quarta-feira, fevereiro 21, 2024

Não há falta de normas

 


Diego-Herrera, Igreja destruída em Yasnohorodka perto de Kiev, March-2022,


A diferença entre o âmbito moral, jurídico e religioso

Porque falamos em “normas” para nos referimos à Moralidade, podemos confundir-nos com as normas jurídicas e religiosas. Um código de normas pode-se inscrever nesses três âmbitos. Nós podemos pensar: “Mas todas essas normas não são estabelecidas para que todos as sigam?” Ou ainda: “Não são todas as normas possíveis de transformação em relação ao contexto histórico e social?” Ou então: “Todas essas normas não buscam que todos os indivíduos vivam melhor em sociedade?”

Sim, as normas jurídicas e, algumas normas religiosas, possuem aspetos em comum com as normas morais, como, por exemplo, o aspeto prescritivo. Mas há distinções importantes. Vejamos algumas delas:

a) As normas morais têm o sentido de uma obrigação interna, ou seja, fundada na razão; as jurídicas de uma obrigação externa fundada nas leis; as religiosas têm o sentido de uma obrigação externa fundada na divindade, expressa por algum livro sagrado ou pelas autoridades religiosas;

b) As normas morais são estabelecidas pela consciência pessoal de cada indivíduo; as normas jurídicas são estabelecidas por organismos legislativos do Estado; as normas religiosas são estabelecidas pelos intérpretes da doutrina professada, tendo relação tanto com o livro sagrado (se houver para a determinada religião) quanto com a tradição;

c) As normas morais têm uma condição universalizável, ou seja, abrangem diversos aspetos da vida humana, por isso também não possuem um código formal. As normas jurídicas referem-se a questões específicas e geralmente, pela sua ligação com o Estado, afetam um território delimitado. As normas religiosas referem-se a princípios compartilhados por um grupo de pessoas, que não têm relação ao território, pois pessoas de países diferentes podem professar o mesmo credo. No entanto, as normas morais são independentes da expressão religiosa, sem que isso signifique que sejam opostas.

CORTINA, Adela; MARTINEZ, Emílio. Ética. Ediciones Akal. Espanha, 2001.

sábado, fevereiro 17, 2024

Quem gosta da liberdade mas prefere servir

 



Andrew Wyeth (1917 – 2009)


Nas muito famosas batalhas de Milcíades, Leônidas e Temístocles, travadas há já dois mil anos e que permanecem tão frescas na memória dos livros e dos homens como se tivessem acontecido ontem, nessas batalhas travadas na Grécia para bem da Grécia e exemplo do mundo inteiro, donde terá vindo aos gregos escassos não digo o poder mas o ânimo para se oporem à força de navios tão numerosos que mal cabiam no mar? E para desbaratarem nações tão numerosas que em toda a armada grega não se achariam soldados que chegassem para preencherem, se tal fosse mister, os postos de comandantes desses navios? É que, em boa verdade, o que estava em causa nesses dias gloriosos não era tanto a luta entre gregos e persas como a vitória da liberdade sobre a dominação, da razão sobre a cupidez. Quantos prodígios temos ouvido contar sobre a valentia que a liberdade põe no coração dos que a defendem! Mas o que acontece afinal em todos os países, com todos os homens, todos os dias? Quem, só de ouvir contar, sem o ter visto, acreditaria que um único homem tenha logrado esmagar mil cidades, privando-as da liberdade? Se casos tais acontecessem apenas em países remotos e outros no-los contassem, quem não diria que era tudo invenção e impostura? Ora o mais espantoso é sabermos que nem sequer é preciso combater esse tirano, não é preciso defendermo-nos dele. Ele será destruído no dia em que o país se recuse a servi-lo. Não é necessário tirar-lhe nada, basta que ninguém lhe dê coisa alguma. Não é preciso que o país faça coisa alguma em favor de si próprio, basta que não faça nada contra si próprio. São, pois, os povos que se deixam oprimir, que tudo fazem para serem esmagados, pois deixariam de ser no dia em que deixassem de servir. É o povo que se escraviza, que se decapita, que, podendo escolher entre ser livre e ser escravo, se decide pela falta de liberdade e prefere o jugo, é ele que aceita o seu mal, que o procura por todos os meios. Se fosse difícil recuperar a liberdade perdida, eu não insistiria mais; haverá coisa que o homem deva desejar com mais ardor do que o retorno à sua condição natural, deixar, digamos, a condição de alimária e voltar a ser homem? Mas não é essa ousadia o que eu exijo dele; limito-me a não lhe permitir que ele prefira não sei que segurança a uma vida livre. Que mais é preciso para possuir a liberdade do que simplesmente desejá-la? Se basta um ato de vontade, se basta desejá-la, que nação há que a considere assim tão difícil? Como pode alguém, por falta de querer, perder um bem que deveria ser resgatado a preço de sangue? Um bem que, uma vez perdido, torna, para as pessoas honradas, a vida aborrecida e a morte salutar? Veja-se como, ateado por pequena fagulha, acende-se o fogo, que cresce cada vez mais e, quanto mais lenha encontra, tanta mais consome; e como, sem se lhe despejar água, deixando apenas de lhe fornecer lenha a consumir, a si próprio se consome, perde a forma e deixa de ser fogo. Assim são os tiranos: quanto mais eles roubam, saqueiam, exigem, quanto mais arruínam e destroem, quanto mais se lhes der e mais serviços se lhes prestarem, mais eles se fortalecem e se robustecem até aniquilarem e destruírem tudo. Se nada se lhes der, se não se lhe obedecer, eles, sem ser preciso luta ou combate, acabarão por ficar nus, pobres e sem nada; da mesma forma que a raiz, sem humidade e alimento, se torna ramo seco e morto.

