terça-feira, novembro 02, 2021

O filósofo é, antes de tudo, um homem


Fotografia Alex Webb

O mero filósofo é geralmente uma personalidade pouco admissível no mundo, pois supõe -se que ele em nada contribui para o benefício ou para o prazer da sociedade, porquanto vive distante de toda comunicação com os homens e envolto em princípios e noções igualmente distantes da sua compreensão. Por outro lado, o mero ignorante é ainda mais desprezado, pois não há sinal mais seguro de um espírito grosseiro, numa época e numa nação em que as ciências florescem, do que permanecer inteiramente destituído de toda espécie de gosto por estes nobres entretenimentos. Supõe-se que o caráter mais perfeito se encontra entre estes dois extremos: conserva igual capacidade e gosto para os livros, para a sociedade e para os negócios; mantém na conversação, discernimento e delicadeza que nascem da cultura literária; nos negócios, a probidade e a exatidão que resultam naturalmente de uma filosofia conveniente. (…) 

O homem é um ser racional e, como tal, recebe da ciência a sua adequada nutrição e alimento. Mas os limites do entendimento humano são tão estreitos que pouca satisfação se pode esperar neste particular, tanto pela extensão como pela segurança das suas aquisições. O homem é um ser sociável do mesmo modo que racional. No entanto, nem sempre pode usufruir de uma companhia agradável e divertida ou conservar o gosto adequado para ela. O homem é também um ser ativo, e esta tendência, bem como as várias necessidades da vida humana, submete-o necessariamente aos negócios e às ocupações; todavia, o espírito precisa de algum repouso, já que não pode manter sempre a sua inclinação para o cuidado e o trabalho. Parece, pois, que a Natureza indicou um género misto de vida como o mais apropriado à raça humana, e que ela secretamente advertiu os homens de não permitirem a nenhuma destas tendências arrastá-los em demasia, de tal modo que os torne incapazes para outras ocupações e entretenimentos. Tolero a vossa paixão pela ciência, diz ela, mas fazei com que vossa ciência seja humana de tal modo que possa ter uma relação direta com a ação e a sociedade. Proíbo-vos o pensamento abstruso e as pesquisas profundas; punir-vos-ei severamente pela melancolia que eles introduzem, pela incerteza sem fim na qual vos envolvem e pela fria receção que os vossos supostos descobrimentos encontrarão quando comunicados. Sede um filósofo, mas, no meio de toda vossa filosofia, sede sempre um homem.

David Hume, Ensaio sobre o entendimento humano, Secção I, Nova Acrópole,

Tradução Anoar Aiex, 

Sem comentários: