domingo, outubro 16, 2011


SERÁ QUE O MIGUEL ASSASSINO MERECE CASTIGO?, parte II


Tomás e a sua ‘prova’ de que é livre
O Tomás e a Carolina estão sentados no café Nicola de Lisboa. Costumam discutir enigmas filosóficos durante o almoço e hoje conversam sobre o livre-arbítrio. A Carolina acabou de explicar ao Tomás o argumento nunca-merecemos-castigo. Mas este não ficou convencido. Aponta para o prato da Carolina, que tinha pedido pastéis de bacalhau.
Tomás: Então achas que se eu agora atirasse o teu almoço para o chão e me pusesse aos saltos em cima não seria culpado disso e censurável?
A Carolina olhou para o prato um pouco nervosa.
Carolina: Uhm… sim. Mas não vais fazer isso, pois não?
Tomás: Não. Mas se fizesse? Aposto que ias achar que era censurável.
Carolina: Bem, iria sentir-me provavelmente muito chateada. Admito. Mas também fico muito chateada quando o meu computador deixa de funcionar ou quando o carro não pega. Isso não significa que eu pense que o meu computador ou o meu carro merecem censura e castigo por não funcionarem, pois não? Não significa que eu acredite que têm livre-arbítrio.
Tomás: Não, acho que não. Mas, insisto, parece-me óbvio que sou livre. E posso prová-lo.
Carolina: ‘Tá bem, vamos lá à tua prova.
Tomás: Muito bem. Neste momento tenho liberdade para levantar o braço ou deixá-lo quieto.
O Tomás mantém-se no seu lugar sem se mexer, e depois, subitamente, levanta o braço.
Tomás: Aqui está, levantei o braço, mas tinha liberdade para não o fazer. Podia ter feito tanto uma coisa como outra. Portanto, como vês, sou livre, não sou uma marioneta da natureza.
Será que o Tomás provou que é livre? Não, não provou. É isso que irá explicar a Carolina.

O argumento da água da Carolina
Carolina: Podes sentir-te livre. Mas isso não assegura que sejas livre. É verdade que podes não conhecer as leis que te compelem a comportares-te como te comportas. Mas o facto de não as conheceres não significa que elas não existam. Elas existem. Foi isso mesmo que a ciência mostrou.
Tomás: Mas repara que às vezes levanto o braço e outras vezes não. Portanto, como vês, tenho liberdade para fazer uma coisa ou a outra.
Carolina: Mas o facto de umas vezes levantares o braço e outras não não mostra que sejas livre.
A Carolina aponta para a água que tem no seu copo.
Carolina: Vê, a água umas vezes está quieta como aqui no copo, mas outras vezes corre em riachos, na forma de chuva ou mantém-se suspensa nas nuvens. Será que o facto de a água ter estes comportamentos diferentes mostra que não é governada por leis da natureza?
Tomás: Não, acho que não.
Carolina: Certo. Aqui tens. O facto de te comportares de muitos modos diferentes não mostra que não és controlado pelas mesmas leis.
Tomás: Mas a água comporta-se de modo diferente apenas porque as circunstâncias são diferentes. A água líquida às vezes corre outras vezes não, mas isso acontece porque uma vezes está num plano inclinado e outras vezes não. A água comporta-se sempre exactamente da mesma maneira se as circunstâncias forem exactamente as mesmas.
Carolina: É verdade.
Tomás: Mas eu não me comporto da mesma maneira, mesmo quando as circunstâncias são exactamente as mesmas. Ontem viemos ao Nicola e pedi uma sopa. Hoje pedi uma salada. No entanto, as circunstâncias são precisamente as mesmas das de ontem. Por isso, como vês, sou livre e a água que está nesse copo não.
Carolina: Não, não és. Há pequenas diferenças entre as circunstâncias de hoje e as de ontem. A tua constituição interna é diferente hoje. Por exemplo, a química do teu cérebro é um pouco diferente. São accionados diferentes padrões neuronais. Há diferenças de toda a espécie. São essas diferenças que explicam porque é que te comportas hoje de modo diferente, que explicam porque é que fazes uma escolha diferente. Se a situação fosse hoje absolutamente idêntica à de ontem, até ao último dos átomos, terias escolhido também hoje a sopa.
Parece que a Carolina tem razão. Pode parecer-te óbvio que és livre. Mas um exame mais cuidadoso mostra que não é assim tão óbvio. De facto, ainda não conseguimos encontrar nada de errado no argumento de que somos todos marionetas da natureza.