DISCURSO SOBRE A SERVIDÃO VOLUNTÁRIA, Étienne de La Boétie,154



quarta-feira, fevereiro 07, 2024

Problematizar a indução na ciência.

 


Fotografia: Peter van Agtmael (2012) : Mohammed na porta da sua casa. Os residentes de Nabi Saleh protestam, desde 2009, todas as sextas feiras depois das orações do meio dia, contra a a ocupação israelita.

Um tipo diferente de objeção à perspetiva simples do método científico levanta-se pelo facto de esta se apoiar na indução, e não na dedução. A indução e a dedução são dois tipos diferentes de argumentos. Um argumento indutivo envolve uma generalização baseada num certo número de observações específicas. Se eu observar um grande número de animais com pelo, concluindo a partir das minhas observações que todos os animais com pelo são vivíparos (isto é, dão à luz crias em vez de porem ovos), estaria a usar um argumento indutivo. Um argumento dedutivo, por outro lado, parte de certas premissas, passando depois logicamente para uma conclusão que se segue dessas premissas. Por exemplo, das premissas «Todas as aves são animais» e «Os cisnes são aves» posso concluir que, portanto, todos os cisnes são animais: este é um argumento dedutivo. Os argumentos dedutivos preservam a verdade. Isto significa que, se as suas premissas são verdadeiras, as suas conclusões têm de ser verdadeiras. Entraríamos em contradição se afirmássemos as premissas e negássemos a conclusão. Assim, se as premissas «Todas as aves são animais» e «Os cisnes são aves» são ambas verdadeiras, tem de ser verdade que todos os cisnes são animais. Ao invés, os argumentos indutivos com premissas verdadeiras podem ter ou não conclusões verdadeiras. Mesmo que todas as observações de animais com pelo por mim efetuadas tenham sido fidedignas e que todos os animais sejam de facto vivíparos, e mesmo que tenha feito milhares de observações, pode vir a descobrir-se que a minha conclusão indutiva de que todos os animais com pelo são vivíparos é falsa. Na verdade, a existência do plácido ornitorrinco, um tipo peculiar de animal com pelo que põe ovos, significa que se trata de uma generalização falsa.

Apesar deste papel central desempenhado pela indução nas nossas vidas, é um facto indesmentível que o princípio da indução não é inteiramente fidedigno. Como já vimos, pode dar-nos uma conclusão falsa relativamente à questão de saber se é verdade que todos os animais com pelo são vivíparos. As suas conclusões não são tão fidedignas quanto as conclusões resultantes de argumentos dedutivos com premissas verdadeiras. Para ilustrar este aspeto, Bertrand Russell, nos "Problemas da Filosofia", usou o exemplo de uma galinha que acorda todas as manhãs pensando que, uma vez que foi alimentada no dia anterior, sê-lo-á mais uma vez naquele dia. Um dia acorda e o camponês torce-lhe o pescoço. A galinha estava a usar um argumento indutivo baseado num grande número de observações. Estaremos a ser tão tolos quanto esta galinha ao apoiar-nos tão fortemente na indução? Como poderemos justificar a nossa fé na indução? Este é o chamado problema da indução, um problema identificado por David Hume no seu "Tratado acerca do Conhecimento Humano". 

Como poderemos nós alguma vez justificar a nossa confiança num método de argumentação tão pouco digno de confiança? Esta questão é particularmente relevante para a filosofia da ciência porque, pelo menos na teoria simples delineada acima, a indução desempenha um papel crucial no método científico. 

Nigel Walburton, Elementos básicos da Filosofia, Lisboa, 1998, Gradiva, 172,173


quinta-feira, fevereiro 01, 2024

O problema da demarcação.

 


Fotografia, Emin Özmen, Turquia, 2015

Um contributo fundamental para o problema clássico da demarcação foi dado por Popper (1959, 2002), que era da opinião de que a ciência é diferente da pseudociência no sentido em que visa a produção de hipóteses falsificáveis.

 Popper não está convencido de que, no contexto da demarcação, fazer apelo à possibilidade de verificação seja satisfatório. A sua sugestão de uma estratégia alternativa é baseada na observação de que as afirmações gerais nunca podem ser verificadas pela experiência, uma vez que seria necessário um número infinito de observações. Quantas observações de cisnes brancos são necessárias para verificar a afirmação «Todos os cisnes são brancos»? Afirmações gerais na forma «Todos os X são Y» dizem respeito a casos passados, presentes e futuros de X e, portanto, nenhum número de observações de X constituiria prova suficiente para estabelecer com certeza a verdade dessa afirmação geral. E claro que se eu observo cem cisnes e são todos brancos, é razoável que espere que o próximo cisne que vou observar também seja branco. Porém, como sabemos, a observação de um cisne negro numa viagem à Austrália pode ser reveladora. A existência de apenas um caso em que X não é Y prova que afinal de contas a afirmação geral é falsa. O ponto de partida para a introdução da noção de falsificação é o de que uma única experiência pode contradizer a previsão baseada numa hipótese geral, e que isto é suficiente para provar que a hipótese é falsa. Segundo Popper, só as hipóteses científicas são falsificáveis desta maneira, ao passo que as teorias pseudocientíficas e as teorias metafísicas são imunes ao fracasso empírico. Por este motivo, pensava que o apelo à falsificabilidade era a forma mais promissora de distinguir a ciência da não-ciência. Ora será que esta maneira de ver as coisas pode explicar o estatuto pseudocientífico da astrologia? Popper (1963) defende que há uma diferença importante entre 

a) prever indícios observacionais com base numa dada teoria e 

b) modelar  os indícios de modo a serem compatíveis com a teoria. 

