quarta-feira, outubro 25, 2023

A política como espaço de humanidade

 


Jim Pringle, Exodo Palestiano, 1948


A época de guerras e revoluções que Lenine predisse para este século e que estamos de facto a viver tornou, a uma escala realmente sem precedentes, o que acontece em política um fator fundamental do destino pessoal de toda a gente. Mas por toda a parte em que este destino se desenrolou na plenitude da sua força, e por toda a parte em que os seres humanos foram colhidos pelo turbilhão dos acontecimentos, esse destino causou calamidades. E não há consolação para a calamidade que a política trouxe às pessoas, nem para a calamidade ainda maior com que hoje ameaça toda a humanidade. As guerras do século XX não são “tempestades de aço” (Jünger) que varrem a atmosfera política, nem “a continuação da política por outros meios” (Clausewitz): são catástrofes monstruosas que podem transformar o mundo num deserto e a terra em matéria sem vida. Por outro lado, tudo o que estas revoluções -se as considerarmos seriamente, como Marx fazia, “as locomotivas da história” (A luta de classes em França,1848-1850) – demonstraram com certa clareza foi que o comboio da história corre manifestamente em direção a um abismo, e que as revoluções, longe de terem sido capazes de impedir a calamidade, só conseguiram acelerar atrozmente a velocidade do seu desenrolar-se.

Foram as guerras e as revoluções, e não o funcionamento dos governos parlamentares e dos aparelhos dos partidos democráticos, que moldaram as experiências políticas fundamentais do século XX. Ignorá-las equivale a não vivermos no mundo em que de facto vivemos. (…) O que as guerras e as revoluções têm em comum é o facto de estarem sob o signo da força bruta. Se as guerras e as revoluções são as experiências políticas fundamentais do nosso tempo, tal significa que estamos a mover-nos essencialmente sobre um terreno de experiência violenta que nos impele a equacionarmos violentamente a ação política. Este modo de equacionar as coisas pode revelar-se fatal, porque nas condições presentes a única conclusão possível é que a ação política se torna sem sentido, o que não deixa de ser bem compreensível dado o enorme papel que a violência desempenhou efetivamente na história de todos os povos. (…) Se uma ação política que não se coloca sob o signo da força bruta não alcança os seus fins – como na realidade acontece sempre -, isso não torna a ação política nem infundada nem sem sentido. Não passa a ser infundada porque nunca visou um fundo, quer dizer um fim, mas se orientou apenas para objetivos, com maior ou menor sucesso; e não passa a ser sem sentido porque no vaivém do discurso que se troca entre indivíduos e povos, entre Estados e nações, começa por ser criado um espaço em que tudo o mais tem lugar. Aquilo que em linguagem política se chama “um corte de relações” é o abandono desse espaço-entre, que toda a ação violenta começa por destruir antes de empreender a aniquilação daqueles que vivem nas suas margens.

Hannah Arendt, A promessa da política, retirado de “The Literary Trust of Hannah Arendt and Jerome Kohn” (2005), Relógio D’Água, Lx, 2007,  p.159, 160 e 161


Este é o século XXI e a sensação é a mesma. A história caminha para o abismo. A força bruta cresce na proporção direta da descrença no diálogo, nesse espaço político comum entre nações; a política. A política pode negociar situações pacíficas porque se gera,  alimenta e respira no espaço comum, o espaço humano, onde toda a diversidade humana está incluída, independentemente da etnia ou religião ou partido, esse espaço-entre. O seu reconhecimento por parte das nações/Estados que se digladiam e a necessidade marcante de renovação e de verdadeira ação, poderiam ser uma luz ao fundo do túnel. Guterres ontem tentou dizer que a força bruta surge da desesperança, pela falta de reconhecimento da humanidade do outro, perpetrando sobre ele toda a espécie de humilhações (Israel sobre a Palestina). Como representante das Nações Unidas, deve ter um olhar sobre a história, reconhecer essas humilhações sistemáticas e consentidas pelo Ocidente.HS

quarta-feira, outubro 18, 2023

Louise Glück - 22 Abril 1943 - 13 outubro 2023

 


Mãe e filho

Somos todos sonhadores; não sabemos quem somos.

 Alguma máquina nos criou; a máquina do mundo, a constritiva família.

Então, de volta ao mundo, polidos por suaves chicotes.

 

Sonhamos; não lembramos.

 

A máquina da família: pelagem negra,

florestas do corpo materno.

A máquina da mãe: a cidade branca

dentro dela.

 

E antes disso: terra e água.

Musgo entre as pedras, pedaços de folha e grama.

 

E antes, células numa imensa escuridão.

E antes disso, o mundo velado.

 

É por isto que você nasceu: para me calar.

Células de minha mãe e de que pai, é a sua vez

de ser fundamental, de se tornar uma obra-prima.

 

Eu improvisei; eu nunca me lembro de nada.

Agora é a sua vez de se deixar guiar;

é você quem exige saber:

 

Por que sofro? Por que sou ignorante?

Células numa imensa escuridão. Alguma máquina nos criou;

é a sua vez de se dirigir a ela, de perguntar

qual é meu propósito? Qual é meu propósito?


Tradução de Pedro Gonzaga

 A editora Relógio D'Água, tem traduções  de Inês Dias (Averno); Ana Luísa Amaral ( A Íris Selvagem); margarida Vale de Gato (Noite virtuosa e fiel)

Apologia do bom selvagem?

 


Newsha Tavokolian, Portrait of Esmaiel and his brother Gholamreza. Bakhtiari Province, Iran, 2018

Uma tarde, próxima do fim do primeiro verão, indo eu buscar ao povoado um sapato que havia mandado consertar, fui apanhado e metido na cadeia, porque, (…) não pagara impostos ao Estado, deixando assim de reconhecer a autoridade de uma instituição que, à porta do Senado, compra e vende homens, mulheres e crianças como se fossem reses. Tinha-me retirado nos bosques com outros objetivos. Mas, onde quer que um homem vá o grupo há de segui-lo e agarrá-lo com as suas sórdidas instituições e, se possível, constrange-lo a tomar parte na desesperada sociedade de Odd Fellows   (Sociedade de auxílio mútuo com fins educacionais e piedosos, fundada na Inglaterra do século XVIII). É bem verdade que eu podia ter resistido à força, com maior ou menor resultado, podia ter-me enfurecido contra a sociedade; mas preferi que a sociedade se enfurecesse contra mim, por ser ela a parte desesperada. Entretanto, fui libertado no dia seguinte, apanhei o sapato já consertado e regressei aos bosques a tempo de colher o meu jantar de mirtilos na colina de Fair Haven. Nunca fui aborrecido por ninguém a não ser por pessoas que representam o Estado. Não tinha fechadura nem ferrolho, salvo na gaveta onde guardava os meus papéis, nem sequer dispunha de um prego para pôr no trinco ou nas janelas. Nunca fechei a porta de dia ou de noite, ainda que fosse ausentar-me durante vários dias, nem mesmo quando no Outono seguinte fui passar duas semanas aos bosques do Maine. E, contudo, a minha casa era mais respeitada do que se tivesse sido cercada por um pelotão de soldados. O andarilho fatigado podia repousar e aquecer-se à minha lareira, o literato entreter-se com os pucos livros em cima da mesa, e o curioso, ao abrir a porta do armário na parede, ver o que havia sobrado do almoço e o que eu pretendia cear. No entanto, embora muita gente de todas as classes seguisse por este caminho rumo ao lago, não sofri, por isso, nenhum inconveniente sério e nunca perdi nada, exceto um pequeno livro, um volume de Homero talvez impropriamente dourado, que espero tenha entretanto sido encontrado por um soldado do nosso acampamento. Se todos os homens vivessem tão simplesmente como eu naquele tempo, estou convencido de que não haveria roubos e assaltos. Estes só ocorrem nas comunidades em que alguns têm mais do que é suficiente enquanto outros não têm o necessário. Os Homeros de Pope (Pope, poeta do século XVIII tradutor de Homero) logo se distribuiriam de maneira equitativa:

“Aos homens nem molestaram as guerras

Quando estavam em jogo apenas as gamelas.”

