terça-feira, abril 20, 2010













                               DIFERENÇA E IDENTIDADE

A minha colega e “co-produtora” deste blogue (além de pessoa da qual amigavelmente muitas vezes discordo em matéria filosófica), Helena Serrão, postou um texto no passado dia 15 de Abril que suscitou em mim a vontade de tecer alguns comentários críticos.
No referido texto é defendida a seguinte tese: o liberalismo (político) está a sofrer uma metamorfose: está a passar de uma defesa dos direitos do indivíduo para uma defesa do direito à “diferença”, entendendo-se por “diferença” uma característica que de facto o indivíduo possui: por exemplo, o facto de ser mulher, ou homossexual, ou cigano, etc.


O que tenho a dizer sobre isto é o seguinte: se a autora deste texto tivesse razão na sua análise histórica, o que teríamos não era uma metamorfose do liberalismo, mas um abandono ou desaparecimento do liberalismo. Não discutirei, no entanto, a matéria histórica, mas o conteúdo filosófico subjacente.
O liberalismo, todo ele, assenta numa premissa metafísica: cada ser humano é um ser autónomo, no sentido em que é capaz de determinar os seus fins de acordo com critérios de conduta independentes e objectivos (não precisando, se assim se emancipar, de quem lhe diga o que deve ou não fazer). Este pressuposto é naturalmente discutível. No entanto, as ideias que quero aqui deixar não dependem felizmente de se tomar partido sobre o assunto. O que importa salientar é que o liberalismo político, a ideia de que a liberdade individual deve ser protegida tanto quanto possível (sobretudo do estado e da "maioria"), deriva de uma posição metafísica específica, precisamente do postulado referido acima da autonomia de todo o indivíduo humano (entendido por isso como “pessoa”).


Daqui se seguem dois pontos que gostaria de salientar para rebater o argumento da autora do excerto “Igualdade e diferença”:

a)    a) A defesa do direito à diferença é um corolário natural do direito mais fundamental do direito à liberdade individual. Logo, o liberalismo não precisa de se metamorfosear para reivindicar esse mesmo direito à diferença. Ele está, como agora se diz, no seu ADN. (Os liberais, e não a esquerda marxista, foram os grandes pioneiros da defesa do direito à diferença!) 


  b) A hierarquização dos direitos, em termos de mais ou menos fundamentais, é essencial para não se cair em equívocos. Na perspectiva liberal, o homossexual (por exemplo) não tem direito à sua homossexualidade por ser homossexual, mas por ser uma “pessoa”. Segue-se que o liberalismo só se mantém liberal, por assim dizer, enquanto o direito à diferença depender do direito à liberdade individual. O que os liberais querem vincar é precisamente isto: no dia em que o direito à diferença se autonomizar do direito à liberdade individual, o indivíduo deixa de estar protegido enquanto indivíduo. E, portanto, paradoxalmente, o homossexual, ou a mulher, ou o cigano, enquanto tais, deixam também de estar protegidos enquanto tais. É esta a perspectiva liberal (segundo a entendo), e é por isso que a metamorfose defendida pelo texto aqui em apreciação seria uma contradição nos termos.

Uma reflexão metafísica final: será que me esgoto naquilo que de facto sou, neste caso, homem, heterossexual, português, filho, casado, professor, etc., ou será que sou alguém que (ocasional e idealmente) pode distanciar-se da sua condição e olhar para ela de um ponto de vista razoavelmente independente? Por outro lado: posso respeitar a liberdade dos outros (e a sua “diferença”) se nunca for capaz de pôr entre parêntesis a minha condição e os interesses (privados) que lhe estão necessariamente associados? Um liberal responderia negativamente às duas questões. Por conseguinte, o liberalismo estaria morto se defendesse a “diferença” sem defender primeiro o indivíduo.


Carlos Marques

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