Lisa Bortolotti, Introdução à Filosofia das ciências, Gradiva

sexta-feira, janeiro 26, 2024

A nova nomenclatura da ciência química

 


Foto: Seymor
Tendo reunido aliados, Lavoisier empenha-se numa ação em profundidade: a reforma da linguagem. Já desde há várias dezenas de anos que os químicos se queixavam da imperfeição da sua nomenclatura. Os nomes das substâncias químicas, forjados ao longo de séculos, sancionadas pelo uso, perpetuavam a memória de uma tradição, mas transmitiam por vezes ideias falsas. Além disso, as descobertas de substâncias novas no decurso do século XVIII impunham a criação de novas palavras. Levados pela preocupação de racionalizar a química, Torbern Bergman e Guyton de Morveaub tinham avançado, mas sem sucesso, com projetos de reforma para introduzir denominações sistemáticas, um pouco com base no modelo de nomenclatura concebido por Lineu, na Botânica. Lavoisier, convencido da importância das palavras na formação das ideias, (…) agarrou a ocasião para realizar o seu desígnio em química. Banir os nomes em uso é construir uma língua artificial, unicamente forjada com base na teoria Lavoisieriana; é acabar com o passado. Melhor; é renascer pelo batismo. (…)

É preciso dizer que ela (a nova nomenclatura) responde verdadeiramente a uma necessidade urgente de escapar ao caos das denominações múltiplas (…) Mesmo se os autores se mostram cuidadosos em assegurar uma continuidade ao conservarem os nomes do passado que não veiculam ideias falsas, a reforma é uma verdadeira revolução porque introduz um novo espírito. É mais um “método para nomear” que uma nomenclatura. O princípio de base é uma lógica da composição: constituir um alfabeto de palavras simples para designar as substâncias simples, depois designar as substâncias compostas por palavras compostas, formadas pela justaposição de palavras simples (…)

O método mostrou o seu valor: dois séculos mais tarde, com alguns arranjos de permeio, continua em vigor. A nomenclatura é o elemento essencial que metamorfoseia a revolução química em formação. Não é apenas o manifesto de uma escola, é uma nova teoria química. Ela esvazia a tradição por um duplo efeito de rutura. Rutura irreversível com o passado: numa geração, os químicos esquecem a sua língua natural forjada por séculos de uso. Os textos pré-lavoisierianos, tornam-se ilegíveis, são mergulhados numa obscura pré-história. Rutura também no espaço social entre a química académica que se desenvolve no quadro da nova nomenclatura e a química artesanal dos droguistas e perfumistas que continuam a falar de espírito de sal, de vitríolo…Acabou-se o tempo da Enciclopédia onde um químico como Venel podia dizer com orgulho que “a química tem o seu próprio corpo e dupla língua, a popular e a científica”.

Michel Serres, Lavoisier: Uma revolução científica in História das Ciências, Lisboa (1989) Terramar, p.p208,209

quarta-feira, janeiro 17, 2024

Escolher um filme para a aula

 




Andei algumas semanas entusiasmada com a escolha de um filme para mostrar aos alunos. Tantos filmes vistos, mas poucos se enquadravam nas minhas exigências. Queria um filme bom, e pus-me a magicar na qualidade dos filmes, O que é um filme bom? Teria de reunir quatro condições: Eu ter gostado muito, era a primeira; a segunda era comunicar bons valores. Fiquei meio envergonhada por pensar de uma forma um tanto arcaica, bons filmes, bons valores...penso que isto só de o escrever parece algo muito discutível, mas para mim é claro o que são bons valores; são valores que não se limitam a ser materiais ou utilitários, são valores como a lealdade, a confiança, a honestidade.  Em terceiro lugar teria de focar problemas da adolescência ou, de algum modo, estar relacionado com a adolescência. Por fim, a quarta condição era mesmo um filtro poderoso, o filme não podia exceder  (muito)o tempo de uma aula -90m-. A escolha recaiu sobre apenas dois filmes " O céu de Outubro" e "Eduardo mãos de tesoura".  

O primeiro filme era sobre um grupo de rapazes, numa vila de província mineira. Todos com o estigma de terem de ser, mais tarde ou mais cedo, mineiros.  Um dia, nas aulas de Física e Química a professora lança um repto, porque não concorrer a uma feira de de invenções que iria ocorrer, daí a pouco tempo, na cidade mais perto? Os rapazes aceitam o desafio e lançam-se á descoberta das leis da física através da construção de um foguete. Ganham o concurso e uma porta de saída da vila se abre. Trata da lealdade, do espírito de equipa, da perseverança.  

O outro filme "Eduardo, mãos de tesoura", acabou por ser o eleito. Bravo e arrojado, inventivo e, laçado pela poesia. Há uma estrada sinuosa que leva a um castelo onde vive um rapaz inacabado, todo normal, menos nas mãos que são tesouras. Abaixo do castelo uma comunidade onde tudo é normal, isto é, as casas parecem-se, os automóveis, os hábitos, e nada acontece senão rotina. Como irá esta comunidade aceitar o rapaz disforme? Primeiro encantada e depois, quando ele exige para si alguma dignidade, feroz a negá-lo, feroz a afastar o disforme. 

O curioso deste Eduardo é que, embora inacabado (atenção que o Deep é bonito, este disforme, é mais, um pouco esquisito) é excelentemente acabado no carácter, ele é mais humano, no bom sentido do termo, que os outros cujo corpo é normal. O desejo de normalidade é a mãe de todos os vícios. Ponto. Encanta-me.

