domingo, fevereiro 12, 2023

A comunidade como origem e garantia dos direitos humanos individuais.

 


Quanto mais elevado era o número de pessoas sem direitos, maior era a tentação de olhar menos para o procedimento dos governos opressores e mais para a condição dos oprimidos. E era clamoroso que essas pessoas, embora perseguidas por algum pretexto político, já não constituíssem, como sempre acontecia com os perseguidos no decorrer da história, um risco e uma imagem vergonhosa para os opressores; não eram consideradas, nem pretendiam ser, inimigos ativos, mas eram e não pareciam ser outra coisa senão seres humanos cuja própria inocência — de qualquer ponto de vista e especialmente do ponto de vista do governo opressor — era o seu maior infortúnio. A inocência, no sentido de completa falta de responsabilidade, era a marca da sua privação de direitos e o selo da sua perda de posição política. Portanto, só aparentemente a necessidade da imposição dos direitos humanos se relaciona com o destino dos autênticos refugiados políticos. Estes, necessariamente pouco numerosos, ainda gozam do direito de asilo em muitos países, e esse direito age, de maneira informal, como genuíno substituto da lei nacional. Um dos aspetos surpreendentes da nossa experiência com os apátridas que podem beneficiar-se legalmente com a perpretação de um crime é o fato de que parece mais fácil privar da legalidade uma pessoa completamente inocente do que alguém que tenha cometido um crime. Assumiu uma horrível realidade o famoso chiste de Anatole France — "se eu for acusado de roubar as torres de Notre Dame, a única coisa que posso fazer é fugir do país". Os juristas habituaram-se a pensar na lei em termos de castigo, o que realmente nos priva de certos direitos; para eles pode ser mais difícil que para um leigo reconhecer que a privação da legalidade, isto é, de todos os direitos, já não se relaciona com crimes específicos.

 

Essa situação é um exemplo das muitas perplexidades inerentes ao conceito dos direitos humanos. Não importa como tenham sido definidos no passado (o direito à vida, à liberdade e à procura da felicidade, de acordo com a fórmula americana; ou a igualdade perante a lei, a liberdade, a proteção da propriedade e a soberania nacional, segundo os franceses); não importa como se procure aperfeiçoar uma fórmula tão ambígua como a busca da felicidade, ou uma fórmula antiquada como o direito indiscutível à propriedade; a verdadeira situação daqueles a quem o século XX jogou fora do âmbito da lei mostra que esses são direitos cuja perda não leva à absoluta privação de direitos. O soldado, durante a guerra, é privado do seu direito à vida; o criminoso, do seu direito à liberdade; todos os cidadãos, numa emergência, do direito de buscarem a felicidade; mas ninguém dirá jamais que em qualquer desses casos houve uma perda de direitos humanos. Por outro lado, esses direitos podem ser concedidos (se não usufruídos) mesmo sob condições de fundamental privação de direitos. A calamidade dos que não têm direitos não decorre do fato de terem sido privados da vida, da liberdade ou da procura da felicidade, nem da igualdade perante a lei ou da liberdade de opinião — fórmulas que se destinavam a resolver problemas dentro de certas comunidades — mas do fato de já não pertencerem a qualquer comunidade.

A sua situação, angustiante, não resulta do fato de não serem iguais perante a lei, mas sim de não existirem mais leis para eles; não de serem oprimidos, mas de não haver ninguém mais que se interesse por eles, nem que seja para oprimi-los. Só no último estágio de um longo processo, o seu direito à vida é ameaçado; só se permanecerem absolutamente "supérfluos", se não se puder encontrar ninguém para "reclamá-los", as suas vidas podem correr perigo. Os próprios nazis começaram a sua exterminação dos judeus privando-os, primeiro, de toda condição legal (isto é, da condição de cidadãos de segunda classe) e separando-os do mundo para juntá-los em guetos e campos de concentração; e, antes de acionarem as câmaras de gás.

 

                                                                              Hannah Arendt, As origens do totalitarismo, p.308

 

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