Vós que governais os assuntos públicos, que necessidade tendes de aplicar castigos? Amai a virtude, e o povo será virtuoso. As virtudes de um homem superior são como o vento; as do homem comum como o capim; e quando sobre ele o vento passa, o capim verga-se.

Henry David Thoreau, Walden, ou a vida nos bosques, Lx, 2018, Antígona, p.193, 194, 195


A desconfiança em relação aos assuntos públicos, por parte dos que defendem ferozmente a sua individualidade como sinónimo de liberdade, não me parece alternativa. A visão da pobreza como panaceia para eliminar os males do mundo e  esta visão de uma corrupção endémica do Estado e dos assuntos públicos terá, como consequência, o afastamento dos indivíduos da participação no espaço público. Sem esta participação envolvida nenhuma espécie de liberdade poderá ser garantida, pois a liberdade é, sem dúvida uma conquista de certas sociedades que abriram, ou foram forçadas a abrir o espaço público a todos os indivíduos. Mas, por inércia ou abastança ou desconfiança, afastamo-nos progressivamente desse espaço, preferimos aderir a fórmulas milagrosas, a palavras salvadoras que assentem como luva nas nossas frustrações ou mal estares, está bom de ver que o resultado não pode ser brilhante, e é arriscado.  HS

quinta-feira, outubro 12, 2023

O ceticismo de David Hume


Larry Towell, Terra de ninguém, 2003. Um palestiniano foge por uma brecha na vedação de laje de 8 metros colocada para impedir o acesso à margem oeste da Palestina. 

“O ceticismo de Hume parece derivar da conjunção das três proposições seguintes:

(I)                  não há verdades sintéticas “a priori” a respeito do mundo externo;

(II)                qualquer conhecimento genuíno que tenhamos do mundo externo deve ser derivado, em última instância da experiência percetiva;

(III)              só são válidas derivações dedutivas.

(IV)              Referir-me-ei a estas três proposições, respetivamente como a tese antiapriorista, a tese experimentalista, e a tese dedutivista. Elas implicam que para qualquer enunciado factual h constituir conhecimento, tem de haver premissas verdadeiras e que relatam experiências percetivas e das quais h é logicamente derivável. Mas se h fala do mundo externo e e só fala de experiências percetivas, h vai mais além de e e, portanto, não pode ser logicamente derivado de e.

Os filósofos usam frequentemente o termo conhecimento como uma palavra-sucesso; mas, neste livro, o termo será usado para denotar um certo corpo organizado de saber sem a implicação de estar livre de erro. Assim pode dizer-se: “O conhecimento médico do século dezoito era muito imperfeito e continha muito de erróneo”. Só estará a ser usado como palavra-sucesso quando estiver em itálico. Assim, podemos enunciar o ceticismo de Hume como a tese de que nada do nosso conhecimento do mundo externo é conhecimento.

Podemos escolher dentro da enorme variedade de enunciados que figuram no nosso conhecimento factual, enunciados ocorrendo aos níveis seguintes:

nível 0: relatos de perceções na primeira pessoa, do tipo aqui e agora (por exemplo: ‘No meu campo visual há um crescente prateado contra um fundo azul escuro’);

nível 1: enunciados singulares sobre coisas ou acontecimentos observáveis (por exemplo: ‘Há lua nova esta noite’;

nível 2: generalizações empíricas sobre regularidades manifestadas por coisas e acontecimentos observáveis (por exemplo: ‘ Uma lua nova é seguida por marés vivas’);

nível 3: leis experimentais exatas sobre grandezas físicas mensuráveis (por exemplo:  - a lei de Snell da refração ou a lei dos gases de Charles e Gay-Lussac);

nível 4: teorias científicas que são não só universais e exatas, mas ainda postulam entidades inobserváveis (por exemplo - a teoria dos campos de força de Faraday- Maxwell).

O ceticismo de Hume também pode expressar-se como a tese segundo a qual nenhum enunciado de nível 1, ou superior, possa ser justificado por enunciados de níveis mais baixos. É uma teoria epistemológica de carácter muito negativo. (…)

Para o ceticismo pirrónico, o mapa do conhecimento empírico é muito simples: só mostra um oceano indiferenciado de incerteza. Para o ceticismo de Hume, o mapa mostra um oceano de incerteza com uma pequena ilha de certeza no meio; esta ilha contém, para qualquer pessoa X no instante t, o conhecimento egocêntrico de X em t sobre as suas próprias experiências percetivas, etc.”

J.W.N. Watkins, Ciência e ceticismo (1984), Lx, 1990, Fundação Calouste Gulbenkian, p.15,16,17

 

sexta-feira, outubro 06, 2023

Progride ou não progride a Filosofia em direção à verdade?

 


Martine Franck, Carnaval, Basel, Suíça, 1977

“Muitos cientistas naturais almejam um tipo distinto de progresso, que os filósofos a começam a reconhecer como um objetivo apropriado para eles também.

O estereotipo do progresso científico é descobrir uma lei da natureza. Tais leis são supostamente generalizações universais acerca do mundo natural, que se verificam sem exceção para todos os tempos e lugares, por algum género de necessidade: ótimo se conseguir encontrar uma. (…)

Ainda assim, a filosofia surge de um impulso natural na curiosidade humana articulada para ir a uma espécie de extremo nas suas questões, e uma determinação em usar os métodos mais adequados disponíveis para lhes responder, não aceitando substitutos. Esse impulso e essa determinação não se extinguirão facilmente.

O progresso nas teorias filosóficas resulta em progresso nos métodos filosóficos, e o progresso nos métodos filosóficos resulta em progresso nas teorias filosóficas. A caixa de ferramentas metodológica (…) pode seguramente ser aperfeiçoada. Tal como outras ciências aperfeiçoam os seus métodos, acontecerá não através de qualquer rutura melodramática com o passado, mas por um difícil processo iterativo de auto refinamento."

Timothy Wlliamson, Filosofar, da curiosidade comum ao raciocínio lógico, Gradiva, ,Lx, 2019, p.150

Há aqui duas visões (a deste texto e a do texto anterior) da natureza do conhecimento filosófico e  do estatuto a que a Filosofia almeja. A metodologia do trabalho do filósofo também é vista de forma diferente. A história da Filosofia interpreta-se de acordo com estas duas crenças básicas. A primeira afirma que as teorias Filosóficas almejam à mesma universalidade e verdade da Ciência, têm a sua autonomia face às ciências mas uma metodologia semelhante; a segunda apela a uma visão da Filosofia cuja natureza é radicalmente diferente da ciência porque, contrariamente a esta, não obedece à fiscalidade empírica. Se analisarmos, ambas as tendências representam a própria essência do questionamento filosófico, em que a abdução não é possível pois se trata de princípios radicalmente diferentes o que, por si, tende a dar razão à segunda posição: não há forma de escolher a melhor explicação e descartar teorias filosóficas como se descartaram ao longo do tempo as teorias científicas. HS

quinta-feira, outubro 05, 2023

Não há progresso das doutrinas filosóficas morais e políticas em direção à verdade.

 

 


Bieke Depoorter, Russia, 2009

“…Uma coisa é certa: exceto para aqueles que compreendem e até sentem o que é uma pergunta filosófica, e em que medida se distingue quer de uma pergunta empírica quer de uma pergunta formal (embora esta diferença não tenha de estar explicitamente presente ao espírito, e haja muitas perguntas que abrangem vários campos ou que estão no limite de algum ou de alguns deles) , as respostas - que, neste caso, são as principais doutrinas do Ocidente - poderão muito bem parecer fantasias intelectuais, especulações filosóficas sem fundamento na realidade, construções desprovidas  de qualquer relação com ações ou eventos.

