Herbert List, Alemanha, 1950
O problema do desejo humano é, segundo Lacan, ser sempre “desejo do Outro” em todos os sentidos do termo: desejo pelo Outro, desejo de ser desejado pelo Outro, e, especialmente, desejo pelo que o Outro deseja. Este último desejo torna a inveja, que inclui o ressentimento, uma componente constitutiva do desejo humano – aspecto que Santo Agostinho conhecia bem. Lembremos a passagem de suas Confissões (citadas com frequência por Lacan) onde nos deparamos com a cena de um bebê com ciúmes do irmão chupando o seio da mãe: “Eu mesmo vi e compreendi como uma criança pode ter ciúmes embora ainda não fale. Empalidece e lança olhares amargos ao seu irmão de leite.”
Baseando-se nessa intuição, Jean-Pierre Dupuy propõe uma crítica convincente da teoria da justiça de John Rawls. No modelo rawlsiano de uma sociedade justa, as desigualdades sociais só são toleradas na medida em que também possam ajudar os que se encontram na zona mais baixa da escala social, e na medida em que se baseiem não em posições hierárquicas herdadas, mas em desigualdades naturais, que são consideradas aspectos contingentes, e não méritos. Os próprios conservadores britânicos parecem estar agora dispostos a aprovar a noção de justiça de Rawls: em dezembro de 2005, o então recém-eleito líder do Partido Conservador, David Cameron, propôs aos seus a defesa dos desfavorecidos, declarando:
“Penso que o critério de todas as nossas medidas políticas deveria ser: que fazem elas pelas pessoas que têm menos, pelas pessoas que estão na parte inferior da escala?”. Mas o que Rawls não vê é como uma sociedade dessas criaria condições para uma explosão de ressentimento descontrolada: nela, eu saberia que meu estatuto inferior é plenamente “justificado” e, portanto, seria privado da possibilidade de explicar meu próprio fracasso como resultado da injustiça social. Rawls propõe assim o modelo aterrador de uma sociedade em que a hierarquia é iretamente legitimada por propriedades naturais, perdendo de vista a simples lição que uma piada sobre um camponês esloveno torna de uma clareza palpável. Uma boa feiticeira oferece ao camponês a possibilidade de escolha: ou ela lhe presenteará com uma vaca, dando duas ao seu vizinho, ou tomará uma vaca do camponês e duas do vizinho. O camponês escolhe sem hesitar a segunda alternativa. Gore Vidal enuncia essa atitude numa fórmula sucinta: “Não me basta ganhar – o outro tem de perder”. O problema da inveja/ressentimento é que não se limita a adotar o princípio do jogo de soma nula, em que a minha vitória é igual à perda do outro, mas implica também uma diferença entre os dois jogadores, que não é uma diferença positiva (todos podemos ganhar sem que haja perdedores), mas negativa. Se tiver de escolher entre o meu ganho e a perda do meu adversário, preferirei a perda do meu adversário, ainda que isso signifique uma perda também para mim. É como se minha eventual vitória a partir da perda do adversário funcionasse como uma espécie de elemento patológico que mancha a pureza de meu sucesso.
Friedrich Hayek sabia que era muito mais fácil para alguém aceitar as desigualdades se pudesse declará-las resultado de uma força cega impessoal: o lado bom da “irracionalidade” de mercado em ligação com o sucesso ou fracasso no quadro do capitalismo é precisamente permitir que eu perceba meu fracasso ou o meu sucesso como “imerecido”, contingente.
Pensemos no velho tema do mercado como a versão moderna de um destino imponderável. O fato de o capitalismo não ser “justo” constitui um dos traços fundamentais daquilo que o torna aceitável para a maioria. Posso viver muito mais facilmente com meu fracasso se souber que este não se deve às minhas qualidades inferiores, mas ao acaso.
Baseando-se nessa intuição, Jean-Pierre Dupuy propõe uma crítica convincente da teoria da justiça de John Rawls. No modelo rawlsiano de uma sociedade justa, as desigualdades sociais só são toleradas na medida em que também possam ajudar os que se encontram na zona mais baixa da escala social, e na medida em que se baseiem não em posições hierárquicas herdadas, mas em desigualdades naturais, que são consideradas aspectos contingentes, e não méritos. Os próprios conservadores britânicos parecem estar agora dispostos a aprovar a noção de justiça de Rawls: em dezembro de 2005, o então recém-eleito líder do Partido Conservador, David Cameron, propôs aos seus a defesa dos desfavorecidos, declarando:
“Penso que o critério de todas as nossas medidas políticas deveria ser: que fazem elas pelas pessoas que têm menos, pelas pessoas que estão na parte inferior da escala?”. Mas o que Rawls não vê é como uma sociedade dessas criaria condições para uma explosão de ressentimento descontrolada: nela, eu saberia que meu estatuto inferior é plenamente “justificado” e, portanto, seria privado da possibilidade de explicar meu próprio fracasso como resultado da injustiça social. Rawls propõe assim o modelo aterrador de uma sociedade em que a hierarquia é iretamente legitimada por propriedades naturais, perdendo de vista a simples lição que uma piada sobre um camponês esloveno torna de uma clareza palpável. Uma boa feiticeira oferece ao camponês a possibilidade de escolha: ou ela lhe presenteará com uma vaca, dando duas ao seu vizinho, ou tomará uma vaca do camponês e duas do vizinho. O camponês escolhe sem hesitar a segunda alternativa. Gore Vidal enuncia essa atitude numa fórmula sucinta: “Não me basta ganhar – o outro tem de perder”. O problema da inveja/ressentimento é que não se limita a adotar o princípio do jogo de soma nula, em que a minha vitória é igual à perda do outro, mas implica também uma diferença entre os dois jogadores, que não é uma diferença positiva (todos podemos ganhar sem que haja perdedores), mas negativa. Se tiver de escolher entre o meu ganho e a perda do meu adversário, preferirei a perda do meu adversário, ainda que isso signifique uma perda também para mim. É como se minha eventual vitória a partir da perda do adversário funcionasse como uma espécie de elemento patológico que mancha a pureza de meu sucesso.
Friedrich Hayek sabia que era muito mais fácil para alguém aceitar as desigualdades se pudesse declará-las resultado de uma força cega impessoal: o lado bom da “irracionalidade” de mercado em ligação com o sucesso ou fracasso no quadro do capitalismo é precisamente permitir que eu perceba meu fracasso ou o meu sucesso como “imerecido”, contingente.
Pensemos no velho tema do mercado como a versão moderna de um destino imponderável. O fato de o capitalismo não ser “justo” constitui um dos traços fundamentais daquilo que o torna aceitável para a maioria. Posso viver muito mais facilmente com meu fracasso se souber que este não se deve às minhas qualidades inferiores, mas ao acaso.
Slavoj Zizek, Violência, Editora, Boitempo, S.Paulo,2014
Tradução de Miguel Serras Pereira
Sem comentários:
Enviar um comentário