A liberdade da alma
Mas o Tomás não é rapaz para desistir facilmente.
Tomás: Continuo a acreditar que sou livre. Parece-me que tens uma perspectiva demasiado científica do universo, uma perspectiva muito limitada. É verdade que a ciência é uma coisa poderosa. Porém, há muita coisa no ser humano que a ciência nunca explicará.
Carolina: Que queres dizer com isso?
Tomás: Quero dizer que cada um de nós tem uma alma.
Carolina: Uma alma?
Tomás: Sim, a tua alma é a tua mente consciente, a parte de ti que faz escolhas e toma decisões.
Carolina: Percebo.
Tomás: É algo que está fora da ordem natural. Não faz de modo algum parte do universo físico. 
Carolina: Uma coisa não física?
Tomás: Precisamente. Pode existir mesmo independentemente, sem um corpo físico.
Muitas pessoas religiosas acreditam na existência da alma, como se sabe. Acreditam que a morte do corpo físico não significa o fim da pessoa. O que é essencial à pessoa – a sua alma – pode continuar a existir. É a alma, conforme acreditam os cristãos, que vai para o céu depois de morrermos. Na opinião da Carolina, as pessoas são coisas físicas, não separáveis dos seus corpos.
Mas na opinião do Tomás, cada pessoa tem uma alma. A alma é algo separado, algo não físico.
Mas o que têm as almas a ver com o livre-arbítrio? Eis a explicação do Tomás.
Tomás: Sendo não física, a alma não é controlada pelas leis físicas. Sendo separada do mundo físico pode fazer o que quer. Logo, é livre.
Trata-se de uma solução engenhosa. Terá, afinal, o Tomás explicado como podemos ser livres?

O problema da teoria da alma
Carolina: Mas ainda não me deste nenhuma razão para supor que a alma existe, não é assim?
Tomás: Bem, na verdade não. Ainda não.
Carolina: Em qualquer caso, mesmo que as almas existam de facto isso não faria que agíssemos livremente.
Tomás: E porque não?
Carolina: Porque os nossos corpos são físicos. Portanto, estão sob o controlo das leis da natureza. O que fazem é determinado antecipadamente pelo modo como as coisas são fisicamente. E isso significa que, seja como for, os nossos corpos não podem fazer coisas diferentes daquelas que de facto fazem.
O Tomás mostra-se surpreendido.
Tomás: Acho que não estou a perceber.
Carolina: Bem, suponhamos que tens razão e que eu sou uma alma não física. Na tua opinião, tenho liberdade para decidir se dou uma dentada naquele bolo ou bebo um pequeno gole de água. Decido beber um gole de água. Mas se o determinismo é verdadeiro, o que acontece ao meu corpo está já fixado pelas leis da natureza. Se as leis da natureza dizem que o meu braço se estica e agarra o bolo, é isso que acontecerá, seja o que for que eu decida. Por conseguinte, mesmo se temos realmente almas e se elas são livres, isso não nos daria controlo sobre o que fazem os nossos corpos.
Tomás: Pois, estou a ver.
Carolina: De facto, se tivéssemos almas, elas estariam desligadas dos nossos corpos, incapazes de ter algum efeito sobre o que estes fazem. Por isso, e como é claro que não podemos influenciar o que os nossos corpos fazem, segue-se que não temos alma.
Esta linha de argumentação é interessante. Se o determinismo é verdadeiro, parece realmente seguir-se que não temos alma.

Será o cérebro excepção às leis da natureza?
O Tomás não se deixa persuadir pelo argumento da Carolina.
Tomás: Estás simplesmente a partir do pressuposto de que o que teu corpo faz está fixado pelas leis da natureza e pelo modo como as coisas são fisicamente. Mas isso não é verdadeiro. A tua alma pode interferir e afectar o que se passa a nível físico.
Carolina: Como pode ela fazer isso?
Tomás: É como se a alma e o cérebro estivessem equipados com pequenos emissores e receptores. Quando decido que quero levantar o braço, a minha alma transmite um sinal ao meu cérebro. Isso faz que aconteça algo no meu cérebro, que por seu turno faz que sejam enviados para o meu braço sinais eléctricos. E assim o meu o meu braço levanta-se.
Carolina: Isso é ridículo! Significaria que algo acontece no teu cérebro que não se deve a uma causa física. Sendo causado por um sinal enviado por uma causa não física – a tua alma – não seria fisicamente determinado.
Tomás: Exactamente.
 Carolina: Mas todo o acontecimento físico tem uma causa física. Trata-se de uma lei da natureza.
Tomás: Sim, os acontecimentos físicos têm, em termos gerais, causas físicas. Mas há uma excepção à regra: o cérebro humano. Acontecem algumas coisas no cérebro que não têm uma causa física. Há coisas que acontecem no cérebro que são causadas pela alma – algo não físico.
Carolina: Então as leis da natureza verificam-se em todo o universo com uma única excepção: o cérebro humano?
Tomás: Sim.
Carolina: Isso é um grande disparate científico!
 A explicação de Tomás sobre a interacção entre alma e corpo é realmente difícil de engolir. A ideia de que as leis da natureza se verificam em todo o universo com uma única excepção, o cérebro humano, é bastante implausível. Porquê supor que há uma excepção às leis da natureza? (...)

O enigma
Neste capítulo, considerámos um enigma filosófico famoso: o enigma tem origem mo argumento do nunca-se-merece-castigo. Os filósofos chamam-lhe o enigma do livre-arbítrio.
Os filósofos debatem-se com o enigma há séculos. Mesmo hoje, em universidades de todo o mundo, filósofos e cientistas continuam a procurar resolvê-lo.
O enigma é o seguinte: parece que, se o determinismo é verdadeiro, não podemos agir livremente. Mas se assim é, parece que nenhum de nós merece castigo pelo que faz, não é verdade?
Stephen Law, The Outer Limits. More Mysteries from the Philosophy Files (Londres, 2001, cap. 3). Trad. Carlos Marques.

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