terça-feira, março 29, 2022

Não pensar no outro, não se pôr no lugar do outro. A incapacidade de pensar, em certas circunstâncias, pode provocar o maior dos males. A propósito do julgamento de Adolfo Eichmann

 


Fotografia do julgamento do coronel das SS Adolf Eichmann, Jerusalém, 1960

Eichmann trabalhava na organização e transporte de milhares de homens, mulheres e crianças judeus para os campos de concentração na Polónia. Foi julgado por um tribunal israelita depois de ter sido raptado na Argentina para onde fugiu depois da guerra ter acabado. Foi condenado à morte e enforcado. No relato do seu julgamento Hannah Arendt faz o retrato de um homem que está longe de ser uma encarnação do mal, embora seja responsável ou coresponsável ou activo cooperante no crime de extermínio em massa de milhares ( milhões?) de pessoas. 


O texto alemão do interrogatório policial gravado, realizado de 29 de maio de 1960 a 17 de

Janeiro de 1961, com cada página corrigida e aprovada por Eichmann, constitui uma verdadeira mina de ouro para um psicólogo — contanto que ele tenha a sabedoria de entender que o horrível pode ser não só ridículo como rematadamente engraçado. Parte do humor não pode ser transmitido noutra língua, porque está justamente na luta heróica que Eichmann trava com a língua alemã, que invariavelmente o derrota. É engraçado quando ele usa o termo “palavras aladas” (geflügelte Worte, um coloquialismo alemão para designar citações famosas dos clássicos) querendo dizer frases feitas, Redensarten, ou slogans, Schlagworte. Era engraçado quando, durante a inquirição sobre os

documentos Sassen, feita em alemão pelo juiz presidente, ele usou a frase “kontra geben” (pagar na mesma moeda), para indicar que havia resistido aos esforços de Sassen para melhorar suas histórias; o juiz Landau, desconhecendo evidentemente os mistérios dos jogos de cartas (de onde provém a expressão), não entendeu, e Eichmann não conseguiu achar nenhuma outra maneira de se expressar.

Vagamente consciente de uma incapacidade que deve tê-lo perseguido ainda na escola — chegava a ser um caso brando de afasia — ele pediu desculpas, dizendo: “A minha única língua é o “oficialês” [Amtssprache]”. Mas a questão é que o “oficialês” transformou-se na sua única língua porque ele sempre foi genuinamente incapaz de pronunciar uma única frase que não fosse um clichê. (Será que foram esses “clichés” que os psiquiatras acharam tão “normais” e “desejáveis”? Serão essas as “ideias positivas” que um clérigo espera encontrar nas almas para as quais ministra? A melhor oportunidade para Eichmann demonstrar esse lado positivo de seu carácter em Jerusalém surgiu quando o jovem oficial de polícia encarregado de seu bem-estar mental e psicológico lhe deu um exemplar de Lolita para relaxar. Dois dias mais tarde, Eichmann devolveu o livro, visivelmente indignado; “Um livro nada saudável” — “Das ist aber ein sehr unerfreuliches Buch” — disse ele a seu guarda.) Sem dúvida, os juízes tinham razão quando disseram ao acusado que tudo o que dissera era “conversa vazia” — só que eles pensaram que o vazio era fingido, e que o acusado queria encobrir outros pensamentos que, embora hediondos, não seriam vazios. Essa ideia parece ter sido refutada pela incrível coerência com que Eichmann, apesar da sua má memória, repetia palavra por palavra as

mesmas frases feitas e clichés semi-inventados (quando conseguia fazer uma frase própria, ele

repetia-a até transformá-la em cliché) sempre que se referia a um incidente ou acontecimento que achava importante. Quer estivesse a escrever as suas memórias na Argentina ou em Jerusalém, quer estivesse a falar com o interrogador policial ou com a corte, o que ele dizia era sempre a mesma coisa, expressa com as mesmas palavras. Quanto mais se ouvia Eichmann, mais óbvio ficava que sua incapacidade de falar estava intimamente relacionada com sua incapacidade de pensar, ou seja, de pensar do ponto de vista de outra pessoa. Não era possível nenhuma comunicação com ele, não porque mentia, mas porque se cercava do mais confiável de todos os guarda-costas contra as palavras e a presença de outros, e portanto contra a realidade enquanto tal.

