. E, mais uma vez, fez notar, que essa teoria também não podia ser verdadeira, mas sim somente uma aproximação. De facto, buscou uma melhor aproximação durante quase 40 anos, até à sua morte.(…)

Einstein buscou a verdade, e pensou ter razões -razões críticas- que lhe indicavam que não a tinha encontrado. Ao mesmo tempo, deu, ele e muitos outros, razões críticas que indicaram que tinha feito grandes progressos na direção da verdade que as suas teorias resolviam problemas que as respetivas antecessoras não eram capazes de resolver, e que se aproximavam mais da verdade do que as suas rivais conhecidas.

Este exemplo pode apoiar a minha afirmação de que ao substituir o problema da justificação pelo problema da crítica não precisamos de abandonar nem a teoria clássica da verdade como correspondência com os factos, nem a aceitação da verdade como um dos nossos padrões da crítica. Outros valores são a relevância para os nossos problemas e o poder explicativo.

Por conseguinte, ainda que eu mantenha de que o que é mais frequente é nós não encontrarmos a verdade, e não sabermos sequer quando é que a encontrámos, retenho a ideia clássica de verdade absoluta ou objetiva como ideia reguladora; quer isto dizer, como padrão em relação ao qual nos podemos posicionar abaixo.”

Karl Popper, O realismo e o objetivo da ciência, Lx, 1992, Dom Quixote, pp 58,59

 

 

sexta-feira, fevereiro 24, 2023

A refexão moral exige um interlocutor

 


Pierre-Auguste Renoir, O almoço dos barqueiros (1881), França


“Podemos começar por observar como a reflexão moral surge naturalmente de um encontro com uma questão moral difícil. Podemos partir de uma opinião ou convicção sobre o que é certo fazer: “Desviar o elétrico para outra linha.” Depois refletimos na razão da nossa convicção e procuramos o princípio em que se baseia: “É melhor sacrificar uma vida para evitar que muitos morram”. De seguida, confrontados com uma situação que ameaça o princípio, somos atirados para a confusão: “Pensei que era sempre certo salvar o maior número de vidas possível, mas parece-me errado empurrar o homem da ponte (…)”. Sentir a força desta confusão, bem como a pressão para resolvê-la, é o impulso para a filosofia.

Confrontados com esta tensão, podemos rever o nosso juízo sobre o que é certo fazer ou repensar o princípio que propusemos inicialmente. À medida que vamos encontrando novas situações, movimentamo-nos entre os nossos juízos e os nossos princípios, revendo os primeiros à luz dos segundos e vice-versa. A reflexão moral consiste neste movimento do pensamento: ir do mundo da ação para a esfera das razões, e depois regressar ao primeiro.

Esta forma de conceber a argumentação moral, como uma dialética entre os nossos juízos sobre situações particulares, e os princípios que afirmamos refletidamente, tem uma grande tradição. Recua aos diálogos de Sócrates e à filosofia moral de Aristóteles. Mas, apesar da sua longa linhagem, está sujeita à seguinte objeção: Se a reflexão moral consiste em procurar um ajuste entre os juízos que fazemos e os princípios que afirmamos, como poderá levar-nos à justiça ou à verdade moral? Mesmo que, ao longo da vida, consigamos por as nossas intuições morais de acordo com os princípios que aceitamos, como poderemos confiar que o resultado seja mais que um emaranhado consistente de preconceitos?

A resposta é que a reflexão moral é uma atividade pública, não uma ocupação solitária. Exige um interlocutor: um amigo, um vizinho, um colega, um concidadão. Por vezes o interlocutor pode ser imaginário, como quando discutimos connosco mesmos. Mas não podemos descobrir o significado da justiça ou a melhor forma de viver apenas por introspeção.

Michael J. Sandel, Justiça: o que será certo fazer? Lisboa, Presença, pp. 28-29

domingo, fevereiro 12, 2023

A comunidade como origem e garantia dos direitos humanos individuais.