Só quem for capaz de recriar em si, de alguma maneira, o estado de espírito dos homens atormentados pelas perguntas para as quais estas teorias pretendem ser soluções, ou pelo menos o estado de espírito daqueles que poderão aceitar tais soluções de forma acrítica, mas que, sem elas, mergulhariam num estado de insegurança e ansiedade – só esses serão capazes de compreender o papel que as teorias filosóficas, especialmente as doutrinas políticas, desempenharam na história, pelo menos no Ocidente. O trabalho dos lógicos e dos físicos foi rejeitado porque foi superado; mas é absurdo sugerir que rejeitemos as doutrinas políticas de Platão, a estética ou a ética de Kant por terem sido “superadas” a superficial assimilação dos dois casos.

Poderá objetar-se a esta linha argumentativa que, se consideramos que as doutrinas éticas e políticas do passado continuam a ser dignas de atenção, é porque fazem parte da nossa tradição cultural; ou seja, que se a filosofia grega e a ética bíblica não fossem elementos constitutivos da formação intelectual no Ocidente, já estariam tão distantes de nós como as primeiras especulações chinesas. Mas o único efeito desta objeção é fazer o argumento recuar um passo: é verdade que, se as características gerais da nossa experiência -, o mais provável  é que estas categorias do passado se tivessem alterado radicalmente – através de uma revolução do nosso conhecimento ou de qualquer reviravolta natural que alterasse as nossas reações -, o mais provável é que estas categorias do passado nos parecessem hoje tão obsoletas como as do Código de Hamurabi ou da epopeia de Gilgamesh. Se isso não aconteceu foi indubitavelmente, pelo menos em parte, porque a nossa experiência está organizada e “tingida” pelas categorias éticas e políticas que herdámos dos nossos antecessores, e que são lentes do passado pelas quais continuamos a olhar o mundo. Mas há muito que estas lentes nos teriam levado a tropeçar e a chocar com as coisas, tendo por isso de ser totalmente modificadas ou substituídas, como aconteceu com as lentes da biologia e da matemática, se não continuassem a desempenhar a sua função de forma mais ou menos adequada; o que significa que há um certo grau de continuidade em pelo menos dois milénios de consciência moral e política.

Isaiah Berlin, A busca do Ideal, 1973, Lx, Guerra e Paz, 2023, p.107,108

 Tradução de Maria José Figueiredo

quarta-feira, setembro 27, 2023

Sobre a verruga de aceitar o que não se pode saber.

 


Thomas Hoepker, Itália, 1956

" Quando nos esforçamos por descrever o eu sem o assimilar a outrem, impõe-se uma primeira observação, e é a de que ele só existe de maneira intermitente e, no fim de contas, bastante rara. A sua presença corresponde a um modo de conhecimento secundário e como que reflexivo. O que se passa, realmente, de maneira primária e imediata? Pois bem! Os objetos estão lá todos, brilhando ao Sol ou recolhidos à sombra, rugosos ou macios, pesados ou leves; são conhecidos, saboreados, pesados e até cozidos, polidos, dobrados, etc. sem que esse eu que conhece, saboreia, pesa, coze, etc. por qualquer forma exista, salvo se se cumpre o ato de reflexão que me faz surgir, e ele raramente se cumpre. No estádio primário do conhecimento, a consciência que eu tenho de um objeto é o próprio objeto, o objeto é conhecido, cheirado, etc., sem que alguém que conheça, cheire, etc. Não devemos falar aqui de uma vela que projeta um raio luminoso sobre as coisas. Tal imagem deve ser substituída por outra; a dos objetos fosforescentes por si próprios, sem algo exterior a iluminá-los.

Há neste estádio ingénuo, primário e como que impulsivo, que é o nosso modo normal de existência, uma feliz solidão do conhecido, uma virgindade das coisas que, todas elas, possuem em si próprias, como outros tantos atributos da sua essência – cor, odor, sabor e forma. Então Robinson é Speranza. Só tem consciência de si através das frondes dos mirtos, onde o Sol dardeja um punhado de flechas, só se conhece na espuma da onda deslizando sobre a areia dourada.

E de repente a mola salta. O sujeito arranca-se ao objeto, despojando-o de uma parte da sua cor e do seu peso. Algo estalou no mundo e um pedaço das coisas abate-se, tornando-se eu. Cada objeto é desqualificado em proveito de um sujeito correspondente. A luz torna-se olho, e já não existe como tal; é só excitação da retina. O odor torna-se narina, e o próprio mundo revela-se inodoro. A música do vento nos paletúvios é refutada; mais não é que perturbação do tímpano. O mundo inteiro acaba-se por se fundir na minha alma, que é a própria alma de Speranza, arrancada à ilha, a qual morrerá sob o meu olhar cético. “

Michel Tournier, Sexta feira ou os limbos do Pacífico, S.. Paulo, Difel, 1985, p.86,87


A velha questão que nos interessa, de saber se as coisas são assim para mim, ou são mesmo assim como são para mim. Sendo que é uma questão sem forma de deslindamento. Mesmo a existência de um outro sujeito dotado de outra perceção não nos ajudaria a deslindar visto que de modo nenhum se pode saber o que são as coisas  em si, mas sempre de algum modo para ti ou para mim. Seja como for, não nos conduz esta reflexão obrigatoriamente ao ceticismo, pois há sem dúvida uma partilha das mesmas determinações do objeto por vários sujeitos, o que me leva a concluir que o mais correto é estabelecer o limite de que não há O conhecimento, mas o conhecimento humano, aquele que todos, num fenómeno intersubjetivo, partilham e aferem. HS

quarta-feira, setembro 20, 2023

Limites do conhecimento

 


Patrick Zachmann, 15 de Abril 2019, Destruição pelo fogo da Catededral de Notre dame em Paris.

“ O cientismo -perspetiva de que a ciência pode explicar tudo, e que em última análise irá fazê-lo -não é o mesmo que a ciência. A física das partículas não pretende explicar os sistemas políticos; a química inorgânica não pretende explicar as qualidades da poesia romântica. A ciência é específica quanto ao seu tema-os seus estudos centram-se individualmente na estrutura fundamental da matéria, na evolução das espécies biológicas, na natureza das galáxias distantes, no desenvolvimento das vacinas contra as infeções virais. É uma empresa fortemente ciente de si, sempre orientada para o escrutínio a que os cientistas submetem o seu próprio trabalho, e os trabalhos alheios, muito antes de se aventurarem a publicá-los. O exemplo da ciência é genérico. (…)

Estas considerações obrigam-nos a confrontar os problemas -céticos, metodológicos e admonitórios – que dificultam a investigação, e se tornam mais claros com os recentes avanços dramáticos do conhecimento, precisamente devido à imensa ignorância que revelam. Identifico uma dúzia deles, e formulo-os onde for apropriado na discussão posterior. Dou-lhes as seguintes designações:

O problema do buraco da agulha. Todas as investigações têm como ponto de partida dados muito limitados e terrivelmente circunscritos a que temos acesso local no espaço e no tempo, e que nos dão, do nosso ponto de vista finito, uma perspetiva do universo e do passado como se fosse através do buraco de uma agulha, posicionado precisamente à nossa escala. Será que com os nossos métodos conseguimos ultrapassá-lo e ir além dele?

O problema da metáfora. Que metáforas e analogias se invoca para dar sentido ao que estas investigações nos dizem? Poderão ser enganadoras?

O problema do mapa. Qual é a relação entre as teorias e as realidades que constituem os seus objetos, dadas as diferenças análogas entre um mapa e o país que esse mapa representa?

