sábado, fevereiro 27, 2021

O conceito de facto como motor da revolução científica (cont)

 

Ilustração deTom Lovell


“ Mas as palavras são uma coisa e os conceitos outra. A palavra “facto” diz-nos pouco sobre o estabelecimento e a refutação dos factos. Na astronomia isto é verdade mas, em outros domínios da investigação científica, a palavra consolida uma revolução conceptual.

De acordo com os princípios-padrão da revolução renascentista, havia, fundamentalmente, duas espécies de argumento: os argumentos da razão e os argumentos de autoridade. Havia vários tipos de argumentos reunidos sob o letreiro de “autoridade”: argumentos de “costume, opinião pública, antiguidade, testemunhos dos especialistas na sua própria arte, o juízo dos sábios ou de muitos ou dos melhores”1

Portanto, quando em 1651 pascal esboçou uma introdução ao seu tratado incompleto sobre o vácuo, começou por distinguir duas fontes de conhecimento: razão e autoridade. Como é que sabemos os nomes dos reis de França ao longo da história? Pela autoridade: o testemunho documental está classificado sob a autoridade. Mas de repente e vindo do nada, pascal apresenta-nos a experiência dos sentidos como complemento da razão (embora alguns autores tenham classificado os sentidos no domínio da autoridade). Portanto as decisões sobre a existência do vácuo devem ser tomadas não apelando à autoridade mas com base na experiência dos sentidos e da razão. E onde se encaixa o testemunho pessoal de pascal sobre o desfecho das suas experiências? Não o diz. (…) O testemunho, como forma de autoridade, só parece relevante em condições muito restritas. O facto de todos os seus argumentos estarem nos argumentos finais resultantes do testemunho não lhe parece ter ocorrido.

Este esquema tradicional foi revolucionado por Hobbes. No que lhe dizia respeito, havia só duas fontes de conhecimento: a razão, por um lado, e a experiência, por outro, com a memória e o testemunho, sendo que todos estes elementos estabeleciam as matérias de facto. No âmbito deste esquema, não havia lugar para o hábito, a opinião pública, a antiguidade ou o juízo dos sábios mas o local do testemunho era claro: como a memória, representava uma forma substituta da experiência imediata dos sentidos. Hobbes não diria que herdamos da autoridade o nosso conhecimento dos reis de França. O que teria dito é que o retiramos de imediato do testemunho e, finalmente, da experiência dos sentidos.

A palavra “facto” simbolizou este novo estatuto concedido ao testemunho. (…) Assim, antes da invenção do facto, a o apelo ao testemunho era visto como um apelo à autoridade (e até Digby, que escreveu em 1658, as testemunhas visuais eram pensadas como autoridades): as testemunhas, digamos assim eram vistas como testemunhas abonatórias e não testemunhas visuais. Depois do facto, a testemunha visual torna-se uma espécie de testemunha virtual (….) Com o testemunho separado da autoridade, o que antes era autoridade torna-se, nas palavras de Glanvill, simplesmente “bagagem velha e inútil”. Sprat foi ainda mais contundente: livrarem-se da tirania dos antigos implicava apenas deitar fora aquilo que ele considerava “ o lixo”.

Depois da invenção do facto, o testemunho podia ser encarado como uma espécie de desconfiança sistematizada. No fim, todos os sistemas de conhecimento requerem que a pessoa deposite a sua confiança em alguém, em alguma coisa ou em algum procedimento. Mas salientar o papel incontestável da confiança na nova ciência é correr o risco de não reparar na grande parte do iceberg que se encontra escondida debaixo de água. Boyle afirmava ser de confiança por ter aprendido a desconfiar dos Della Portas deste mundo, esperando ensinar os outros a lerem a sua obra com o mesmo espírito cético com que ele lera o trabalho de Della Porta. A nova ciência, comparada com o que acontecera antes, era baseada na desconfiança e não na confiança.

 

David Wootton, A invenção da ciência, Lx, Temas e debates, 2017, p. 374,375,376

 

1.Pierre du Moulin 1598, citado por Serjeanston "Testimony and proof” (1999)

 

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