 



quarta-feira, janeiro 10, 2024

Os filmes

 


Filme “Dias perfeitos” de Wim Wenders

Filme com um homem cujo corpo é máxima expressão, os seus gestos configuram o que faz, faz com majestosa atenção em equilíbrio perfeito entre a sua vontade e a sua ação. O que faz é um conjunto de gestos envoltos numa singularidade única na sua precisão. Cada gesto perfaz a ação e cada ação é um conjunto de gestos rigorosamente medidos como se comunicassem mais sobre o que é um homem do que descrevessem aquilo que faz. Os gestos são assim sacralizados, atingindo um patamar de comunicação que transcende o gesto e nos aproxima do símbolo, numa experiência da essência da vida como um ritual cujo sentido nos escapa, cujo sentido não está ao nosso alcance; nessa condição a ação não se explica na sua finalidade útil, ela não aliena o seu agente, não o escraviza por causa do fim que exige mas antes o liberta em virtude de reverter a favor da rigorosa aplicação de um talento, da rigorosa aplicação de um carácter singular que vive mas, não se esgota no que faz antes o recria de acordo com o seu desejo e sensibilidade de modo a transformar o gesto mais humilhante em estético ou lúdico. Ou é isso que o cinema faz, o cinema transforma essa matéria concreta em comando invisível e força transformadora.

Talvez seja por isso que o filme me parece feliz, permite-me pensar a felicidade enquanto autenticidade de um ser que permanece na sombra, indizível, supremo, sem nunca poder ser catalogado ou mesmo entendido. Percurso lento estimulado pela própria aventura do acontecimento, a vida como oportunidade renovada de começar algo de novo, mesmo que pareça tudo repetido. HS

A banda sonora:

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quarta-feira, dezembro 20, 2023

A experiência está ligada à consciência dos limites

 


Foto: Peter Van Agtmael, 2014, Dois homens a aquecem-se ao fogo na destruída Shujai'ilya em Gaza.


Se quiséssemos acrescentar também algum testemunho para este terceiro momento da essência da experiência, o mais indicado seria certamente Esquilo. Ele encontrou a fórmula, ou melhor, reconheceu o seu significado metafísico, fórmula que expressa a historicidade interna da experiência: aprender pelo sofrer. Esta fórmula não significa somente que nos tornamos inteligentes através do dano e que somente no engano e na deceção chegamos a conhecer mais adequadamente as coisas. Assim compreendida a fórmula deveria ser tão velha como a própria experiência humana. Porém Esquilo pensa mais que isso. Refere-se à razão pela qual isto é assim. O que o homem deve aprender pelo sofrer não é isto ou aquilo, mas a perceção dos limites de ser homem, a compreensão de que as barreiras que nos separam do divino não podem ser superadas. No último extremo, é um conhecimento religioso - aquele conhecimento a partir donde se dá a origem da tragédia grega. Experiência é, pois, experiência da finitude humana. É experimentado, no autêntico sentido da palavra, aquele que é consciente desta limitação, aquele que sabe que não é senhor do tempo nem do futuro. O homem experimentado, propriamente, conhece os limites de toda previsão e a insegurança de todo plano. Nele consuma-se o valor de verdade da experiência. Se em cada fase do processo da experiência adquire uma nova abertura para novas experiências, isto valerá tanto mais para a ideia de uma experiência consumada. Nela a experiência não chega ao seu fim, nem se alcança uma forma suprema de saber (Hegel), mas é onde, na verdade, a experiência está presente por inteiro e no sentido mais autêntico. Chega ao limite absoluto todo dogmatismo nascido da volátil possessão pelo desejo do ânimo humano. A experiência ensina a reconhecer o que é real. Conhecer o que é, vem a ser, pois, o autêntico resultado de toda experiência e de todo querer saber em geral. Mas o que não é, neste caso, isto ou aquilo, "mas o que já não pode ser revogado" (Ranke). A verdadeira experiência é aquela na qual o homem se torna consciente da sua finitude. Nela, o poder fazer e a autoconsciência de uma razão planificadora encontra seu limite. Mostra-se como pura ficção a ideia de que se pode fazer marcha atrás de tudo, de que há sempre tempo para tudo e de que, de um modo ou de outro, tudo retorna. Quem está e atua na história faz constantemente a experiência de que nada retorna. Reconhecer o que é não quer dizer aqui conhecer o que há num momento, mas perceber os limites dentro dos quais ainda há possibilidade de futuro para as expectativas e os planos: ou, mais fundamentalmente, que toda expectativa e toda planificação dos seres finitos é, por sua vez finita e limitada.

Hans-Georg Gadamer, Verdade e Método, , Rio de Janeiro, Editora Vozes, 1986, pag.525 e 526