O problema dos critérios. Quais são as justificações e, quando for necessário, as retificações para a aplicação de critérios como a “simplicidade”, a “otimalidade” e até a “beleza” e a “elegância”, na formulação de programas de investigação e na aprovação de resultados? Invocar estes “critérios extra teóricos” ajuda a investigação ou distorce-a?

O problema da verdade. Dado que a investigação empírica nos dá probabilidades refutáveis, quais são os padrões (como a escala sigma na ciência) tidos como satisfatórios, quase certos? Sugere isto que temos de tratar o conceito de verdade de maneira pragmática, como um objetivo da investigação (talvez inatingível) para o qual, no plano ideal, esta converge estrategicamente? Onde cabe aqui o conceito da própria “verdade”?

O problema de Ptolomeu. O modelo geocêntrico do Universo “funcionava” em vários aspetos, permitindo boa navegação nos oceanos e a previsão de eclipses, mostrando por isso que uma teoria pode ser eficaz em alguns aspetos, apesar de ser incorreta. Como evitar que sejamos enganados pela adequação pragmática?

O problema do martelo. Resumindo incisivamente como “se a nossa única ferramenta fosse um martelo, tudo parece um prego”, este problema recorda-nos que temos tendência para ver apenas o que os nossos métodos e equipamentos são capazes de revelar.

O problema do lampião. Procuramos as chaves que perdemos debaixo do lampião, à noite, porque é o único sítio em que conseguimos ver. Investigamos o que é acessível á investigação pela óbvia razão de não podermos ter acesso ao que é inacessível.

O problema da interferência. Investigar e observar pode afetar o que está a ser investigado e observado. Quando estudamos animais no meio selvagem, estamos a estudá-los como seriam caso não estivessem a ser observados, ou estamos a estudar comportamentos influenciados pela nossa observação? Daí que isto seja conhecido como “efeito do observador”. (…)

O problema da interpolação. Um problema sobretudo para a história  e as ciências psicológicas,  áreas nas quais as interpretações dos dados se fazem muitas vezes em fução de pressupostos que são próprios do tempo e da experiência dos investigadores. Conseguiremos defender-nos contra isto, quando é uma fonte de distorção?

O problema de Parménides. O perigo implícito do reducionismo; reduzir tudo a um único princípio último, causal ou explicativo, que à primeira vista parece o pior tipo de erro elementar, mas que, curiosamente, é uma das características das ciências rígidas.

E, por último, o problema do martelo. O desejo de chegar a uma conclusão, de ter uma explicação ou crónica completa. (…)

Estes problemas fazem alguns pensadores dizer que há coisas que nunca poderemos saber. Dizem, por exemplo, que as questões sobre a natureza da consciência nunca terão resposta, porque tentá-lo é como um olho que tenta ver-se a si próprio. (…)

Na verdade, é crucial apostar nas possibilidades ilimitadas do conhecimento; é isso que nos incentiva a procurar uma compreensão maior do Universo e de nós mesmos.”

A.C. Grayling, As fronteiras do conhecimento, 2021, Lx, Ed. 70, p.23,24,25

 

 Sendo estes e outros problemas inerentes à condição limitada do homem, seria de todo o interesse invocar a própria subjetividade do homem que investiga e daquele que incorpora os dados da investigação científica na sua vida. A esse propósito surgem inúmeros exemplos que manipulam esses dados de acordo com os seus interesses pessoais. Lembro a recente experiência coletiva da pandemia de COVID, como pessoas que consultam os médicos quando doentes, cumprindo de forma confiante os seus mandamentos, e que neste contexto, se recusavam a usar a máscara quando esta era prescrita, não por um médico, mas pela quase totalidade do corpo médico mundial. O que é verdadeiro quando transladado para o lado da subjetividade do homem de ciência que investiga e quando investiga. HS

 

 

 

sábado, julho 22, 2023

Sobre a poesia




                               Fotografia: Philip Jones Griffiths, Norte da Irlanda, 1965

 …se a arte só pertence ao raro e puro génio, mesmo uma pessoa mediana em tudo, se está, com efeito, estimulada por uma forte impressão ou qualquer súbita inspiração do seu espírito, poderá compor uma bela ode, visto que para isso só precisa de uma viva intuição dos seus próprios sentimentos num momento de exaltação. Bastam, para o provar, todos esses cantos líricos de indivíduos que permanecem aliás desconhecidos, especialmente as canções populares alemães, de que temos uma excelente recolha no Wunderhorn,e também essas inúmeras canções de amor e outras, em todas as línguas. Com efeito, agarrar uma impressão do momento, e dar-lhe corpo num canto, eis em que consiste este género de poesia. Entretanto, na poesia lírica, se se encontra um verdadeiro poeta, , ele exprime na sua obra a natureza íntima da humanidade inteira. Tudo o que milhões de seres passados, presentes e futuros, sentiram ou hão de sentir nas mesmas situações que reaparecem sem cessar, ele sente-o e exprime-o vivamente. Essas situações, pelo seu eterno retorno, duram tanto quanto a própria humanidade e provocam sempre os mesmos sentimentos. Igualmente, as produções líricas do verdadeiro poeta subsistem, durante séculos, vivas, verdadeiras e jovens. O poeta é, portanto, o resumo do ser humano em geral: tudo o que alguma vez fez bater um coração humano, tudo o que a natureza humana, numa circunstância qualquer, fez brotar para fora de si, tudo o que alguma vez habitou e amadureceu num peito humano – tal é a matéria que ele trabalha, como trabalha todo o resto da natureza. Além disso, o poeta é igualmente capaz de cantar a volúpia e os assuntos místicos, de ser Anacreonte ou Angelus Silesius, de escrever tragédias ou comédias, de esboçar um carácter elevado ou comum, conforme o seu capricho ou a sua vocação. É por isso que ninguém lhe pode prescrever ser nobre e elevado, moral, piedoso, cristão, ou isto ou aquilo; ainda menos se lhe pode censurar ser isto ou aquilo. Ele é o espelho da humanidade, e traz-lhe à consciência todos os sentimentos de que ela está cheia e animada.

 Arthur Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, Lx,2021, Ed 70, p.313,314

Trad. M.F. Sá Correia

 

sábado, julho 15, 2023

 


No dia fatídico, um rapaz de jeans veio sentar-se ao balcão. Nessa hora Tamina estava sozinha no café. O rapaz havia pedido uma Coca e bebericava lentamente o líquido. Olhava Tamina e Tamina olhava para o vazio. Ao final de um instante, ele disse: — Tamina. Se queria impressioná-la, foi mal sucedido. Não era muito difícil descobrir o seu nome; no bairro, todos os fregueses o sabiam. — Eu sei que está triste — prosseguiu o rapaz. Essa observação também não seduziu Tamina. Ela sabia que existem muitas maneiras de conquistar uma mulher e que um dos caminhos mais seguros para para o seu corpo passa pela tristeza. No entanto, olhou o rapaz com mais interesse do que um pouco antes. Começaram a conversar. O que intrigava Tamina eram as suas perguntas. Não o conteúdo delas, mas o simples fato de ele as fazer. Meu Deus, havia tanto tempo que não lhe perguntavam nada! Tinha a impressão de que havia uma eternidade! Só o seu marido lhe fazia perguntas sem cessar, porque o amor é uma interrogação contínua. E, não conheço definição melhor do amor. (O meu amigo Hubl diria que, nesse caso, ninguém nos ama mais do que a polícia. É verdade. Assim como todo alto tem o seu simétrico baixo, o interesse do amor tem por negativo a curiosidade da polícia. Podemos às vezes confundir o baixo e o alto, e posso muito bem imaginar que pessoas que se sentem sós desejem ser conduzidas de vez em quando à esquadra para serem interrogadas e poderem falar de si próprias.)

