terça-feira, novembro 13, 2007

Ao aprendiz de filósofo


Ao aprendiz de filósofo (ao jovem aprendiz, pretendo eu dizer, na minha qualidade de aprendiz mais velho) rogo que se não aprece a adotar soluções, que não leia obras de uma só escola ou tendência, que procure conhecer as argumentações de todas, e que queira tomar como o primário escopo a singela façanha de compreender os problemas: de compreendê-los bem, de os compreender a fundo, habituando-se a ver as dificuldades reais que se deparam nas coisas que se afiguram fáceis ao simplismo e à superficialidade do que se chama senso comum ( a filosofia é, em não pequena parte, a  luta do bom senso contra " o senso comum").

Ora se o fundamental da Filosofia é, de facto, a crítica, e se a Filosofia deve ser estudada, não pelo mérito das respostas precisas sobre um certo número de questões primárias, mas pelo valor que em si mesma ela assume, para a cultura do espírito, a mera discussão de tais problemas, -segue-se que é ideia inteiramente absurda a de se dar a alguém uma iniciação filosófica pela pura transmissão das respostas precisas com que pretendeu resolver esses tais problemas um determinado autor ou uma certa escola. Deverá pois a iniciação filosófica assumir um carácter essencialmente crítico, e consistir num debate dos problemas básicos que não seja dominado pelo intuito dogmático de cerrar as portas a discussões ulteriores. (...) Repito: seja a Filosofia para o aprendiz de filósofo, não uma pilha de conclusões adoptadas, e sim uma actividade de elucidação dos problemas. É esta actividade o que realmente importa, e não o aceitar e propagandear conclusões. (...) Pode ser muito útil para a vida prática o simples enunciado de uns tantos teoremas de matemática: porém, não há nisso sombra de valor cultural: só possui de facto valor cultural o perfeito entendimento dos raciocínios que nos dão as provas dos enunciados.

Por isso mesmo, ao lermos um filósofo de genuíno mérito, de dois erros opostos nos cumprirá guardar-nos: o primeiro de nos mantermos aí eternamente passivos e de tudo aceitarmos como se fossem dogmas, de que depois tentaremos convencer o próximo; o segundo, o de criticarmos demasiado cedo, antes de chegarmos à compreensão do texto. Para evitar o escolho do segundo erro, a atitude inicial do aprendiz de filósofo deverá ser receptiva e de todo humilde. Se achar uma ideia no texto de um Mestre que lhe pareça de fácil refutação, - conclua que ele próprio é que não percebe, e que o pensar do autor deverá ser mais fino, mais meandroso,mais facetado, mais verrumante, do que ao primeiro relance se lhe afigurou: e que se lhe impõe portanto uma atenção maior...


António Sérgio, in Os problemas da Filosofia,de Bertrand Russell, Prefácio do tradutor, pag.9, 10,Arménio Amado Ed. Coimbra,1974


Vocabulário:


Dogmático/Dogmas: aceitar uma tese como verdadeira por causa de outra crença ou porque se confia na autoridade do autor.

cerrar: fechar.

propagandear: fazer acto de propaganda, publicidade.

teoremas: verdades demontráveis matematicamente.

enunciados: exposição de uma proposição a definir, de uma ideia.

escolho: obstáculo.

meandroso: que tem meandros, isto é, partes menos claras.

facetado: com muitas faces.

verrumante: que espicaça, que faz pensar.
Verrume=parafuso

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