Tradução de Flávio Paulo Meurer, com adaptações,

 A historicidade da experiência, retoma a velha controvérsia da natureza das leis científicas que ultrapassam o caracter particular e histórico da experiência e se inscrevem  num horizonte de universalidade e intemporalidade. Todo o conhecimento está ligado à reflexão sobre a finitude humana, a partir sobretudo da revolução moderna, da produção do conhecimento de um sujeito historicamente limitado. Embora para Descartes esse sujeito pudesse ser encarado como uma razão descarnada, um sujeito ideal, nenhum sujeito do conhecimento pode ser uma razão descarnada e lógica, ideal que as gerações seguintes se apressaram a desmentir. Poderemos ver o mesmo afã de uma racionalidade crítica imparcial na epistemologia de  Popper, estritamente ligada à lógica da seleção das teorias e à racionalidade do processo, mas ninguém fica convencido que os cientistas, na sua investigação, sejam preferencialmente atentos à falsificação das suas teorias, tão pouco se estas são falsificadas por outras mais abrangentes ou explicativas. Todavia, o que me parece extraordinário no conhecimento científico e que supera esta contínua dúvida que muitos exageram para denegrir o papel da ciência, concluindo, que se nada é certo então é tudo falso, numa lógica maniqueísta perigosa e alucinada, é a capacidade que a ciência tem de reajustar, superar, testar os seus resultados servindo-se de uma linguagem que todos podem usar se assim forem ensinados. Trata-se de uma matéria que pode ser avaliada com algum rigor e reformulada e melhorada segundo critérios estabelecidos e ajustados pela comunidade. A noção de uma linguagem comum e de comunidade é o tópico que pode ultrapassar a questão da finitude como um trabalho em contínuo como um fazer-se. HS

quarta-feira, dezembro 13, 2023

HUME E A JUSTIFICAÇÃO DA REGULARIDADE OU UNIFORMIDADE DA NATUREZA: O PROBLEMA DA INDUÇÃO

 



Colocado na sua forma mais simples, o problema da indução pode ser reduzido ao problema de justificar a crença na uniformidade da natureza. Se a natureza é uniforme e regular no seu comportamento, então o que acontece no passado e presente que observámos é um bom guia para os acontecimentos não observados do passado, presente e futuro. No entanto, os únicos fundamentos para acreditar que a natureza é uniforme são os acontecimentos observados no passado e no presente. Parece que não podemos ir para além dos acontecimentos que observamos sem assumir aquilo mesmo que temos de provar – isto é, que as partes do mundo não observadas operam da mesma maneira que aquelas que observámos. (Este é precisamente o problema apontado por Hume.) Acreditar, portanto, que o sol pode possivelmente não nascer amanhã é, num sentido estrito, lógico, uma vez que a conclusão que ele nascerá amanhã não se segue inexoravelmente das observações passadas.
(…)
Reconhecendo a fraqueza relativa das inferências indutivas (comparadas às dedutivas), um bom pensador redefinirá as conclusões atingidas através da indução, dizendo que elas se seguem não com necessidade mas com probabilidade. Isto resolve o problema? É esta reformulação justificada? Podemos, por exemplo, justificar a ideia que afirma que a repetida observação do passado torna mais provável que o sol amanhã nasça do que o contrário?
O problema está em não haver um argumento dedutivo para fundamentar esta reformulação. Para deduzir esta conclusão com sucesso necessitaríamos da premissa ‘o que aconteceu até agora acontecerá com mais probabilidade amanhã’. Porém, esta premissa está sujeita ao mesmo problema da afirmação mais forte ‘o que aconteceu até agora acontecerá com certeza amanhã’. Tal como a sua contrapartida mais forte, a premissa mais fraca baseia a sua convicção acerca do futuro no que aconteceu até agora e essa base só é justificada se aceitarmos a uniformidade (ou, pelo menos, a continuidade geral) da natureza. Mas a uniformidade (ou continuidade) da natureza é precisamente o que está em questão!
(…)
Apesar destes problemas, parece que não podemos dispensar as generalizações indutivas. Elas são (ou pelo menos têm sido até agora) demasiado úteis para as recusarmos. Constituem a base de muita da nossa racionalidade científica e permitem-nos pensar acerca de matérias sobre as quais nada poderíamos dizer através da dedução. Não podemos de maneira nenhuma rejeitar a premissa ‘o que observámos até agora é o nosso melhor guia para a verdade naquilo que não observámos’, mesmo se esta premissa não pode ela mesma ser justificada sem circularidade.
Há, todavia, um preço a pagar. Temos de reconhecer que o uso da generalização indutiva pressupõe uma crença que de um modo relevante não é fundamentada.


Julian Baggini, Peter Fosl, The Philosopher’s Toolkit (London)

Tradução de Carlos Marques

sábado, dezembro 09, 2023

Hume e Kant: A experiência não é dada é já construção submetida a categorias "a priori".

 




Paolo Pellegrin, Sem título, Alemanha, 2013

Pensar um objeto e conhecer um objeto não é pois uma e a mesma coisa. Para o conhecimento são necessários dois elementos: primeiro o conceito, mediante o qual é pensado em geral o objeto (a categoria), em segundo lugar a intuição, pela qual é dado; porque, se ao conceito não pudesse ser dada uma intuição correspondente, seria um pensamento, quanto à forma, mas sem qualquer objeto e, por seu intermédio, não seria possível o conhecimento de qualquer coisa; pois, que eu saiba, nada haveria nem poderia haver a que pudesse aplicar o meu pensamento. Ora, toda a intuição possível para nós é sensível (estética) e, assim, o pensamento de um objeto em geral só pode  converter-se em nós num conhecimento, por meio de um conceito puro do entendimento, na medida em que este conceito se refere a objetos dos sentidos. A intuição I sensível ou é intuição pura (espaço e tempo) ou intuição empírica daquilo que, pela sensação, é imediatamente representado como real, no espaço e no tempo. Pela determinação da primeira, podemos adquirir conhecimentos a priori de objetos (na matemática), mas só segundo a sua forma, como fenómenos; se pode haver coisas que tenham de ser intuídas sob esta forma é o que aí ainda não fica decidido. Consequentemente, todos os conceitos matemáticos não são por si mesmos ainda conhecimentos, senão na medida em que se pressupõe que há coisas que não podem ser apresentadas a nós a não ser segundo a forma dessa intuição sensível pura. Coisas no espaço e no tempo só nos são dadas, porém, na medida em que são perceções (representações acompanhadas de sensação), por conseguinte graças à representação empírica. Consequentemente, os conceitos puros do entendimento, mesmo quando aplicados a intuições a priori (como na matemática) só nos proporcionam conhecimentos na medida em que estas intuições, e portanto também os conceitos do entendimento, por seu intermédio, puderam ser aplicados a intuições empíricas. Assim, também as categorias não nos concedem por meio da intuição nenhum conhecimento das coisas senão através da sua aplicação possível à intuição empírica, isto é, servem apenas para a possibilidade do conhecimento empírico. A este, porém, chama-se experiência. Eis porque as categorias só servem para o conhecimento das coisas, na medida em que estas são consideradas como objeto de experiência possível.