Adequação da tradução de tradução Teresa Coelho, D. Quixote 1985,p158,

e Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca, Círculo do Livro, S. Paulo p.190

sexta-feira, junho 02, 2023

Crítica ao princípio da diferença de Rawls.


Dennis Sock, Casal com criança, EUA, 1952

“Pensa-se normalmente – é isso que pensa Rawls, por exemplo – que o princípio da diferença autoriza um argumento a favor da desigualdade baseado em incentivos materiais. A ideia é que as pessoas talentosas serão mais produtivas do que seriam de outra forma se, e apenas se, ganharem mais que o salário comum – e alguma da sua produção adicional pode ser usada para benefício dos mais desfavorecidos. Alega-se que a desigualdade resultante dos incentivos materiais diferenciados, justifica-se pelo princípio da diferença, pois, diz-se, esta desigualdade beneficia os mais desfavorecidos.

Contudo, pelas razões que se seguem, creio que o argumento dos incentivos a favor da desigualdade representa uma aplicação distorcida do princípio da diferença (…). Ou as pessoas acreditam que as desigualdades são injustas se não são necessárias para melhorar a situação dos mais desfavorecidos, ou não acreditam que isso é uma exigência da justiça.  Se não acreditam no princípio da diferença, então a sua sociedade não é justa no sentido rawlsiano apropriado, pois uma sociedade é justa, segundo Rawls, só se os seus membros afirmam e aceitam os princípios da justiça corretos. (…)

Passemos então à outra possibilidade -as pessoas talentosas afirmam o princípio da diferença (…). Podemos perguntar por que razão, à luz da sua crença no princípio, exigem ganhar mais que os não talentosos por um trabalho que, de facto, pode requerer um talento especial, mas que não é especialmente desagradável (…).  Podemos perguntar aos talentosos se o dinheiro que ganham a mais é necessário para melhorar a posição dos mais desfavorecidos -essa é a única justificação que, segundo o princípio da diferença, poderá haver para ganharem mais. Será isso simplesmente necessário? Ou será necessário apenas na medida em que os talentosos decidiriam produzir menos, ou não aceitar os lugares para os quais estão habilitados, se a desigualdade fosse eliminada (por exemplo através de impostos que redistribuíssem os rendimentos de forma a se obter um resultado perfeitamente igualitário? (…)

As pessoas talentosos não poderiam afirmar, para se justificarem (…) que as suas recompensas superiores são necessárias para melhorar a situação dos mais desfavorecidos, dado que são elas próprias que tornam essas recompensas necessárias, recusando-se a trabalhar por recompensas normais tão produtivamente como o fazem por recompensas excecionalmente  altas.  As recompensas altas, portanto, são necessárias apenas porque as escolhas das pessoas talentosas não obedecem propriamente ao princípio da diferença (…)

Deste modo, o princípio da diferença pode justificar a desigualdade apenas numa sociedade em que nem todos o aceitem. Não pode, portanto, justificar a desigualdade de uma forma apropriadamente rawlsiana.”

Se és igualitarista, como ficaste tão rico? G.A. Cohen pp.124-127


 

sexta-feira, maio 26, 2023

Uma aproximação do pensamento de Nozick a Rawls.


Fotografia de Chien-Chi Chang -Bar no centro de Lviv. Não é servido álcool devido a uma proibição do Estado. Lviv, Ukraine, March 22, 2022 

 Em 1971, um até então obscuro professor de filosofia de Harvard, John Rawls, publicou um livro que acabou por aclamá-lo como “o maior filósofo político da América”. No livro “ Teoria da Justiça”, Rawls apresentou uma descrição da justiça na forma de dois princípios, ordenando respetivamente que as “liberdades básicas iguais” das pessoas – direitos como liberdade de expressão, liberdade de consciência e o direito de voto — devem ser maximizados, e que as desigualdades em bens sociais e económicos, que não sejam a liberdade, são aceitáveis apenas se promoverem o bem-estar dos membros “menos favorecidos” da sociedade. (Chamou este último de “princípio da diferença”).

Três anos após o aparecimento de “Teoria”, um colega do seu departamento, Robert Nozick, publicou uma resposta libertária, “Anarquia, Estado e Utopia”, que argumentava que só um "estado mínimo", dedicado a proteger as pessoas contra crimes como assalto, roubo e fraude pode ser moralmente justificado.

O livro de Nozick era muito mais conciso do que a “Teoria” de Rawls  e não passou despercebido; ganhou o National Book Award de 1975 e mais tarde foi listado pelo Times Literary Supplement como um dos 100 livros mais influentes do século XX. “Anarquia” continua a ser um elemento imprescindível do currículo dos cursos de teoria política, onde geralmente é o contraponto à teoria de Rawls, para sugerir que o liberalismo do estado de bem-estar social de Rawls e o libertarismo de Nozick representam todo o espectro de possibilidades que se colocam às democracias liberais contemporâneas.

No entanto, a reputação e a influência de Nozick na academia - para não falar do reconhecimento de seu nome no mundo mais amplo do direito e da política - nunca rivalizaram com as do seu colega. (Embora 15 anos mais novo que Rawls, Nozick morreu no mesmo ano, 2002, após uma longa luta contra o cancro.) Sem dúvida, parte da explicação é que o “liberalismo de esquerda” de Rawls (como ele mais tarde descreveu a sua posição) se harmoniza muito melhor com a orientação típica do ensino contemporâneo. Além disso, ao contrário de Rawls, Nozick nunca fez do desenvolvimento de uma determinada doutrina política, a preocupação unificadora de sua carreira académica. Em vez disso, o seu intelecto abrangente levou-o a continuar “Anarchy” (seu primeiro livro) com outras obras abordando uma variedade considerável de tópicos filosóficos, do livre arbítrio à teoria da decisão (no seu livro de 1989 “The Examined Life”) amor , morte, fé e o sentido da vida.

Mais importante, no entanto, “Anarquia” nunca constituiu uma verdadeira alternativa à doutrina de Rawls, uma vez que, em todas as questões substantivas, exceto na legitimidade da redistribuição governamental da riqueza, Nozick e Rawls concordaram. (E mesmo nessa questão, numa passagem normalmente ignorada pelos seus admiradores, o próprio Nozick foi evasivo.

Como a “Teoria” de Rawls, “Anarquia” começa com uma declaração abrangente da primazia da justiça – entendida, neste último livro, como direitos individuais, definidos como liberdades, isto é, a ausência de restrições externas sobre as nossas ações – sobre todos os outros critérios para avaliar políticas sociais e instituições. Em outras palavras, Nozick reteve mais ou menos o primeiro princípio de Rawls (liberdade) enquanto eliminou o segundo (diferença).

Sugerindo que “a questão fundamental da filosofia política” não é como o governo deve ser organizado, mas “se deve haver algum estado”, Nozick oferece uma adaptação da doutrina de John Locke de que o governo é legítimo apenas na medida em que oferece maior segurança pela vida, liberdade e propriedade do que existiria num “estado de natureza” caótico e pré-político. Mais enfaticamente do que Locke, no entanto, Nozick conclui que a necessidade de segurança justifica apenas um estado mínimo, ou “vigia noturno”, uma vez que não pode ser demonstrado, acredita, que todos os indivíduos racionais achariam necessário um governo mais extenso para garantir a segurança dos seus direitos.

No lugar do “princípio da diferença” de Rawls, Nozick propõe uma “teoria do direito” da justiça, segundo a qual as propriedades individuais são justificadas apenas se derivarem de aquisições justas ou transferências (voluntárias). Notavelmente, Nozick nunca especifica os critérios de aquisição justa. No entanto, em vez de visões de “corte de tempo atual” da justiça distributiva, como a de Rawls, que avalia as participações atuais de acordo com um padrão externo de equidade, Nozick afirma um padrão “histórico”, que determina a legitimidade de uma distribuição apenas porque teve origem num procedimento justo.