Hannah Arendt, Eichmann em Jerusalém, Um relato sobre a banalidade do mal, Companhia das letras, pp.33

Tradução José Siqueira

terça-feira, março 15, 2022

A beleza como uma ideia a que se acede por via do amor

 


Marc Chagall, Os amantes em azul (1914)

Aquele, pois, que até esse ponto tiver sido orientado para as coisas do amor, contemplando seguida e corretamente o que é belo, já chegando ao ápice dos graus do amor, súbito perceberá algo de maravilhosamente belo na sua natureza, aquilo mesmo, ó Sócrates, a que tendiam todas as penas anteriores, primeiramente sempre sendo, sem nascer nem perecer, sem crescer nem decrescer, e depois, não de um jeito belo e de outro feio, nem ora sim ora não, nem quanto a isso belo e quanto àquilo feio, nem aqui belo ali feio, como se a uns fosse belo e a outros feio; nem por outro lado aparecer-lhe á o belo como um rosto ou mãos, nem como nada que o corpo tem consigo, nem como algum discurso ou alguma ciência, nem certamente como a existir em algo mais, como, por exemplo, em animal da terra ou do céu, ou em qualquer outra coisa; ao contrário, aparecer-lhe-á ele mesmo, por si mesmo, consigo mesmo, sendo sempre uniforme, enquanto tudo mais que é belo dele participa, de um modo tal que, enquanto nasce e perece tudo mais que é belo, em nada ele fica maior ou menor, nem nada sofre. 

Quando então alguém, subindo a partir do que aqui é belo, através do correto amor aos jovens, começa a contemplar aquele belo, quase que estaria a atingir o ponto final. Eis, com efeito, em que consiste o proceder corretamente nos caminhos do amor ou por outro se deixar conduzir: a começar do que aqui é belo e, em vista daquele belo, subir sempre, como que servindo-se de degraus, de um só para dois e de dois para todos os belos corpos, e dos belos corpos para os belos ofícios, e dos ofícios para as belas ciências até que das ciências acabe naquela ciência, que de nada mais é senão daquele próprio belo, e conheça enfim o que em si é belo. Nesse ponto da vida, meu caro Sócrates, continuou a estrangeira de Mantinéia, não poderia o homem viver, senão a contemplar o próprio belo. (...)

Que pensamos então que aconteceria, disse ela, se a alguém ocorresse contemplar o próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes, humanas, de cores e outras muitas ninharias mortais, mas o próprio divino belo pudesse ele em sua forma única contemplar? Porventura pensas, disse, que é vida vã a de um homem a olhar naquela direção e aquele objeto, com aquilo com que deve, quando o contempla e com ele convive? Ou não consideras, disse ela, que somente então, quando vir o belo com aquilo com que este pode ser visto, ocorrer-lhe-á produzir não sombras de virtude, porque não é em sombra que estará tocando, mas reais virtudes, porque é no real que estará tocando? 

Platão, ver referência e tradução.