Immanuel Kant, Crítica da Razão Pura, Lisboa, FCG, 2001, p.174

A causalidade como categoria ou conceito puro que torna possível o entendimento das coisas que são dadas na intuição adequa-se melhor como explicação do que aquela que David Hume dá, sobre a causalidade como projeção da mente que cria uma ilusão a partir da conjunção constante entre objetos. mas há objetos que nos aparecem em conjunção constante e que não nos conduzem à relação de causalidade entre um e outro. Reid aponta o exemplo do dia e da noite, poderíamos dar outros exemplos, o sono e o sonho, não entendemos o sono como causa do sonho, atribuímos ao sonho outras causas psicológicas que não necessariamente o sono. Se a mente projeta a partir dos acontecimentos repetidos impulsionada pelo hábito, porque não o faz sempre? Porque racionalmente não encontra forma de explicar um pelo outro.

quarta-feira, novembro 29, 2023

Causalidade é um princípio da razão ou deriva do modo como nos acostumámos a ver as coisas acontecerem?


Foto: Seymour

"Se procurarmos a origem da ideia de causa, diz Hume, descobriremos que ela não pode ser uma qualidade particular inerente aos objetos; porque objetos dos mais variados tipos podem ser causas e efeitos. O que temos de procurar são relações entre objetos. De facto, descobrimos que as causas e os efeitos têm de ser contíguos entre si, e que as causas têm de ser anteriores aos seus efeitos. Mas isto não é suficiente; achamos ainda que tem de haver uma conexão necessária entre causa e efeito, embora a natureza desta conexão seja difícil de estabelecer.  Hume nega que tenha de haver uma causa para a existência de tudo aquilo que começa a existir.   Sendo todas as ideias distintas separáveis umas das outras, e sendo as ideias de causa e efeito evidentemente distintas, é fácil concebermos um objeto como não existente neste momento, e existente no momento seguinte, sem lhe juntarmos a ideia distinta de uma causa ou de um princípio produtivo.   É evidente que «causa» e «efeito» são termos correlativos, como o são «marido» e «mulher», e que todo o efeito tem de ter uma causa, da mesma maneira que todo o marido tem de ter uma mulher. Mas isto não prova que todos os acontecimentos tenham de ter uma causa, da mesma maneira que, do facto de todos os maridos terem de ter uma mulher, não se segue que todos os homens tenham de ter uma mulher. Tanto quanto sabemos, pode haver acontecimentos sem causas, tal como existem homens que não têm mulher.  Se não há qualquer absurdo em conceber que algo venha à existência ou seja sujeito a alterações sem uma causa, não há, a fortiori, qualquer absurdo em conceber que um acontecimento ocorra sem um tipo particular de causa. Sendo logicamente concebível que muitos efeitos diferentes resultem de uma causa particular, só a experiência pode levar-nos a esperar o efeito real. Mas com base em quê?  O que acontece, afirma Hume, é que observamos que indivíduos pertencentes a uma espécie são constantemente acompanhados por indivíduos pertencentes a outra. «A contiguidade e a sucessão não são suficientes para nos levarem a declarar que quaisquer dois objetos são causa e efeito, a não ser que observemos que estas duas relações são preservadas em diversos exemplos». Mas de que forma nos faz isto progredir? Se a relação causal não pode ser detetada num só exemplo, como pode ela ser detetada em diversos exemplos, se todos os exemplos semelhantes são independentes uns dos outros e não se influenciam uns aos outros?  A resposta de Hume é que a observação da semelhança produz uma nova impressão na mente. Tendo nós observado que um número suficiente de casos de B se seguem a A, sentimos uma determinação da mente em passar de A para B. É aqui que descobrimos a origem da ideia de conexão necessária. A necessidade «mais não é do que uma impressão interna da mente, ou uma determinação para levarmos os nossos pensamentos de um objeto para outro». A impressão da qual deriva a ideia de conexão necessária é a expectativa do efeito quando a causa se apresenta, expectativa essa que constitui uma impressão produzida pela conjunção habitual de ambos.  Por muito paradoxal que possa parecer, não é a nossa inferência que depende da conexão necessária entre causa e efeito, mas é a conexão necessária que depende da inferência que retiramos de uma para a outra. Hume oferece-nos, não uma, mas duas definições de causalidade. A primeira é a seguinte: uma causa é «um objeto precedente e contíguo a outro, sendo todos os objetos semelhantes ao primeiro colocados numa relação de semelhança e contiguidade com os objetos que se assemelham ao segundo». Nesta definição, nada se diz acerca da conexão necessária, e não é feita qualquer referência à atividade da mente. Assim sendo, é-nos apresentada uma segunda definição, mais filosófica que a primeira. Uma causa é «um objeto precedente e contíguo a outro, e de tal maneira unido a ele na imaginação que a ideia de um determina a mente a formar a ideia do outro, e a impressão de um outro.”