Nozick oferece uma crítica espirituosa e incisiva da lógica de Rawls para o seu princípio da diferença, refutando a alegação implausível de que apenas porque os membros de uma sociedade beneficiam da cooperação social, os membros menos favorecidos têm automaticamente direito a uma participação nos ganhos de seus pares mais bem-sucedidos.

O libertarismo de Nozick, que compara a tributação da renda ao trabalho forçado, sofre, no entanto, de um defeito correspondente. Nozick nunca reconhece a necessidade de um regime liberal para garantir  um certo nível de segurança social e benefícios educacionais a todos os cidadãos, na medida em que suas circunstâncias permitirem, nem que seja para garantir a lealdade contínua dos pobres a esse regime. Como Rawls, Nozick procurou impor uma visão abstrata de justiça na vida política, relegando considerações de viabilidade (isto é, de conformidade com as prováveis demandas de seres humanos reais) para serem resolvidas por outros, no espírito da máxima de Immanuel Kant, “que a justiça triunfe, ainda que, por ela, pereça o mundo”.

 Ironicamente, no entanto, o próprio Nozick finalmente reconhece que sua teoria do direito é insuficiente para refutar a necessidade de um estado redistributivo, uma vez que nunca pode ser demonstrado se as propriedades existentes derivam de uma série ininterrupta de transferências voluntárias ou se derivam de algum ato original de conquista injusta. Assim, surpreendentemente, ele acaba sugerindo que algo como o princípio da diferença de Rawls é moralmente exigido afinal, em nome da “retificação”, na duvidosa premissa de que aqueles atualmente menos favorecidos têm a maior probabilidade de serem descendentes de vítimas anteriores de injustiça.

 Esta não é a única área de acordo entre Nozick e Rawls. Como Rawls, Nozick insiste que a justiça de uma sociedade seja avaliada apenas por causa da correspondência dos seus procedimentos com as noções preferidas de justiça, e não por realmente recompensar modos de vida moralmente dignos. Também como Rawls, Nozick termina seu livro representando a sociedade justa como moralmente libertária ao extremo, negando implicitamente a legitimidade de leis que proíbem práticas como a prostituição e a venda de drogas viciantes.

 Embora tenha reparado a sua crítica às falhas que descobriu na teoria de Rawls, com uma notável homenagem à sua ostensiva “beleza”, Nozick era muito mais brilhante e um escritor muito melhor e mais instigante do que o seu colega. Infelizmente, compartilhava com Rawls uma visão restrita da filosofia política como um empreendimento dedicado à produção de teorias abstratas, com pouca ou nenhuma consideração pela fundamentação da justiça na natureza humana. Aqueles que buscam uma alternativa ao igualitarismo superficial e ao libertarismo moral de nosso tempo fariam muito melhor em retornar ao pensamento dos maiores estadistas da América, como Lincoln e os autores de “The Federalist”; aos filósofos liberais que os guiaram, nomeadamente Locke e Montesquieu, e finalmente aos maiores filósofos clássicos, para os quais a teorização política era inseparável da busca por uma séria compreensão empírica da condição humana e do bem humano.

 David Lewis Schaefer, "Robert Nozick and the Coast of Utopia," New York Sun, April 30, 2008.

 

sexta-feira, maio 19, 2023

Será que um contrato social hipotético dá alguma garantia de justiça?


 

David Seymour (Polónia, 1911/1956), 1º dia de escola, Vila de Pilis,


Analisemos agora uma experiência mental: suponhamos que, ao reunir-nos para definir os princípios, não saibamos a qual categoria pertencemos na sociedade. Imaginemo-nos cobertos por um “véu de ignorância” que temporariamente nos impeça de saber quem realmente somos. Não sabemos a que classe social ou género pertencemos e desconhecemos a nossa raça ou etnia, as nossas opiniões políticas ou crenças religiosas. Tampouco conhecemos as nossas vantagens ou desvantagens — se somos saudáveis ou frágeis, se temos alto grau de escolaridade ou se abandonámos a escola, se nascemos numa família estruturada ou numa família desestruturada. Se não possuíssemos essas informações, poderíamos realmente fazer uma escolha a partir de uma posição original de equidade. Já que ninguém estaria numa posição de negociação superior, os princípios escolhidos seriam justos. É assim que Rawls entende um contrato social — um acordo hipotético numa posição original de equidade. Rawls convida-nos a raciocinar sobre os princípios que nós — como pessoas racionais e com interesses próprios — escolheríamos caso estivéssemos nessa posição. Ele não parte do pressuposto de que todos sejamos motivados, na vida real, apenas pelo interesse egoísta; pede apenas que deixemos de lado as nossas convicções morais e religiosas para realizar essa experiência mental. Que princípios escolheríamos?

Primeiramente, raciocina, não optaríamos pelo utilitarismo. Sob o véu de ignorância, cada um de nós ponderaria: “Pensando bem, posso vir a ser membro de uma minoria oprimida.” E ninguém arriscaria ser o cristão que é atirado aos leões para o divertimento da multidão. Nem escolheríamos o simples laissez-faire, o princípio libertário que daria às pessoas o direito de ficar com todo o dinheiro que ganhassem numa economia de mercado. “Posso acabar por ser o Bill Gates”, alguém raciocinaria, “mas também posso, por outro lado, ser um sem-abrigo. Portanto, é melhor evitar um sistema que me deixe desamparado e na penúria. “

Rawls acredita que dois princípios de justiça, poderiam emergir do contrato hipotético. O primeiro oferece as mesmas liberdades básicas para todos os cidadãos, como liberdade de expressão e religião. Esse princípio sobrepõe-se a considerações sobre utilidade social e bem-estar geral. O segundo princípio refere-se à equidade social e económica. Embora não requeira uma distribuição igualitária de renda e riqueza, ele permite apenas as desigualdades sociais e económicas que beneficiam os membros menos favorecidos de uma sociedade. Os filósofos questionam se os participantes do contrato social hipotético de Rawls escolheriam os princípios que ele afirma que escolheriam. Mais à frente veremos por que Rawls acha que esses dois princípios seriam escolhidos. Mas, antes de abordar os princípios, analisemos uma questão anterior a essa: A experiência hipotética de Rawls é a maneira correta de abordar a questão da justiça? Como podem princípios da justiça resultar de um acordo que jamais aconteceu de fato?

Michael Sandel, Justiça, Lx, Presença, pp.150, 151


sábado, maio 06, 2023

Considere-se a cooperação social...



Susan Meiselas, prisão e documentação de um rapaz de 12 anos, fronteira do México, 1989, USA



Considere-se de novo a ideia de cooperação social. Como se irão determinar os justos termos da cooperação? Serão, simplesmente, estabelecidos por uma autoridade externa, distinta das pessoas que cooperam entre si? Serão, por exemplo, estabelecidos por uma lei divina? Ou serão esses termos reconhecidos como justos pelas pessoas que cooperam, tomando como referência o seu conhecimento de uma ordem moral independente? Por exemplo, serão reconhecidos como termos exigidos pela lei natural ou pela esfera de valores conhecida por intuição racional? Ou serão esses termos estabelecidos através de uma aceitação por parte das próprias pessoas á luz daquilo que consideram a sua vantagem recíproca? (…)

A justiça como equidade reformula o contrato social e adota a última das hipóteses consideradas os justos termos da cooperação social são concebidos entre aqueles que nela se envolvem, isto é, por cidadãos livres e iguais que nascem na sociedade em que passam toda a sua vida. Mas o seu acordo, como qualquer outro acordo válido, deve ser firmado em condições apropriadas.

