quarta-feira, outubro 18, 2023

Apologia do bom selvagem?

 


Newsha Tavokolian, Portrait of Esmaiel and his brother Gholamreza. Bakhtiari Province, Iran, 2018

Uma tarde, próxima do fim do primeiro verão, indo eu buscar ao povoado um sapato que havia mandado consertar, fui apanhado e metido na cadeia, porque, (…) não pagara impostos ao Estado, deixando assim de reconhecer a autoridade de uma instituição que, à porta do Senado, compra e vende homens, mulheres e crianças como se fossem reses. Tinha-me retirado nos bosques com outros objetivos. Mas, onde quer que um homem vá o grupo há de segui-lo e agarrá-lo com as suas sórdidas instituições e, se possível, constrange-lo a tomar parte na desesperada sociedade de Odd Fellows   (Sociedade de auxílio mútuo com fins educacionais e piedosos, fundada na Inglaterra do século XVIII). É bem verdade que eu podia ter resistido à força, com maior ou menor resultado, podia ter-me enfurecido contra a sociedade; mas preferi que a sociedade se enfurecesse contra mim, por ser ela a parte desesperada. Entretanto, fui libertado no dia seguinte, apanhei o sapato já consertado e regressei aos bosques a tempo de colher o meu jantar de mirtilos na colina de Fair Haven. Nunca fui aborrecido por ninguém a não ser por pessoas que representam o Estado. Não tinha fechadura nem ferrolho, salvo na gaveta onde guardava os meus papéis, nem sequer dispunha de um prego para pôr no trinco ou nas janelas. Nunca fechei a porta de dia ou de noite, ainda que fosse ausentar-me durante vários dias, nem mesmo quando no Outono seguinte fui passar duas semanas aos bosques do Maine. E, contudo, a minha casa era mais respeitada do que se tivesse sido cercada por um pelotão de soldados. O andarilho fatigado podia repousar e aquecer-se à minha lareira, o literato entreter-se com os pucos livros em cima da mesa, e o curioso, ao abrir a porta do armário na parede, ver o que havia sobrado do almoço e o que eu pretendia cear. No entanto, embora muita gente de todas as classes seguisse por este caminho rumo ao lago, não sofri, por isso, nenhum inconveniente sério e nunca perdi nada, exceto um pequeno livro, um volume de Homero talvez impropriamente dourado, que espero tenha entretanto sido encontrado por um soldado do nosso acampamento. Se todos os homens vivessem tão simplesmente como eu naquele tempo, estou convencido de que não haveria roubos e assaltos. Estes só ocorrem nas comunidades em que alguns têm mais do que é suficiente enquanto outros não têm o necessário. Os Homeros de Pope (Pope, poeta do século XVIII tradutor de Homero) logo se distribuiriam de maneira equitativa:

“Aos homens nem molestaram as guerras

Quando estavam em jogo apenas as gamelas.”

Vós que governais os assuntos públicos, que necessidade tendes de aplicar castigos? Amai a virtude, e o povo será virtuoso. As virtudes de um homem superior são como o vento; as do homem comum como o capim; e quando sobre ele o vento passa, o capim verga-se.

Henry David Thoreau, Walden, ou a vida nos bosques, Lx, 2018, Antígona, p.193, 194, 195


A desconfiança em relação aos assuntos públicos, por parte dos que defendem ferozmente a sua individualidade como sinónimo de liberdade, não me parece alternativa. A visão da pobreza como panaceia para eliminar os males do mundo e  esta visão de uma corrupção endémica do Estado e dos assuntos públicos terá, como consequência, o afastamento dos indivíduos da participação no espaço público. Sem esta participação envolvida nenhuma espécie de liberdade poderá ser garantida, pois a liberdade é, sem dúvida uma conquista de certas sociedades que abriram, ou foram forçadas a abrir o espaço público a todos os indivíduos. Mas, por inércia ou abastança ou desconfiança, afastamo-nos progressivamente desse espaço, preferimos aderir a fórmulas milagrosas, a palavras salvadoras que assentem como luva nas nossas frustrações ou mal estares, está bom de ver que o resultado não pode ser brilhante, e é arriscado.  HS

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