Anthony Kenny, História Concisa da Filosofia Ocidental,

REVISÃO CIENTÍFICA Desidério Murcho,  Sociedade Portuguesa de Filosofia

quarta-feira, novembro 22, 2023

A racionalidade desenvolve-se na sua falência

 


Bruce Davidson, rapariga segurando gato, 1947

Não há razão alguma para se estudar filosofia — afirma Hume — salvo a de que, para certos temperamentos, é esta uma maneira agradável de passar o tempo. «Em todos os incidentes da vida, deveríamos, não obstante, conservar o nosso ceticismo. Se acreditamos que o fogo aquece ou que a água refresca, isto é só porque nos dá muito trabalho pensar de outra maneira. Mais ainda: se somos filósofos, deveríamos sê-lo baseados unicamente nestes princípios céticos, e pela inclinação que sentimos no sentido de dedicar-nos a isso.» Se ele abandonasse a especulação, «sinto que eu sairia perdendo quanto ao prazer; e nisto está a origem de minha filosofia». 

A filosofia de Hume, verdadeira ou falsa, é a falência da racionalidade do século XVIII. Como Locke, começa com a intenção de ser sensorial e empírico, sem confiar em nada, mas procurando toda o conhecimento que lhe fosse possível obter por experiência e observação. Mas, possuidor de um intelecto melhor que o de Locke, um poder mais agudo de análise e uma menor capacidade em aceitar inconsistências cómodas, chega à desastrosa conclusão de que experiência e a observação nada ensinam. A crença racional não existe: «Se acreditamos que o fogo aquece ou que a água refresca, isto é só porque nos custa muito trabalho pensar de outra maneira.» Não podemos deixar de crer, mas nenhuma crença pode basear-se na razão. Tampouco uma linha de conduta pode ser mais razoável que outra, já que todas elas são, igualmente, baseadas em convicções irracionais. (…)

Era inevitável que tal refutação da racionalidade fosse seguida de uma grande erupção de fé irracional. A disputa entre Hume e Rousseau é simbólica: Rousseau era louco, mas influente; Hume era são, mas não tinha adeptos. Os empiristas britânicos rejeitaram-lhe o ceticismo sem refutá-lo; Rousseau e seus adeptos concordavam com Hume em que nenhuma crença se baseia na razão, mas consideravam o coração superior à razão permitindo que este os levasse a convicções muito diferentes das que Hume conservava na prática. Os filósofos alemães, de Kant a Hegel, não assimilaram os argumentos de Hume. Digo-o deliberadamente, apesar da crença que muitos filósofos partilham com Kant, de que a sua Crítica da Razão Pura era uma resposta a Hume. Na verdade, estes filósofos — pelo menos Kant e Hegel — representam um tipo de racionalismo “pré-humeano” e podem ser refutados com argumentos “humeanos”. Os filósofos que não podem ser refutados desta maneira são aqueles que não pretendem ser racionais, tais como Rousseau, Schopenhauer e Nietzsche. O desenvolvimento do irracional durante o século XIX e o que passou para o século XX é uma consequência natural da destruição, por Hume, do empirismo.

 É importante, por conseguinte, descobrir se há alguma resposta a Hume dentro de uma filosofia que é total ou principalmente empírica. Se não, não há diferença intelectual alguma entre a sanidade e a loucura. O lunático que se julga um ovo escaldado será condenado unicamente por estar em minoria, ou antes — já que não devemos ter como certa a democracia — por o governo não concordar com ele. Este é um ponto de vista desesperado, e devemos esperar que haja algum meio de nos  livrarmos dele.


Bertrand Russell, História da Filosofia Ocidental (1946), Lx, Relógio D'Água (2017), p.550,551

quarta-feira, novembro 15, 2023

Aprender fazendo não pode ser o único modo de aprender, nem deve ser o mais aplicado.


 Fotografia: Diane Arbus, Miúdos dentro dum casaco, Nova Iorque, 1967

Sob a influência da psicologia moderna e das doutrinas pragmáticas, a pedagogia tornou-se uma ciência do ensino em geral ao ponto de se desligar completamente da matéria a ensinar. O professor – assim nos é explicado – é aquele que é capaz de ensinar qualquer coisa. A formação que recebe é em ensino e não no domínio de um assunto particular. (…) Porque o professor não tem necessidade de conhecer a sua própria disciplina, acontece frequentemente que ele sabe pouco mais do que os alunos. O que daqui decorre é que, não somente os alunos são abandonados aos seus próprios meios, como ao professor é retirada a fonte legítima da sua autoridade enquanto professor. Pense-se o que se pensar, o professor é ainda aquele que sabe mais e é mais competente. Em consequência, o professor não autoritário, aquele que contando com a autoridade que a sua competência lhe poderia conferir, quereria abster-se de todo o autoritarismo, deixa de poder existir.

Foi uma moderna teoria da aprendizagem que permitiu à pedagogia e às escolas normais desempenhar esse pernicioso papel na atual crise da educação. Essa teoria é, muito simplesmente, a aplicação lógica da nossa terceira ideia-base, ideia que foi durante séculos sustentada no mundo moderno e que encontrou a sua expressão conceptual sistemática no pragmatismo. Essa ideia-base é a de que não se pode saber e compreender senão aquilo que se faz por si próprio. 