John Rawls, O liberalismo político, p.49 (adaptado).


sexta-feira, abril 21, 2023

Nós, os Refugiados



Em primeiro lugar, não gostamos de ser chamados “refugiados”. Chamamo-nos uns aos outros “recém-chegados” ou “imigrantes”. Os nossos jornais são jornais para “americanos de língua alemã”; e, tanto quanto sei, não há e nunca houve qualquer clube fundado pelos perseguidos por Hitler cujo nome indicasse que os seus membros são refugiados.
Um refugiado costuma ser uma pessoa obrigada a procurar refúgio devido a algum ato cometido ou por tomar alguma opinião política.
Bom, é verdade que tivemos que procurar refúgio; mas não cometemos nenhum ato e a maioria de nós nunca sonhou em ter qualquer opinião política radical. O sentido do termo “refugiado” mudou connosco. Agora “refugiados” são aqueles de nós que chegaram à infelicidade de chegar a um novo país sem meios e tiveram que ser ajudados por comités de refugiados.
Antes desta guerra começar éramos ainda mais sensíveis quanto ao sermos chamados refugiados. Demos o nosso melhor para provar aos outros que éramos apenas imigrantes comuns. Afirmávamos que tínhamos partido pela nossa própria vontade para países da nossa escolha e negávamos que a nossa situação tivesse algo a ver com “supostos problemas judaicos”. Sim, éramos “imigrantes” ou “recém-chegados” que tínhamos deixado o nosso país porque, num belo dia, não nos convinha mais ficar, ou puramente por razões económicas. Queríamos reconstruir as nossas vidas, isso era tudo. De modo a reconstruir a vida tem que se ser forte e otimista. Portanto, éramos bastante otimistas.

Com efeito, o nosso otimismo é admirável, mesmo que sejamos nós a dizê-lo. A história da nossa luta finalmente tornou-se conhecida. Perdemos a nossa casa o que significa a familiaridade da vida quotidiana. Perdemos a nossa ocupação o que significa a confiança de que tínhamos algum uso neste mundo. Perdemos a nossa língua o que significa a naturalidade das reações, a simplicidade dos gestos, a expressão impassível dos sentimentos. Deixámos os nossos familiares nos guetos polacos e os nossos melhores amigos foram mortos em campos de concentração e tal significa a rutura das nossas vidas privadas.
Não obstante, logo que fomos salvos – e a maioria de nós teve que ser salvo várias vezes – começámos a nossas novas vidas e tentávamos seguir tão próximo quanto possível todos os bons conselhos que os nossos salvadores nos transmitiram. Foi-nos dito; e esquecemos mais rápido do que alguém poderia imaginar. De um modo amigável foi-nos lembrado que o novo país tornar-se-ia uma nova casa; e depois de quatro semanas em França ou seis semanas na América, fingiríamos ser franceses ou americanos. Os mais otimistas entre nós teriam mesmo acrescentado que toda a sua vida anterior teria sido passada numa espécie de exílio inconsciente e apenas o seu novo país lhes ensinaria agora com o que se parece uma casa. É verdade que por vezes levantámos objeções quando nos disseram para esquecer o nosso trabalho anterior; e, logo que o nosso estatuto social está em jogo é-nos extremamente difícil desembaraçarmo-nos dos nossos ideais. Com a língua, contudo, não encontramos dificuldades: depois de um único ano os otimistas estavam convencidos que falavam inglês tão bem quanto a sua língua materna; e depois de dois anos juravam solenemente que falavam inglês melhor do que qualquer outra língua – o seu alemão é uma língua que dificilmente lembram.
De modo a esquecer mais eficientemente preferíamos evitar qualquer alusão aos campos de concentração ou de internamento que experienciámos em quase todos os países europeus – poderia ser interpretado como pessimismo ou falta de confiança na nossa nova pátria.
Além disso, quão frequentemente nos foi dito o que ninguém gosta de ouvir de todo; o inferno não é mais uma crença religiosa ou uma fantasia, mas algo tão real quanto as casas, as árvores e as pedras. Aparentemente ninguém quer saber que a história contemporânea criou um novo tipo de seres humanos – o tipo dos que são postos em campos de concentração pelos seus inimigos e nos campos de internamento pelos seus amigos.

Hannah Arendt, Nós, os refugiados, 
Tradutor: Ricardo Santos, Lusosofia

domingo, abril 09, 2023

Carmo D'Orey

Faleceu dia 3 de abril, a professora Carmo D'Orey, uma das professoras que mais me marcou. Deu-me a disciplina de Hermenêutica na Faculdade de Letras de Lisboa e, por causa dela, adorei Hermenêutica e ainda adoro.  À procura de uma foto, não encontrei nenhuma, apesar de ser uma mulher elegantíssima, detestava ser fotografada e era tão discreta que só os seus livros encontramos na NET. 

Professora, descanse em paz.

Ler Obituário AQUI

sábado, abril 08, 2023

Senso comum e conhecimento científico


William, Keo, Norte de Mykolaiv, Ternivka; Edifícios destruídos pela aviação russa, Ucrânia, 11 de Março 2022


Entre o conhecimento comum e o conhecimento cientifico a rutura nos parece tão nítida que estes dois tipos de conhecimento não poderiam ter a mesma filosofia. O empirismo é a filosofia que convém ao conhecimento comum. O empirismo encontra aí sua raiz, as suas provas, o seu desenvolvimento. Ao contrário, o conhecimento científico é solidário com o racionalismo e, quer se queira ou não, racionalismo está ligado a. ciência, o racionalismo reclama fins científicos. Pela atividade cientifica, o racionalismo conhece uma atividade dialética que prescreve uma extensão constante dos métodos. Desde então, quando o conhecimento vulgar e o conhecimento científico registram o mesmo fato, este mesmo fato não tem certamente o mesmo valor epistemológico nos dois conhecimentos. Que o "odor" da eletricidade seja um desinfetante e que o ozônio seja um poderoso oxidante que desinfeta, não há entre estes dois conhecimentos uma mudança de valor de conhecimento? De um facto verdadeiro, a química teórica fez um conhecimento verídico. Por ele só, este duplo sentido  do verdadeiro e do verídico retém a ação polar do conhecimento. Este duplo sentido permite reunir os dois grandes valores epistemológicos que explicam a fecundidade da ciência contemporânea. A ciência contemporânea é feita da pesquisa dos fatos verdadeiros e da síntese das leis verídicas. As leis verídicas da ciência têm uma fecundidade de verdades, elas prolongam as verdades de fato por verdades de direito. O racionalismo pelas suas sínteses do verdadeiro abre uma perspetiva de descobertas. O materialismo racionalista, depois de ter acumulado os factos verdadeiros e organizado as verdades dispersadas, ganhou uma surpreendente força de previsão. A ordenação das substâncias apaga progressivamente a contingência de seu ser, ou. em outras palavras, cada ordenação suscita descobertas que preenchem as lacunas que faziam acreditar na contingência do ser material. Apesar de suas riquezas aumentadas, suas riquezas transbordantes. a química se ordena num vasto domínio de racionalidade. E não é a menor lição da química contemporânea nos mostrar, além do racionalismo da identidade, a racionalidade do múltiplo.

