quarta-feira, abril 30, 2025

Sobre a unidade social




 Elliott Erwitt, Paris, 1949

Ora, as relações sociais entre seres humanos, excepto no caso do senhor e do escravo, são manifestamente impossíveis sobre qualquer outra base que não a da obrigatoriedade de consultar os interesses de todos. A associação entre iguais só pode existir baseada no entendimento de que os interesses de todos têm de ser encarados de modo igual. E uma vez que, em todos os estados de civilização, cada pessoa, com excepção de um monarca absoluto, tem iguais, todos são obrigados a viver com alguém de acordo com estas condições; e em cada época é feito um avanço rumo a um estado no qual será impossível viver permanentemente de acordo com outras condições com quem quer que seja. Desta forma, as pessoas crescem sendo incapazes de conceber como possível para si mesmas um estado de total menosprezo pelos interesses das outras pessoas. (…)

O fortalecimento dos laços sociais, e todo o crescimento saudável da sociedade, não dá apenas a cada indivíduo um interesse pessoal mais forte na consulta efectiva do bem-estar dos outros; leva-o também a identificar cada vez mais os seus sentimentos com o bem deles ou, pelo menos, com um grau ainda maior de consideração prática por esse bem. Como que por instinto, o indivíduo ganha consciência de si próprio como um ser que obviamente se preocupa co os outros. O bem dos outros torna-se para ele uma coisa à qual se tem de dar atenção, natural e necessariamente, como a qualquer dos estados físicos da nossa existência. (…)

Num estado de aperfeiçoamento da mente humana, as influências que tendem a gerar em cada indivíduo um sentimento de unidade com todos os outros estão em aumento permanente; sentimento que, se perfeito, faria o indivíduo nunca pensar em qualquer condição benéfica para si mesmo, ou desejá-la, caso não estivessem todos incluídos nos seus proveitos. Se agora imaginarmos este sentimento de unidade a ser ensinado como uma religião, e toda a força da educação, das instituições e da opinião, dirigidos, como em tempos aconteceu com a religião, no sentido de fazer cada pessoa crescer, desde a infância, rodeada de todos os lados pela afirmação e pela prática desse sentimento de unidade, penso que ninguém capaz de conceber essa ideia sentirá qualquer dúvida quanto à importância da aprovação última para a moral da felicidade.

John Stuart Mill, O Utilitarismo(1871), Lx, Gradiva (2005), pp.84,85,86

quarta-feira, abril 23, 2025

O Homem abdicou da política? Ou que política? ou que Homem?


Inge Morath, Cordoba, 1962, no café da vila

" O Homem é um animal político, mais social do que as abelhas e outros animais que vivem em comunidade. A Natureza, que nada faz em vão, só a ele concedeu o dom da palavra, dom que não se pode confundir com emitir sons. (…)

O Estado, ou sociedade política, é mesmo o primeiro objeto que a natureza se propôs. O todo é, necessariamente, anterior à parte. As sociedades domésticas e os indivíduos mais não são que as partes integrantes (…), totalmente subordinadas ao corpo na sua totalidade, totalmente distintas pelas suas capacidade e pelas funções e completamente inúteis se se separam, de forma semelhante às mãos e aos pés que, uma vez separados do corpo, só conservam o nome e a aparência, sem qualquer realidade, como acontece a uma mão de pedra. O mesmo se passa com os membros de uma cidade; nenhum se pode bastar a si próprio. Quem quer que seja que não tenha necessidade dos outros homens ou que não seja capaz de viver em comunidade com eles ou é um deus ou um animal. Desta forma, a própria inclinação natural conduz todos os homens a este género de sociedade.

O primeiro que a instituiu trouve-lhe o maior de todos os bens. Mas, assim como o homem civilizado é o melhor de todos os animais, também aquele que não conhece nem justiça nem leis é o pior de todos. Sobretudo, não existe algo de mais intolerável do que a injustiça armada. As armas e a força são, por si próprias, indiferentes perante o bem ou o mal: é o princípio que as move que qualifica o seu uso. Servir-se delas sem qualquer direiro, e unicamente para satisfazer as suas paixões gananciosas ou luxuriosas, é atrocidade e malvadez. O seu uso é lícito a favor da justiça. O discernimento e o respeito do direito constituem a base da vida política e os juízes são os seus primeiros órgãos.”

