quarta-feira, outubro 25, 2023

A política como espaço de humanidade

 


Jim Pringle, Exodo Palestiano, 1948


A época de guerras e revoluções que Lenine predisse para este século e que estamos de facto a viver tornou, a uma escala realmente sem precedentes, o que acontece em política um fator fundamental do destino pessoal de toda a gente. Mas por toda a parte em que este destino se desenrolou na plenitude da sua força, e por toda a parte em que os seres humanos foram colhidos pelo turbilhão dos acontecimentos, esse destino causou calamidades. E não há consolação para a calamidade que a política trouxe às pessoas, nem para a calamidade ainda maior com que hoje ameaça toda a humanidade. As guerras do século XX não são “tempestades de aço” (Jünger) que varrem a atmosfera política, nem “a continuação da política por outros meios” (Clausewitz): são catástrofes monstruosas que podem transformar o mundo num deserto e a terra em matéria sem vida. Por outro lado, tudo o que estas revoluções -se as considerarmos seriamente, como Marx fazia, “as locomotivas da história” (A luta de classes em França,1848-1850) – demonstraram com certa clareza foi que o comboio da história corre manifestamente em direção a um abismo, e que as revoluções, longe de terem sido capazes de impedir a calamidade, só conseguiram acelerar atrozmente a velocidade do seu desenrolar-se.

Foram as guerras e as revoluções, e não o funcionamento dos governos parlamentares e dos aparelhos dos partidos democráticos, que moldaram as experiências políticas fundamentais do século XX. Ignorá-las equivale a não vivermos no mundo em que de facto vivemos. (…) O que as guerras e as revoluções têm em comum é o facto de estarem sob o signo da força bruta. Se as guerras e as revoluções são as experiências políticas fundamentais do nosso tempo, tal significa que estamos a mover-nos essencialmente sobre um terreno de experiência violenta que nos impele a equacionarmos violentamente a ação política. Este modo de equacionar as coisas pode revelar-se fatal, porque nas condições presentes a única conclusão possível é que a ação política se torna sem sentido, o que não deixa de ser bem compreensível dado o enorme papel que a violência desempenhou efetivamente na história de todos os povos. (…) Se uma ação política que não se coloca sob o signo da força bruta não alcança os seus fins – como na realidade acontece sempre -, isso não torna a ação política nem infundada nem sem sentido. Não passa a ser infundada porque nunca visou um fundo, quer dizer um fim, mas se orientou apenas para objetivos, com maior ou menor sucesso; e não passa a ser sem sentido porque no vaivém do discurso que se troca entre indivíduos e povos, entre Estados e nações, começa por ser criado um espaço em que tudo o mais tem lugar. Aquilo que em linguagem política se chama “um corte de relações” é o abandono desse espaço-entre, que toda a ação violenta começa por destruir antes de empreender a aniquilação daqueles que vivem nas suas margens.

Hannah Arendt, A promessa da política, retirado de “The Literary Trust of Hannah Arendt and Jerome Kohn” (2005), Relógio D’Água, Lx, 2007,  p.159, 160 e 161


Este é o século XXI e a sensação é a mesma. A história caminha para o abismo. A força bruta cresce na proporção direta da descrença no diálogo, nesse espaço político comum entre nações; a política. A política pode negociar situações pacíficas porque se gera,  alimenta e respira no espaço comum, o espaço humano, onde toda a diversidade humana está incluída, independentemente da etnia ou religião ou partido, esse espaço-entre. O seu reconhecimento por parte das nações/Estados que se digladiam e a necessidade marcante de renovação e de verdadeira ação, poderiam ser uma luz ao fundo do túnel. Guterres ontem tentou dizer que a força bruta surge da desesperança, pela falta de reconhecimento da humanidade do outro, perpetrando sobre ele toda a espécie de humilhações (Israel sobre a Palestina). Como representante das Nações Unidas, deve ter um olhar sobre a história, reconhecer essas humilhações sistemáticas e consentidas pelo Ocidente.HS

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