Gaston Bachelard, Le Matérialisme rationnel, 1953, pp

sexta-feira, março 17, 2023

O carácter dogmático da pesquisa científica

 


Adolescentes ucranianas partilham um cobertor na fronteira com a Roménia, Março 2022 
 Foto de Ioana Moldovan

" São estas as características da investigação normal que eu tinha em vista quando, no começo deste ensaio, descrevia a pessoa envolvida nela como um solucionador de puzzles, à maneira de um jogador de xadrez. O paradigma que ele adquiriu graças a uma preparação prévia fornece-lhe as regras do jogo, descreve as peças com que se deve jogar e indica o objetivo que se pretende alcançar. A sua tarefa consiste em manipular as peças segundo as regras, de maneira a que seja alcançado o objetivo em vista. Se ele falha, como acontece com a maioria dos cientistas, pelo menos na primeira tentativa de alcançar um problema, esse fracasso só revela a sua falta de habilidade. As regras fornecidas pelo paradigma não podem então ser postas em causa, uma vez que sem essas regras começaria por não haver puzzle para resolver. Não haja portanto dúvidas de que os problemas (ou puzzles), pelos quais o praticante da ciência madura normalmente se interessa, pressupõem a adesão profunda a um paradigma. E é uma sorte que essa adesão não seja abandonada com facilidade. A experiência mostra que, em quase todos os casos, os esforços repetidos, quer do indivíduo quer do grupo profissional, acabam finalmente por produzir, dentro do âmbito do paradigma, uma solução, mesmo para os problemas mais difíceis. Esta é uma das maneiras como a ciência avança. Nessas condições será de nos surpreendermos com a resistência dos cientistas à mudança de paradigmas? O que eles defendem é, no fim de contas, nem mais nem menos do que a base do seu modo de vida profissional.

Chegando aqui, uma das principais vantagens do que comecei por chamar "o dogmatismo científico" deve ser evidente. Como uma rápida vista de olhos a qualquer ciência mostra, a natureza é demasiado complexa para ser explorada ao acaso, mesmo de maneira aproximada. Tem que existir algo que diga ao cientista onde procurar e por que procurar, e esse algo que pode muito bem não durar mais que uma geração, é o paradigma que lhe foi fornecido pela sua educação de cientista. Em virtude desse paradigma e da necessária confiança nele, o cientista deixa em grande parte de ser um explorador, pelo menos de ser um explorador do desconhecido. "

Thomas Kuhn, A função do dogma na investigação científica, Lx, 1979, A regra do Jogo, pp 65,66

sexta-feira, março 10, 2023

O critério de objetividade científica.


 

Jérôme SessiniPrédios residenciais em Borodyanka destruídos por misseis russos

Ucrânia,  9 Abril 9, 2022, 

“É totalmente errado admitir que a objetividade da ciência está dependente da objetividade do cientista. Assim como é totalmente errado pensar que há maior objetividade, a nível individual, nas ciências da natureza, do que nas ciências sociais. O cientista da natureza é tão parcial quanto qualquer outro indivíduo e infelizmente – se não pertencer ao pequeno número dos que estão continuamente a produzir novas ideias -, é conquistado normalmente, de uma forma unilateral e parcial, pelas suas próprias ideias. Alguns dos mais destacados físicos contemporâneos fundaram inclusivamente escolas que opõem uma forte resistência a qualquer ideia nova.

Aquilo que se pode designar por objetividade científica encontra-se única e exclusivamente na tradição crítica, na tradição que, mau grado todas as resistências, permite muitas vezes criticar um dogma dominante. Dito de outro modo, a objetividade da ciência não é uma questão individual dos diversos cientistas, mas antes uma questão social da sua crítica recíproca, da divisão de trabalho, amistoso-hostil, dos cientistas, da sua colaboração, mas também das guerras entre si. Está, por conseguinte, dependente em parte de todo o conjunto de circunstâncias, sociais e políticas, que tornam possível tal crítica. (…)

Numa discussão crítica distinguem-se questões como: (1) a questão da verdade de uma asserção; a questão da sua relevância, do seu interesse e do seu significado relativamente aos problemas em causa. (2) A questão da sua relevância, do seu interesse e do seu significado relativamente a diversos problemas extra-científicos , como por exemplo o problema do bem estar humano, ou ainda, o problema completamente distinto da defesa interna, de uma política ofensiva nacional,  do desenvolvimento industrial, ou do enriquecimento pessoal.

É obviamente impossível dissociar esses interesses extra-científicos da investigação científica; tal como é igualmente inviável, dissocia-los da investigação quer na área das ciências da natureza – no campo da física, por exemplo – quer na área das ciências sociais.

O que é possível e importante e que confere à ciência o seu carácter específico não é a eliminação, mas antes a distinção entre os interesses não inerentes à procura da verdade e o interesse puramente científico pela verdade. No entanto, se bem que a verdade constitua o valor científico essencial, não é o único. A relevância, o interesse e o significado de uma asserção relativamente à formulação puramente científica de um problema constituem igualmente valores científicos de primeira ordem, do mesmo modo que o são a inventividade, a capacidade de esclarecimento, a simplicidade e a precisão. (…)

…uma das tarefas da crítica e da discussão científicas é a de lutar contra a confusão das esferas de valores e, em particular, eliminar as valorações extra-científicas das questões relativas à verdade. (…) O cientista objetivo e despido de valores não é o cientista ideal. Sem paixão nada avança, e muito menos a ciência pura. A expressão “amor à verdade” não é uma mera metáfora.

Portanto, não só a objetividade e o despojamento de valores são praticamente inacessíveis ao cientista, como também essa objetividade e esse despojamento são já em si valores. E sendo o despojamento de valores ele mesmo um valor, a exigência desse despojamento constitui um paradoxo."

Karl Popper, Em busca de um mundo melhor, Lx, 1989, Ed. Fragmentos, pp77,78,79



quarta-feira, março 08, 2023

A verdade e a crítica como valores científicos

 


Jerôme Sessini, Março, 2022, Ucrânia,
 Mulher a evacuar de Irpin

“Estamos, pois, constantemente em busca de uma teoria verdadeira (uma teoria verdadeira e relevante), ainda que não possamos nunca dar razões (razões positivas) para mostrar que encontrámos realmente a teoria verdadeira que buscávamos. Ao mesmo tempo, podemos ter boas razões – isto é, boas razões críticas – para pensar que aprendemos algo de importante: que progredimos em direção à verdade. Pois podemos, primeiro, ter aprendido que uma determinada teoria não é verdadeira segundo o estado presente da discussão crítica; e, em segundo lugar, podemos ter encontrado algumas razões provisórias para acreditar (sim, até para acreditar) que uma teoria nova se aproxima mais da verdade que as suas antecessoras.

Para ser menos abstrato, vou dar um exemplo histórico.

As teorias de Einstein foram muito discutidas pelos filósofos, mas poucos salientaram o importante facto de que Einstein não acreditava que a relatividade especial fosse verdadeira: logo desde o início, ele chamou a atenção para o facto de ela poder ser, quando muito, apenas uma aproximação (já que era válida apenas para o movimento não-acelerado). Encaminhou-se, assim, para uma aproximação maior, a relatividade geral. E, mais uma vez, fez notar, que essa teoria também não podia ser verdadeira, mas sim somente uma aproximação. De facto, buscou uma melhor aproximação durante quase 40 anos, até à sua morte.(…)

Einstein buscou a verdade, e pensou ter razões -razões críticas- que lhe indicavam que não a tinha encontrado. Ao mesmo tempo, deu, ele e muitos outros, razões críticas que indicaram que tinha feito grandes progressos na direção da verdade que as suas teorias resolviam problemas que as respetivas antecessoras não eram capazes de resolver, e que se aproximavam mais da verdade do que as suas rivais conhecidas.

Este exemplo pode apoiar a minha afirmação de que ao substituir o problema da justificação pelo problema da crítica não precisamos de abandonar nem a teoria clássica da verdade como correspondência com os factos, nem a aceitação da verdade como um dos nossos padrões da crítica. Outros valores são a relevância para os nossos problemas e o poder explicativo.

Por conseguinte, ainda que eu mantenha de que o que é mais frequente é nós não encontrarmos a verdade, e não sabermos sequer quando é que a encontrámos, retenho a ideia clássica de verdade absoluta ou objetiva como ideia reguladora; quer isto dizer, como padrão em relação ao qual nos podemos posicionar abaixo.”

Karl Popper, O realismo e o objetivo da ciência, Lx, 1992, Dom Quixote, pp 58,59