segunda-feira, janeiro 11, 2016

Verdade de razão e de facto


Nicolas Muller,  1938, Espanha

Porquanto, do ponto de vista daquele que diz a verdade, a tendência para se transformar o facto em opinião, suprimindo a linha divisória entre eles, não é menos embaraçosa que o transe em que se encontra o contador da verdade tão vigorosamente simbolizado na Alegoria da Caverna, em que o filósofo, de regresso da sua viagem solitária pelo céu das ideias sempre eternas, tenta comunicar a sua verdade à multidão com o resultado de a ver diluir-se numa diversidade de modos de ver que, para ele, não passam de ilusões e em que vê a verdade  rebaixada ao nível incerto da opinião, a tal ponto que, agora, de volta à caverna a própria verdade veste o disfarce de dokei uoi (parece-me) - da doxa (opinião) que o filósofo tinha esperado abandonar para sempre. No entanto o repórter da verdade de facto está ainda numa situação mais delicada. Ele não regressa de uma viagem solitária de regiões situadas para além do mundo dos assuntos humanos e também não pode consolar-se com o pensamento de que se tornou um estranho neste mundo. Similarmente, não temos o direito de nos consolarmos com a noção de que a sua verdade, se verdade aí houver, não é deste mundo. se as verdade de facto que ele enuncia não são aceites - as verdades vistas e testemunhadas com os olhos do corpo e não com os olhos do espírito - emerge a suspeita de que é talvez do domínio público negar ou perverter toda a espécie de verdade, como se os homens fossem incapazes de chegar a um entendimento com a sua inflexibilidade e teimosia obstinada.  se fosse assim, as coisas pareceriam ainda mais desesperadas do que Platão as supunha, porque a verdade de Platão, encontrada e renovada na solidão filosófica, transcende, por definição, o domínio da multidão, isto é, o mundo dos negócios humanos.


Hannah Arendt, Verdade e Política, 2005, Lisboa Ed, p. 85,86

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