Aristóteles, Política, Lisboa editora a mencionar

 

O direito como arma política e não a força das armas na resolução de conflitos e na manutenção da paz. Será possível que essas evidências passados mais de dois mil anos sejam ainda obscuras fórmulas sem capacidade para guiarem a ação dos líderes políticos? Voltámos à visibilidade dos líderes cujo poder é tão obscuro como as suas ações mas que ignoram a vontade do seu povo. Líderes que ignoram a comunidade que representam e se motivam pela ganância e a inverosimilhança do imperialismo que muitos já julgavam uma ideia ultrapassada. É mesmo caso para perguntar: Que homem é este? Não certamente aquele que Aristóteles refere neste texto como sendo o animal político.

quarta-feira, abril 02, 2025

Duplo efeito.

 


A reflexão sobre estes casos leva-nos à conclusão de que não existe qualquer diferença moral *intrínseca* entre matar e deixar morrer. Ou seja, não existe diferença que dependa somente da distinção entre um ato e uma omissão. (Isto não significa que todos os casos em que se deixa alguém morrer sejam moralmente equivalentes a matar. Outros fatores -- fatores extrínsecos -- são por vezes relevantes. Esta questão será abordada com mais pormenor no capítulo 8.) Deixar alguém morrer -- a chamada "eutanásia passiva" -- já é aceite como uma atitude humanitária e apropriada em certos casos. Se não existe diferença moral intrínseca entre matar e deixar morrer, a eutanásia ativa também deveria ser aceite como humanitária e apropriada em certas circunstâncias. Há quem defenda que a diferença entre não ministrar os tratamentos necessários para prolongar a vida e dar uma injeção letal reside na intenção com que ambas são feitas. Quem defende esta perspetiva recorre à "doutrina do duplo efeito", uma doutrina corrente entre os teólogos e filósofos da moral cató1ica-romana, argumentando que um ato (por exemplo, não efetuar deliberadamente tratamentos de suporte à vida) pode ter dois efeitos (neste caso, não causar sofrimento adicional ao paciente e encurtar a sua vida). Argumentam em seguida dizendo que, desde que o efeito *diretamente pretendido* seja o efeito benéfico que não viola nenhuma regra moral absoluta, o ato é:, permissível. Embora estejamos a prever que o nosso ato (ou omissão) resultará na morte do paciente, trata-se apenas de um efeito secundário indesejável. Mas a distinção entre o efeito direto pretendido e o efeito secundário é uma distinção falsa. Não podemos evitar a responsabilidade dirigindo simplesmente a nossa intenção para um efeito em vez de outro. Se prevemos ambos os efeitos, temos de assumir a responsabilidade pelos efeitos previstos das nossas ações. Muitas vezes, queremos fazer algo que não devemos devido às suas consequências indesejáveis. Por exemplo, uma empresa de produtos químicos podia querer livrar-se de lixos tóxicos da forma mais económica, despejando-os no rio mais próximo. Será que aceitaríamos que os executivos dessa empresa dissessem que a sua intenção direta era melhorar a eficiência da fábrica, promovendo assim o emprego e mantendo uma baixa carestia de vida? Será que acharíamos a poluição desculpável por não passar de um mero efeito secundário indesejável da prossecução desses objetivos valorosos? É evidente que os defensores da doutrina do duplo efeito não aceitariam uma tal desculpa. Ao rejeitá-la, porém, teriam de se basear no juízo de que os custos -- o rio poluído -- são desproporcionais aos ganhos. Aqui um juízo consequencialista assoma por detrás da doutrina do duplo efeito. O mesmo é verdade quando a doutrina se aplica à assistência médica. Normalmente, salvar uma vida tem precedência sobre aliviar a dor. Se no caso particular de um doente assim não acontece, só pode ser porque julgamos que as perspetivas de o paciente ter uma vida futura de qualidade aceitável são tão pequenas que, neste caso, aliviar o sofrimento pode ter a precedência. Esta é, por outras palavras, uma decisão que não se baseia na aceitação da santidade da vida humana, mas uma decisão baseada numa avaliação disfarçada da qualidade de vida.

Peter Singer, Ética Prática