 


Quanto mais elevado era o número de pessoas sem direitos, maior era a tentação de olhar menos para o procedimento dos governos opressores e mais para a condição dos oprimidos. E era clamoroso que essas pessoas, embora perseguidas por algum pretexto político, já não constituíssem, como sempre acontecia com os perseguidos no decorrer da história, um risco e uma imagem vergonhosa para os opressores; não eram consideradas, nem pretendiam ser, inimigos ativos, mas eram e não pareciam ser outra coisa senão seres humanos cuja própria inocência — de qualquer ponto de vista e especialmente do ponto de vista do governo opressor — era o seu maior infortúnio. A inocência, no sentido de completa falta de responsabilidade, era a marca da sua privação de direitos e o selo da sua perda de posição política. Portanto, só aparentemente a necessidade da imposição dos direitos humanos se relaciona com o destino dos autênticos refugiados políticos. Estes, necessariamente pouco numerosos, ainda gozam do direito de asilo em muitos países, e esse direito age, de maneira informal, como genuíno substituto da lei nacional. Um dos aspetos surpreendentes da nossa experiência com os apátridas que podem beneficiar-se legalmente com a perpretação de um crime é o fato de que parece mais fácil privar da legalidade uma pessoa completamente inocente do que alguém que tenha cometido um crime. Assumiu uma horrível realidade o famoso chiste de Anatole France — "se eu for acusado de roubar as torres de Notre Dame, a única coisa que posso fazer é fugir do país". Os juristas habituaram-se a pensar na lei em termos de castigo, o que realmente nos priva de certos direitos; para eles pode ser mais difícil que para um leigo reconhecer que a privação da legalidade, isto é, de todos os direitos, já não se relaciona com crimes específicos.

 

Essa situação é um exemplo das muitas perplexidades inerentes ao conceito dos direitos humanos. Não importa como tenham sido definidos no passado (o direito à vida, à liberdade e à procura da felicidade, de acordo com a fórmula americana; ou a igualdade perante a lei, a liberdade, a proteção da propriedade e a soberania nacional, segundo os franceses); não importa como se procure aperfeiçoar uma fórmula tão ambígua como a busca da felicidade, ou uma fórmula antiquada como o direito indiscutível à propriedade; a verdadeira situação daqueles a quem o século XX jogou fora do âmbito da lei mostra que esses são direitos cuja perda não leva à absoluta privação de direitos. O soldado, durante a guerra, é privado do seu direito à vida; o criminoso, do seu direito à liberdade; todos os cidadãos, numa emergência, do direito de buscarem a felicidade; mas ninguém dirá jamais que em qualquer desses casos houve uma perda de direitos humanos. Por outro lado, esses direitos podem ser concedidos (se não usufruídos) mesmo sob condições de fundamental privação de direitos. A calamidade dos que não têm direitos não decorre do fato de terem sido privados da vida, da liberdade ou da procura da felicidade, nem da igualdade perante a lei ou da liberdade de opinião — fórmulas que se destinavam a resolver problemas dentro de certas comunidades — mas do fato de já não pertencerem a qualquer comunidade.

A sua situação, angustiante, não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles, nem que seja para oprimi-los. Só no último estágio de um longo processo, o seu direito à vida é ameaçado; só se permanecerem absolutamente "supérfluos", se não se puder encontrar ninguém para "reclamá-los", as suas vidas podem correr perigo. Os próprios nazis começaram a sua exterminação dos judeus privando-os, primeiro, de toda condição legal (isto é, da condição de cidadãos de segunda classe) e separando-os do mundo para juntá-los em guetos e campos de concentração; e, antes de acionarem as câmaras de gás.

 

                                                                              Hannah Arendt, As origens do totalitarismo, p.308

 

domingo, fevereiro 05, 2023

Há 62 anos era assim... hoje...continua

 


“Tive de acabar por deixar as estradas escondidas entre as árvores e fazer o meu melhor para atravessar as cidades, como Hartford e Providence, que são grandes cidades, afadigando-se nas fábricas, enxameando de trânsito. Leva muito mais tempo a atravessar as cidades do que a percorrer várias centenas de milhas. E no intrincado esquema de trânsito, enquanto tentamos encontrar o caminho através delas, não há possibilidade de vermos nada. Mas agora que atravessei centenas de cidadezinhas e de grandes cidades com todos os climas e em toda a espécie de cenários, claro que são todas diferentes e que as pessoas têm pontos de diferença, mas em alguma coisa são todas iguais. As cidades americanas são como buracos de texugo, rodeadas, todas elas, de retalho, cercadas por pilhas de automóveis a enferrujar, e quase asfixiadas em refugo. Tudo quanto usamos vem em caixas, caixinhas e caixotes, as chamadas embalagens de que tanto gostamos. Os montes de coisas que deitamos fora são muito maiores do que as coisas que usamos. Nisto, se não por outro meio, podemos ver a exuberância desenfreada e perdulária da nossa produção, e o desperdício parece ser o seu índice. Seguindo o meu caminho, pensava como em França e na Itália cada uma destas coisas deitada fora seria guardada e aproveitada para alguma coisa. Isto não é dito como crítica de um sistema ou do outro, mas pergunto a mim mesmo se não virá um tempo em que já não possamos permitir-nos o nosso desperdício – desperdícios químicos nos rios, desperdícios de metais por toda a parte, e desperdícios atómicos profundamente sepultados na terra ou afundados no mar. Quando uma aldeia índia ficava demasiado enterrada na sua própria imundice, os habitantes mudavam de lugar. Mas nós não temos lugar para onde mudar.