terça-feira, março 01, 2022

A moral como respeito pela lei


(…) O dever é a necessidade de cumprir uma ação por respeito à lei. Para o objeto concebido como efeito da ação que me proponho, posso verdadeiramente sentir inclinação, nunca porém respeito, precisamente porque ele é simples efeito, e não a atividade de uma vontade. Do mesmo modo, não posso ter respeito por uma inclinação em geral, seja ela minha ou de outrem; quando muito, posso aprová-la no primeiro caso, no segundo caso talvez até amá-la, isto é, considerá-la como favorável ao meu interesse. Só o que está ligado à minha vontade unicamente como princípio, e nunca como efeito, o que não serve a minha inclinação mas a domina, e ao menos a exclui totalmente da avaliação no ato de decidir, por conseguinte a simples lei por si mesma é que pode ser objeto de respeito, e, portanto, ordem, para mim. Ora, se uma ação cumprida por dever elimina completamente a influência da inclinação e, com ela, todo objeto da vontade," nada resta capaz de determinar a mesma vontade, a não ser objetivamente a lei e subjetivamente um puro respeito a esta lei prática, portanto a máxima (*) de obedecer a essa lei, embora com dano de todas as minhas inclinações". Portanto, o valor moral da ação não reside no efeito que dela se espera,  nem em qualquer princípio da ação que precise de tirar seu motivo deste efeito esperado. Com efeito, todos estes resultados (contentamento, e até mesmo contribuição para a felicidade alheia) poderiam provir de outras causas; não é necessário para isso a vontade de um ser racional, muito embora somente nesta se possa encontrar o supremo bem, o bem incondicionado. Por isso, a representação da lei em si mesma, que seguramente só tem lugar num ser racional, com a condição de ser esta representação, e não o resultado esperado, o princípio determinado da vontade, eis o que só é capaz de constituir o bem tão excelente que denominamos moral, o qual já se encontra presente na pessoa que age segundo essa ideia, mas que não deve ser esperado somente do efeito da sua ação(**).

 

(*) Máxima é o princípio subjetivo do querer; o princípio objetivo (isto é, o princípio capaz de servir também subjetivamente' de princípio pratico para todos os seres racionais, se a razão tivesse pleno poder sobre a faculdade apetitiva) é a lei prática.

(**) Poderiam objetar-me que, servindo-me do termo respeito, tento apenas refugiar-me num sentimento obscuro, em vez de aclarar a questão por meio de um conceito da razão. Mas, conquanto o respeito seja um sentimento, não é, todavia, sentimento proveniente de influência estranha, mas, sim, pelo contrário, sentimento espontaneamente produzido por um conceito da razão, e por isso mesmo especificamente distinto dos sentimentos da primeira espécie, referentes à inclinação ou ao temor. O que reconheço imediatamente como lei para mim, reconheço-o com um sentimento de respeito que exprime simplesmente a consciência que tenho da subordinação de minha vontade a uma lei, sem intromissão de outras influências em minha sensibilidade. A determinação imediata da vontade pela lei, e a consciência que tenho dessa determinação, chama-se respeito, de sorte que este deve ser considerado, não como causa da lei, mas como efeito, da mesma sobre o sujeito. Em rigor de expressão o respeito é a representação— de um valor que vai de encontro ao meu amor próprio. Conseguintemente é alguma coisa que não é considerada nem como objeto de inclinação, nem como de temor, se bem que apresente alguma analogia com ambos ao mesmo tempo. O objeto do respeito é pois simplesmente, a lei, lei que nos impomos a nós mesmos, mas que no entanto é necessária em si. Enquanto lei, estamos-lhes sujeitos, sem consultar nosso amor próprio; enquanto imposta por nós a nós mesmos, é consequência de nossa vontade. Do primeiro ponto de vista oferece analogia com o temor; do segundo ponto de vista, tem analogia com a inclinação. O respeito que se sente para com uma pessoa, na realidade não 6 mais do que* o respeito da lei (da honestidade, etc.) de que essa pessoa nos dá exemplo. Do mesmo modo que consideramos um dever cultivar nossos talentos, assim também vemos numa pessoa prendada de talentos como que o exemplo de. uma lei (que ordena que nos exercitemos cm nos assemelhar-nos nela nisto): eis o que constitui o nosso respeito. Tudo quanto se designa interesse moral consiste unicamente no respeito da lei.

 

Immanuel Kant, Fundamentação da metafísica dos costumes,(1785), Companhia Editora Nacional, p.9

Tradução de António Pinto de Carvalho,