A aplicação à educação desta ideia é tão primitiva quanto evidente: substituir, tanto quanto possível, o aprender pelo fazer. Considera-se pouco importante que o professor domine a sua disciplina porque se pretende compelir o professor ao exercício de uma atividade de constante aprendizagem para que, como se diz, não transmita um “saber morto” mas, ao contrário, demonstre constantemente esse saber. A intenção confessada não é de ensinar um saber mas a de inculcar um saber-fazer. (…)

Considera-se o jogo como o mais vivo modo de expressão e a maneira mais apropriada para a criança se conduzir no mundo, a única atividade que brota espontaneamente da sua existência de criança. Só aquilo que pode aprender através do jogo corresponde à sua vivacidade. Aprender, no velho sentido da palavra, forçando a criança a adotar uma atitude de passividade, obrigá-la-ia a abandonar a sua própria iniciativa que não se manifesta senão no jogo.

O ensino das línguas ilustra diretamente a estreita ligação entre estes dois pontos: a substituição do aprender pelo fazer e do trabalho pelo jogo. A criança deve aprender falando, quer dizer, fazendo, e não pelo estudo da gramática e da sintaxe. (…) é perfeitamente claro que este método procura deliberadamente manter a criança mais velha, tanto quanto possível, num nível infantil. Aquilo que, precisamente, deveria preparar a criança para o mundo dos adultos, o hábito adquirido pouco a pouco de trabalhar em vez de jogar, é suprimido em favor da autonomia do mundo da infância.

Qualquer que seja a ligação existente entre o fazer e o saber, ou qualquer que seja a validade da fórmula pragmática, a sua aplicação à educação, isto é, ao modo como a criança aprende, tende a fazer da infância um mundo absoluto. Também aqui, sob pretexto de respeitar a independência da criança, ela é excluída do mundo dos adultos para ser artificialmente mantida no seu, tanto quanto este pode ser designado um mundo.”

Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro (1954/1968), A Crise na educação, Lx, Relógio D’Água, 2006, p.192,193,194.

«The crisis in Education» foi pela primeira vez publicado na Partisan Review, 25, 4 (1957),

Arendt escreveu este texto em 1957 na América, eu comecei a dar aulas trinta anos depois. Será atual? As inovações em educação são um contínuo rio que nela desagua, atualidade na era da internet é uma submersão, tão pouco a podemos entender como tal, as chamadas "tecnologias digitais" , o rio  que corre, sempre no momento seguinte, são também exemplo perfeito desta filosofia pragmática do jogo na aprendizagem, do fazer autónomo dos alunos. Mas será essa autonomia verdadeiramente  desenvolvida com este tipo de pedagogia? Refiro-me aos programas digitais, com tutoriais de aprendizagem onde os alunos vão passando etapas até ao resultado final, como se jogassem um jogo de Geografia ou de outra disciplina. No jornal Expresso, desta sexta, dia 10 de Novembro, havia um artigo sobre ocorrências recentes no ensino universitário. Os professores universitários queixavam-se de receber comunicações dos pais dos alunos a exigirem explicação pelas notas dos seus filhos, como se ainda fossem os responsáveis pela educação de homens e mulheres de 20 anos. Infantilização. Sabe-se também que os alunos não prestam atenção nas aulas e que os computadores sempre acesos são muitas vezes um bom pretexto para estar a jogar enquanto o professor ensina. Como professora do ensino secundário defronto-me com esse problema mas, vamos… os alunos são obrigados a estar nas aulas, são adolescentes... mas a metáfora do rio está de novo a adaptar-se aqui, deixamos fluir, e os alunos transportam os mesmos comportamentos de indisciplina, e de desinteresse para todo o lado onde se deparem com algo mais difícil ou "secante". Se nunca proibirmos esses comportamentos, consentimos, e se consentimos agora, esses procedimentos instalam-se, mesmo quando os alunos são adultos, continuando nesse estado de permissividade da iniciativa infantil que, em jovens adultos, é anacrónica e contraproducente. HS

quinta-feira, novembro 02, 2023

A obrigação de ajudar


 Síria 2014

Suponhamos que me apercebo de que uma criança caiu a um lago e está em risco de se afogar. Alguém duvida que eu devia entrar no lago e tirar de lá a criança? Isso implicaria ficar com a roupa cheia de lama entre outros inconvenientes; no entanto, em comparação com a morte evitável da criança, isso é insignificante. Um princípio plausível que apoiaria o juízo de que devo tirar a criança do lago é o seguinte: se estiver nas nossas mãos evitar que aconteça um grande mal, sem com isso sacrificarmos nada de importância moral comparável, devemos fazê lo. […] Se este princípio fosse levado a sério e orientasse as nossas ações, a nossa vida e o nosso mundo sofreriam uma transformação radical. Porque o princípio aplica-se não apenas às raras situações em que alguém pode salvar uma criança de morrer afogada num lago, mas à situação quotidiana em que podemos ajudar quem vive na pobreza absoluta. Ao dizer isto, parto do princípio de que a pobreza absoluta, com fome e subnutrição, falta de abrigo, analfabetismo, doença, mortalidade infantil elevada e curta esperança de vida, é uma coisa má. E parto do princípio de que está ao alcance dos ricos minorar a pobreza absoluta sem sacrificar nada de importância moral comparável. Se estes dois pressupostos e o princípio que discutimos estão corretos, temos a obrigação de ajudar quem vive na pobreza absoluta, obrigação que não é menor que a nossa obrigação de salvar uma criança de se afogar num lago. Não ajudar seria um mal, seja ou não intrinsecamente equivalente a matar. Ajudar não é, como se pensa habitualmente, um ato de caridade digno de elogio, mas que não é um mal omitir; é algo que todos deviam fazer.


Peter Singer, Ética Prática, Gradiva, pp. 250 -251