John Steinbeck, Viagens com o Charlie, livros do Brasil, Lx


 

sexta-feira, janeiro 13, 2023

Intolerância para com a intolerância


Foto Carolyn Drake

À questão " deverá o tolerante tolerar o intolerante?", deveria ser dado em resposta um retumbante "não".

A tolerância tem de se proteger a si própria. Pode fazê-lo facilmente, dizendo que todos podem expor um ponto de vista mas ninguém  pode forçar os outros  a aceitá-lo. A única coerção deve ser a da argumentação ; a única obrigação , o raciocínio honesto. (...)

A intolerância é um fenómeno psicologicamente interessante  porque é sintomático de insegurança e medo. Os fanáticos, que, se pudessem, nos obrigariam a agir em conformidade com o seu modo de pensar, poderiam pretender  estar a tentar salvar a nossa alma, mesmo contra a nossa vontade, mas, na verdade, fá-lo-iam porque se sentiam ameaçados. (...) O medo gera a intolerância e a intolerância gera o medo: o ciclo é vicioso.

C. Grayling, O significado das coisas, Gradiva, pp 23-24

domingo, janeiro 08, 2023

Como a perspetiva anula a hierarquia

 


Estátua de Púchkin em Moscovo (1880)


 “ Ao monumento a Púchkin estava ligado um jogo, o meu jogo: encostar ao seu pedestal um boneco de porcelana branca, do tamanho de um mindinho infantil - vendiam-se nas lojas de loiça, quem cresceu em Moscovo no fim do século passado, sabe: havia anões debaixo dos cogumelos, havia crianças sob os guarda-chuvas - , encostar portanto ao pedestal do gigante esta figurinha e, passando o olhar, pouco a pouco, por toda a altura do monumento até que a cabeça ficasse lançada para trás ao máximo, comparar a estatura, (…) O monumento de Púchkin comigo debaixo dele e a figurinha debaixo de mim era a minha primeira lição prática de hierarquia: eu sou um gigante perante a figurinha, mas perante o Púchkin sou eu própria, ou seja uma menina pequena. Mas que crescerá. Para a figurinha, sou a mesma coisa que o monumento de Púchkin para mim. Mas o que será, então, o monumento de Púchkin para a figurinha? E, depois de reflexões dolorosas, surgiu uma repentina luz: é para ela tão grande que, simplesmente, não o vê. Pensa que é uma casa. Ou um trovão. Ora, ela para ele é tão pequena que também não a vê, acabou-se. Pensa ele: é uma pulga. Mas a mim ele vê. Porque sou grande e gorda. E crescerei ainda mais.”

Marina Tsvetaeva, Moscovo 1892/1941

Citada por Maria Stepánova in Memória da memória, Relógio d’Água, 2022, p.79

Este texto causou-me uma forte impressão, talvez por ter duas informações prévias: que a estátua de Púchkin em Moscovo é um monumento gigantesco de 1880, visitado por turistas, imagem de marca de uma certa cultura do esmagamento soviética e, que Tsvetaeva morreu na miséria, porque nem um emprego de lavadora de pratos lhe deram, condenada e excomungada pela ditadura estalinista (uma das filhas morreu de fome, o marido foi fuzilado).  Depois disto, compreendo como não faz sentido a perspetiva do poder, como ela aniquila e branqueia a realidade de modo a retirar-lhe cor e espessura. A surpresa do jogo das hierarquias é mesmo a invisibilidade do pequeno e do grande e, deste modo, a  destruição da verdade da hierarquia. 

sexta-feira, dezembro 16, 2022

Agir é modificar a face do mundo,

Mariola Landowska, Meninas II,


" Agir é modificar a face do mundo, é dispor dos meios em vista de um fim, é produzir um complexo instrumental e organizado de tal modo que, por uma série de encadeamentos e de ligações, a modificação incutida num dos elos produza modificações em toda a série e, por fim, produza um resultado imprevisto. (...) Convém de facto notar que uma ação é, por princípio, intencional. O fumador desastrado que fez explodir inadvertidamente um paiol não agiu. Em contrapartida, o encarregado de dinamitar uma pedreira e que obedeceu às ordens dadas agiu quando provocou a explosão prevista:  sabia na realidade o que fazia ou, se preferirmos,  realizava intencionalmente um projeto consciente. Isto não significa, claro está, que devamos prever todas as consequências dos nossos atos: o imperador Constantino não previa, ao instalar-se em Bizâncio, que iria
criar uma cidade de cultura e de língua gregas, cujo aparecimento haveria de provocar um cisma na Igreja cristã e contribuir para enfraquecer o Império romano. No entanto, fez um ato na medida em que realizou o seu projeto de criar uma nova residência no Oriente para os imperadores.

