quarta-feira, julho 09, 2025

Os homens são supérfluos?

 


Alex Webb CHINA. Chongqing. 2017. Nadadores em Yangtze. 

“A essência do totalitarismo, e talvez da burocracia, é transformar os homens em funcionários, em meras peças da máquina administrativa, ou seja, desumanizá-los. A forma política conhecida pelo nome de burocracia corresponde, em última análise, ao domínio de ninguém.”[1] 

Cf. Arendt, Eichmann em JerusalémEJ, p.371.

 

A questão da banalidade do mal está, segundo Arendt necessariamente associada à “ausência de pensamento”. Esta “ausência de pensamento” não é apenas um problema individual respeitante ao carácter do criminoso (Eichmann repetia slogans e era incapaz de pensar, “pensar” como construção de alternativas, de outras possibilidades),   é também o resultado de um modelo político onde o pensamento seria supérfluo porque as pessoas são supérfluas. A pessoa como alguém capaz de pensamento autónomo, vontade autónoma e livre arbítrio, seria considerada irrelevante, não necessária, pois não haveria nesse mundo espaço onde essa liberdade pudesse ter qualquer forma de expressão, pudesse tornar-se efetiva. Essa determinação de certos modelos políticos como o totalitarismo nazi pode ocorrer mediante a criação de certas condições.

(…) o funcionamento burocrático por células e outros componentes é a forma de tornar o público controlado através de divisões e subdivisões que estabelecem entre si um controle e uma supervisão permanente. Confundindo o público e o privado, retira a qualquer um dos espaços a possibilidade de se constituírem como espaços de liberdade, de escolha e de diferença. Neste sistema o homem não é importante, visto que aquilo que o caracteriza, o seu livre-arbítrio, o seu pensamento ou alma, está alienado de si, representa o pensamento, alma, livre- arbítrio da nação. Em vez de ser uma alienação, este movimento é encarado como a verdade que exige os maiores sacrifícios.

Nesta ordem de ideias, cada um pode ser substituído nas suas funções por um outro sem que a ordem/verdade se altere, visto que esta ordem/verdade é constituída “nas nuvens” por uma vontade e uma inteligência superiores. Esse indivíduo tornado substituível, torna-se, por uma questão de sobrevivência, um cumpridor verdadeiramente zeloso e estará sempre pronto a delatar o outro, seu igual/rival, como um potencial inimigo.[2]

A banalidade do mal instaura-se numa ordem que concebe o homem como supérfluo e, portanto, substituível. Essa ordem revela-se como um sistema eficaz de vigilâncias e de repetições, onde a ação e o discurso a ela associados são substituídos por leis e decretos, cuja autoridade é justificada pelo princípio da máxima eficácia científica, centrada na produção. Neste aspeto, a máquina e não o homem, é o modelo. Por outro lado, a subordinação ideológica do indivíduo ao todo faz deslizar a importância do homem para a Ordem, isto é, para uma ideia organizativa que prevalece subjetivamente sobre a iniciativa, regulando-a e orientando-a para o todo. Neste modelo, cada um tem um quadro previamente limitado e dado da ação que tem de conduzir (isto é, a ação limitada pelo seu lugar na ordem), limita-se a ser uma função com objetivos precisos. É a este quadro de ordens e de procedimentos repetitivos, de imitação e de vigilância de uns sobre outros, onde a ordem está assimilada e todos a representam, que chamamos burocracia. É nesse quadro que o mal pode ocorrer, sem que a ação que o provoque saia do estipulado da função onde o burocrata se sente seguro. Todos são aqui substituíveis porque é exatamente o que os faz não substituíveis que é supérfluo.

 

Helena Serrão, A comédia do mal

[1] Cf. Arendt, EEJ, p.371. Este mecanismo aparentemente administrativo é um mecanismo de redimensionamento dos indivíduos e da sua liberdade de ação. É, portanto, um mecanismo político disfarçado de máquina administrativa eficaz. A burocracia é uma forma de organização política e não apenas uma forma de funcionamento institucional: “A burocracia é a forma de poder onde todos são privados de liberdade política, do poder de agir, já que o governo de Ninguém não é a ausência de governo, onde todos são igualmente destituídos de poder temos uma tirania sem tirano.” Arendt (1969) Da Violência, 2004, p. 51.

[2] Este mecanismo aparentemente administrativo é um mecanismo de redimensionamento dos indivíduos e da sua liberdade de ação. É, portanto, um mecanismo político disfarçado de máquina administrativa eficaz. A burocracia é uma forma de organização política e não apenas uma forma de funcionamento institucional: “A burocracia é a forma de poder onde todos são privados de liberdade política, do poder de agir, já que o governo de Ninguém não é a ausência de governo, onde todos são igualmente destituídos de poder temos uma tirania sem tirano.” Arendt (1969) Da Violência, 2004, p. 51.

 

 

1 comentário:

Davi Machado disse...

Se não é útil, deve morrer para ser, como Gregor Samsa.