quinta-feira, dezembro 03, 2015

As verdades com que não podemos deixar de contar.


Thomas Hoepker, NY, 1963

O que é a filosofia senão um modo de refletir, não tanto sobre aquilo que é verdadeiro e aquilo que é falso, mas sobre a nossa relação com a verdade? Às vezes lamentamo-nos por não existir em França uma filosofia dominante. Muito melhor. Não há nenhuma filosofia soberana, é verdade, mas há uma filosofia ou, melhor, há filosofia em atividade. A filosofia é o movimento pelo qual nos libertamos – com esforços, hesitações, sonhos e ilusões – daquilo que passa por verdadeiro, a fim de buscar outras regras do jogo. A filosofia é o deslocamento e a transformação das molduras de pensamento, a modificação dos valores estabelecidos, e todo o trabalho que se faz para pensar diversamente, para fazer diversamente, para tornar-se outro do que se é. Sob este ponto de vista, os últimos trinta anos foram um período de intensa atividade filosófica. A relação entre a análise, a pesquisa, a crítica ” culta ” ou ” teórica ” e as mudanças no comportamento, a conduta real das pessoas, a sua maneira de ser, a sua relação consigo mesmas e com os outros, foi constante e considerável. Há pouco eu dizia que a filosofia é um modo de refletir sobre a nossa relação com a verdade. É preciso acrescentar: é um modo de perguntar-se: se esta é a relação que temos com a verdade, como devemos comportar-nos?
Creio que já foi feito e que se está a continuar a fazer um trabalho considerável e múltiplo, que modifica, contemporaneamente, o nosso vínculo com a verdade e a nossa maneira de nos comportarmos. E isso faz-se numa  ligação complexa entre uma série de pesquisas e um conjunto de movimentos sociais. É a própria vida da filosofia. É compreensível que alguns lastimem o vazio atual e busquem, na ordem das ideias, um pouco de monarquia. Mas aqueles que, pelo menos uma vez na vida, provaram um tom novo, uma nova maneira de olhar, um outro modo de fazer, esses, creio, nunca sentirão a necessidade de se lamentar porque o mundo é um errado, a história está farta de inexistências; é tempo para que fiquem calados, permitindo assim que não se ouça mais o som da reprovação …
Michel Foucault
Archivio Foucault. Vol. 3.
Estetica dell’esistenza, etica, politica. 1994, pp. 137-144. Tradução portuguesa de Selvino José Assmann. 


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