Toda a ação deve ser intencional: ela deve ter um fim e o fim, por seu turno, refere-se a um motivo. Tal é, na realidade, a unidade dos três momentos temporais: o fim ou futuro implica um movimento (ou móbil) que remete ao meu passado e o presente é o surgimento do ato."

Jean - Paul -Sartre, O ser e o nada, São Paulo, Vozes, s.d

quarta-feira, novembro 30, 2022

Cultivar a filosofia como se cultiva uma planta para embelezar o jardim

 


Ben Shahn, Libertação, EUA,1945

O mero filósofo é geralmente uma personalidade pouco admissível no mundo, pois supõe -se que ele em nada contribui para o benefício ou para o prazer da sociedade, porquanto vive distante de toda comunicação com os homens e envolto em princípios e noções igualmente distantes da sua compreensão. Por outro lado, o mero ignorante é ainda mais desprezado, pois não há sinal mais seguro de um espírito grosseiro, numa época e uma nação em que as ciências florescem, do que permanecer inteiramente destituído de toda espécie de gosto por estes nobres entretenimentos. Supõe-se que o caráter mais perfeito se encontra entre estes dois extremos: conserva igual capacidade e gosto para os livros, para a sociedade e para os negócios; mantém na conversação discernimento e delicadeza que nascem da cultura literária; nos negócios, a probidade e a exatidão que resultam naturalmente de uma filosofia conveniente. Para difundir e cultivar um caráter tão aperfeiçoado, nada pode ser mais útil do que as composições de estilo e modalidade fáceis, que não se afastam em demasia da vida, que não requerem, para ser compreendidas, profunda aplicação ou retraimento e que devolvem o estudante para o meio de homens plenos de nobres sentimentos e de sábios preceitos, aplicáveis em qualquer situação da vida humana. Por meio de tais composições, a virtude toma -se amável, a ciência agradável, a companhia instrutiva e a solidão um divertimento.

O homem é um ser racional e, como tal, recebe da ciência sua adequada nutrição e alimento. Mas os limites do entendimento humano são tão estreitos que pouca satisfação se pode esperar neste particular, tanto pela extensão como pela segurança de suas aquisições. O homem é um ser sociável do mesmo modo que racional. No entanto, nem sempre pode usufruir de uma companhia agradável e divertida ou conservar o gosto adequado para ela. O homem é também um ser ativo, e esta tendência, bem como as várias necessidades da vida humana,  submete-o necessariamente aos negócios e às ocupações; todavia, o espírito precisa de algum repouso, já que não pode manter sempre sua inclinação para o cuidado e o trabalho. Parece, pois, que a Natureza indicou um género misto de vida como o mais apropriado à raça humana, e que ela secretamente advertiu aos homens de não permitirem a nenhuma destas tendências arrastá-los em demasia, de tal modo que os torne incapazes para outras ocupações e entretenimentos. Tolero a vossa paixão pela ciência, diz ela, mas fazei com que vossa ciência seja humana de tal modo que possa ter uma relação direta com a ação e a sociedade. Proíbo-vos o pensamento abstruso e as pesquisas profundas; punir-vos-ei severamente pela melancolia que eles introduzem, pela incerteza sem fim na qual vos envolvem e pela fria receção que os vossas supostas descobertas encontrarão quando comunicados. Sede um filósofo, mas, no meio de toda a vossa filosofia, sede sempre um homem.

David Hume, Ensaio sobre o entendimento, Secção 

Tradução: Anoar Aiex 

Créditos da digitalização: Membros do grupo de discussão Acrópole, edição eletrónica.


