segunda-feira, junho 08, 2020

A Fé sendo o oposto da razão é a mais alta das virtudes humanas - Kierkegaard



Sacrifício de Isaac, Caravaggio, (1590-1610)


E é assim de facto. Acaso o espírito da mesquinha burguesia que observo na vida e que não julgo pelas minhas palavras, mas pelos meus atos, não será realmente o que parece? E será ela o verdadeiro prodígio? Podemos admiti-lo, porque o nosso herói da fé oferecia uma flagrante semelhança com esse espírito; não se tratava de um humorista nem de um ironista, mas de alguma coisa de muito diferente. Em nossos dias fala-se demasiado de ironia e de humor, sobretudo aquelas pessoas que não conseguiram nunca fazer nada, mas que, apesar disso sabem explicar tudo. Pessoalmente não desconheço essas duas paixões, sei um pouco mais acerca delas do que se diz nas coleções alemãs e germano-dinamarquesas. Sei, por consequência, que são essencialmente diferentes da paixão da fé. A ironia e o humor refletem-se sobre si próprios e pertencem, por isso, à esfera da resignação infinita; encontram seus motivos no fato de o indivíduo ser incomensurável com a realidade.
Apesar do mais vivo desejo, não posso efetuar o último, o paradoxal movimento da fé, quer ele seja dever ou outra coisa. Tem alguém o direito de afirmar que pode fazê-lo? Cabe-lhe a ele decidir; é um assunto entre ele e o ser eterno, objeto da fé, saber se pode, a esse respeito, acomodar-se. O que está ao alcance de qualquer homem é o movimento da resignação infinita e, pela minha parte, não hesitaria em acusar de covardia quem quer que se julgasse incapaz de o realizar. Porém, em relação à fé, já é outra questão. Não é permitido a ninguém fazer acreditar aos outros que a fé tem pouca importância ou é coisa fácil, quando é, pelo contrário, a maior e a mais penosa de todas as coisas.
A história de Abraão é interpretada de outra maneira. Celebra-se a graça de Deus que outorgou Isaac pela segunda vez; em toda a história não se vê senão uma prova. Uma prova: é dizer muito e pouco: e, no entanto, passou-se em menos tempo do que leva a contá-lo. Cavalga-se no Pégaso e, num abrir e fechar de olhos, está-se em Morija, avista-se o cordeiro; esquece-se de que Abraão fez a caminhada ao passo lento do seu burro, que levou três dias de viagem e que lhe foi necessário um pouco de tempo para acender o fogo, ligar Isaac e afiar a faca.
No entanto, faz-se o elogio de Abraão. O pregador pode dormir sossegado até o último quarto de hora que antecede o seu discurso, e o auditório pode adormecer escutando-o, porque, de um lado e de outro, tudo se passa sem dificuldades nem inconvenientes. Mas, se há na assembleia um homem atingido de insónia, talvez regresse a casa e, sentando-se no seu canto, pense: Tudo isso se resume num momento; espera apenas um minuto, verás o cordeiro e a prova terá terminado. Se o orador o surpreende nesta disposição, imagino que vai avançar para ele, muito digno, para invectivá-lo: Miserável! Como podes abandonar a tua alma a tal loucura! Não há milagre algum e toda a vida é uma prova!, e à medida que vai falando, inflama-se, sente-se cada vez mais contente consigo mesmo; e de tal maneira que, se durante o sermão sobre Abraão não se congestionara, sente agora incharem-lhe as veias da testa. E talvez acabe mesmo por perder o fôlego e a palavra, se o pecador lhe responder com tranquila dignidade: Olha que eu queria pôr em prática o teu sermão de domingo passado.
Ou nos é necessário eliminar de uma vez a história de Abraão, ou então temos que compreender o espantoso e inaudito paradoxo que dá sentido à sua vida, para que possamos entender que o nosso tempo pode ser feliz como qualquer outro, se possuir a fé. Se Abraão não é um zero, um fantasma, um personagem de opereta, o pecador nunca será culpado de tentar imitá-lo; mas convém reconhecer a grandeza da sua conduta para ajuizar se tem a vocação e a coragem de afrontar uma prova semelhante. A única contradição do pregador consiste em que faz de Abraão um personagem insignificante, ao mesmo tempo em que exorta a tomá-lo como exemplo.
Urge então abster-nos de pregar acerca de Abraão. Creio, no entanto, que não. Se porventura tivesse que falar sobre ele, pintaria antes de mais a dor da prova. Para terminar, sorveria como sanguessuga toda a angústia, toda a miséria e todo o martírio do sofrimento paternal para apresentar o de Abraão, fazendo notar que, no meio das suas aflições, ele continuava a crer. Recordaria que a viagem durou três dias e ainda uma boa parte do seguinte; e mesmo esses três dias e meio duraram infinitamente mais tempo que os milhares de anos que me separam do patriarca. Chegado a esse ponto, lembraria que, segundo a minha opinião, todos podem dar meia volta antes de subir a Morija, que todos podem a cada momento arrepender-se da decisão e voltar para trás. Agindo desta maneira, não corro nenhum perigo nem receio, sequer, de despertar em alguns o desejo de sofrerem a prova tal como Abraão. Mas, se alguém quer introduzir uma edição popular de Abraão convidando todos a imitá-lo, cai no ridículo.
É agora meu propósito extrair da sua história, sob forma problemática, a dialética que comporta para ver que inaudito paradoxo é a fé, paradoxo capaz de fazer de um crime um ato santo e agradável a Deus, paradoxo que devolve a Abraão o seu filho, paradoxo que não pode reduzir-se a nenhum raciocínio, porque a fé começa precisamente onde acaba a razão.

 Tradução de Maria José Marinho

Soren Kierkegaard, Temor e tremor,, Guimarães Editores, Lx, 1959, p.91 a 95.

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