Cultivar a Filosofia como se cultiva uma planta, não a afastando da luz mas não a expondo ao Sol forte; ter cuidado na sua rega, nutri-la de água mas não a afogar com demasiada água. Assim, com a Filosofia, o mesmo, analogamente, cultivá-la, desenvolvê-la mas com composições fáceis e entroncadas em problemas vitais e próximos dos alunos. Aqui, abre-se uma questão: quais serão, para os alunos de filosofia do secundário, os "problemas vitais e próximos"?  Problemas que possam ser discutidos fora da esfera particular de cada um e que possam interessar enquanto problemas universais? No 10º Ano alguns problemas éticos se colocados de uma forma um pouco escandalosa , suscitam aceso debate. Lembro-me de uma aula no ano passado, em que, com a minha turma de Humanidades, discutimos a excisão, colocando os alunos com papeis distintos face ao problema. Não é o problema que os afeta, pois todos eles o consideram um problema de gente distante que nada tem a ver com eles, mas o jogo de pensarem de uma certa maneira, de se colocarem na pele de outra pessoa e de poderem pensar que estão em risco e que dependem do seu discurso para se salvarem ou para ultrapassarem esse risco. É o lado do jogo, da  brincadeira ou "faz de conta" que os entusiasma para a discussão e a invenção de novos pontos de vista racionais. O " "Faz de conta", o jogo, a diversão dá-nos uma elasticidade mental que, posso julgar, como cerne da civilidade e este tipo de jogo em que se discute co razões e se é obrigado a ouvir e a expor é a essência da filosofia e a verdadeira aprendizagem do ser filósofo. 

Talvez os alunos do secundário sejam demasiado imaturos para pensar seriamente os problemas filosóficos, ou talvez que pensar seriamente não seja desejável como meta, Hume  alerta-nos para as posições radicais, pois o do pensamento radical pode não interessar ao filósofo na medida em que o afasta, o submerge, o torna incompreensível para os demais, neste sentido, estou nesta linha de pensamento, havemos de ser filósofos enquanto saibamos cultivar o interesse pelas questões científicas e culturais e pelo jogo da conversação racional. A filosofia pode ser um instrumento poderoso para desenvolver essa razoabilidade nos alunos afastando-os de um certo fundamentalismo nas sua opiniões.

Helena Serrão


sexta-feira, novembro 25, 2022

sexta-feira, novembro 18, 2022

A filosofia na escola


 Wayne Miller, Crianças num teatro, 1958, EUA

Dicionários corretos, inspiradores, mas inúteis, definem “filosofia” como o “amor da sabedoria”, mas uma definição melhor seria “investigação reflexiva e crítica”. A filosofia é, naturalmente, um assunto, bem como um processo, embora seja um conceito muito abrangente: as suas duas grandes questões são: O que há? Estas questões em conjunto, de forma imediata convidam a uma série de perguntas sobre o conhecimento, a verdade, a razão, o valor, a mente e muito mais, que constituem o núcleo deste empreendimento. Os nossos esforços para atingir a compreensão nestes assuntos requerem o tipo de pensamento que é distintamente filosófico: questionamento, sondagem, crítica, reflexão, rigor, exigência, inquietação, aceitando que pode haver várias respostas ou nenhuma e, portanto, aceitando a textura aberta da investigação onde raramente há uma solução simples para um problema e quase nunca o seu encerramento. Mentes experientes nesse tipo de pensamento são geralmente resistentes à rápida fixação da ideologia e do dogma, e têm uma  saudável propensão para examinar, com um olhar claro e, quando necessário cético, tudo o que for colocado diante deles.

A investigação deste tipo é, obviamente, um processo altamente exportável; a sua prática constitui o que hoje se chama de “competência transversal”. Só por isso a filosofia deve ser uma característica central e contínua do currículo escolar desde tenra idade, porque (como mostram algumas das atuais discussões) potencializa imediatamente os alunos para trabalharem em outras áreas temáticas. Há um ponto de vista que defende que a educação deveria ser mais sobre ensinar as crianças a obter e avaliar informações do que a transmitir informações pré-digeridas - pelo menos depois de já terem os conhecimentos de literacia, numerologia e estrutura que fornecem a base necessária sobre a qual se pode construir o treino do pensamento e pesquisa. A filosofia é, por excelência, quem oferece a parte avaliadora deste processo. E porque não é apenas reflexão crítica e construção de bons argumentos, mas também é sobre questões substantivas - na moral, na epistemologia, na lógica, e judicialmente em relação às reivindicações, suposições e metodologias de todas as outras áreas de investigação mais específicas, como por exemplo na área da natureza e ciências sociais e humanas - o treino no pensar fornece uma série de “iluminações” e compreensão em muitos áreas além destas. Num curriculum dedicado à aquisição de conhecimento e técnica, tem que haver tempo para refletir sobre o que tudo isso significa, para que serve e por que é importante, e isso é, também, o campo específico da filosofia.

A.C Grayling, Thinking of answers, London,2010, Bloomsbury, pp 245,246